sexta-feira, 13 de maio de 2011

A SOMBRA DO IMPÉRIO AMEAÇA A REPÚBLICA

 O que está acontecendo com este país? Em que momento se tornou uma nação que ignora e ataca os seus aliados? Quando decidimos correr o risco de minar as bases da ordem internacional, adotando um enfoque doutrinário e radical, preferindo recorrer ao nosso aterrador poder militar? Como abandonamos a diplomacia, quando o caos mundial clama por ela?” O autor dessas perguntas não é nenhum líder “esquerdista” nem “anti-americano”, mas o senador democrata Robert Byrd, considerado o orador mais importante do Senado dos Estados Unidos. O discurso foi pronunciado em 19 de março de 2003, quando George Bush decidiu atacar Bagdá.
Talvez mais revelador do que o discurso de Byrd foi o silêncio que ele obteve como resposta. Bush invadiu o Iraque sem com isso provocar nenhuma grande comoção da opinião pública. O protesto limitou-se, basicamente, à ação de corajosos artistas, intelectuais, professores, estudantes e líderes sindicais, que, enfrentando o sinistro clima de “caça às bruxas” reinante no país, fizeram passeatas, redigiram manifestos e organizaram abaixo-assinados. É verdade que algumas passeatas em cidades importantes, como São Francisco, Nova York, Chicago e Washington chegaram a levar centenas de milhares às ruas. Mas é ainda muito pouco face ao tremendo ataque que a Casa Branca vem desfechando ao sistema multilateral da ONU, no plano externo, e à democracia e às liberdades civis, no plano interno.
Como explicar esse quadro? Escritores, historiadores e intelectuais das mais variadas origens e filiações ideológicas  de Gore Vidal a Michael Hardt e Antonio Negri, passando por John Kenneteh Galbraith  vêem nisso o perigoso avanço do Império sobre a República americana. As metáforas do Império e da República efetivamente ajudam a entender o que está acontecendo.
Bush seria a encarnação da vocação imperial dos Estados Unidos. Os interesses do Império (no caso, a estratégia geopolítica de controle do Golfo Pérsico e de suas reservas de petróleo) e a sua capacidade de garantir uma vida confortável a uma vasta classe média falam mais alto do que a convivência civilizada entre as nações (daí o total desprezo pela ONU e pelos “países amigos” de que fala Byrd) e do que os princípios da república democrática. Gore Vidal acredita que a própria condução de Bush ao poder, em dezembro de 2000, quando a Suprema Corte estuprou a Constituição para escolher como presidente o possível perdedor da eleição, abriu o caminho para o despotismo. “A velha República é uma sombra dela mesma, e vivemos sob a luz forte de um Império nuclear mundial com um governo que vê como seu verdadeiro inimigo a ‘nós, o povo’, destituídos de nosso direito eleitoral garantido”, afirma.
Os próprios fundadores dos Estados Unidos, conhecedores profundos da história do Império Romano e fortemente influenciados pelo Iluminismo francês, já demonstravam preocupação com a vocação imperial que impregnava a ideologia do Destino Manifesto. Thomas Jefferson dizia temer pelo futuro de seu país, ao refletir sobre a justiça divina. Benjamin Franklin, já perto da morte, em 1787, ao ler, pela primeira vez, a Constituição proposta à Convenção Constitucional, na Filadélfia, redigiu a seguinte nota: “Não existe forma de governo que não possa constituir uma benção para o povo se for bem administrada, e, ademais, acredito que esta [a forma proposta] deverá ser bem administrada durante muitos anos e poderá terminar no despotismo, como já fizeram outras formas antes dela, apenas quando o povo se torne a tal ponto corrompido que precise de um governo despótico, tendo se tornado incapaz de suportar qualquer outro”. Quase cem anos depois, no final da Guerra de Secessão (1861-65), foi a vez de Abraham Lincoln alertar contra o crescente poder corruptor das corporações – e de lembrar que contra elas, as corporações, foi feita a revolução de 1776.
“Por mais corrupto que nosso sistema tenha se tornado ao longo do último século – e eu vivi três quartos dele –, ainda nos apegávamos à Constituição e, sobretudo, à Carta dos Direitos [a declaração formal dos direitos dos cidadãos americanos, incorporada à Constituição por meio das emendas 1 a 10]. Por piores que as coisas ficassem, eu nunca imaginei que chegaria a ver grande parte da nação – nós, o povo - passar sem ser consultada ou representada numa questão envolvendo guerra e paz, nem deixar de se manifestar em grande número contra um governo arbitrário e conspirativo que prepara e conduz guerras para nós, ou, pelo menos, para que um Exército recrutado entre os desempregados possa combater nelas. Sim - dando prova de bom senso, eles agora deixam boa parte dos combates a cargo dos pouco instruídos, dos excluídos”, diz Gore Vidal.
As perspectivas, desse ponto de vista, são sombrias. Mas o seu desfecho ainda não está definido. Em 1940, as previsões de Adolf Hitler sobre o “Reich de mil anos” eram uma ameaça aparentemente factível; cinco anos depois, a Alemanha nazista estava em ruínas. Em 1991, o império soviético desabou com uma rapidez não imaginada sequer pelo mais alucinado futurólogo.
O conflito entre Império e República é um traço estrutural e permanente da hiper potência americana. Três décadas antes de Bush mentir para o povo americano e para o mundo a fim de deflagrar a invasão do Iraque, Richard Nixon mentiu para intensificar e ampliar a guerra na Indochina. Como Bush, ainda que em escala menor, Nixon tripudiou das liberdades e garantias constitucionais ao espionar seus adversários eleitorais – mas Nixon não completou o segundo mandato pois foi obrigado a renunciar quando o seu impeachment estava virtualmente concluído.
A história não chegou ao fim, nem pode ser domesticada. Há uma possibilidade de que Bush venha a ser lembrado como o coveiro da República americana; mas há também a possibilidade, nada pequena, de que se torne conhecido como um infeliz falastrão.

Boletim Mundo Ano 11 n° 4

BUSH BOMBARDEIA AS LIBERDADES EM NOME DA GUERRA AO TERROR

Newton Carlos

O presidente Bush declarou Ali Saleh Kahlah al-Marri, de Peoria, Illinois, um combatente inimigo. Al-Marri foi preso logo depois de 11 de setembro de 2001 e indiciado por um grande júri federal por mentir para agentes do FBI sobre as datas nas quais ele viajou pelos Estados Unidos, as datas em que fez algumas ligações telefônicas e por estar de posse de alguns cartões de crédito falsos. Quando ele se recusou a colaborar com o Departamento de Justiça em sua investigação do terrorismo, como era seu direito, o secretário da Justiça, John Ashcroft, pediu a um tribunal para retirar a acusação contra ele, o que foi feito; pediu ao presidente Bush para declarar Al-Marri um combatente inimigo, o que ele fez na segunda de manhã; e então transferiu Al-Marri secretamente de uma instalação federal em Chicago para uma cela da Marinha na Carolina do Sul.
Al-Marri poderia padecer ali pelo resto de sua vida sem jamais ter sido condenado por um crime. Ele não tem acesso à família, amigos ou advogados, e talvez nunca veja um juiz, um júri ou um promotor. Na interpretação do governo para a lei, é possível que ele não venha a ser acusado, julgado ou condenado, e nesse período vai ficar detido em confinamento solitário.

(Andrew P. Napolitano, em artigo publicado no Los Angeles Times e reproduzido em O Estado de S. Paulo em 7/7/2003)

Em janeiro começou a funcionar nos Estados Unidos o Departamento de Segurança Interna (DSI), uma agência gigante criada pelo governo Bush com o argumento de que era preciso centralizar e melhorar o uso de informações de inteligência.
O novo órgão emprega 170 mil agentes e burocratas e resultou de uma fusão de 22 agências já existentes a cargo da imigração, guarda costeira, programas de pesquisas de bio defesa, alfândegas etc. Sua criação foi possibilitada pela Lei do Fortalecimento da Segurança Interna, ou Patriot Act 2, em alusão ao primeiro Patriot Act, de 342 páginas, proposto pela Casa Branca 45 dias após os atentados de 11 de setembro de 2001.
O “patriot” tem dois significados distintos, mas que reforçam a mesma idéia.
Patriot veio da junção das primeiras letras do “providing appropriate tools required to intercept and obstruct terrorism” (fornecendo os instrumentos adequados para interceptar e obstruir o terrorismo). Deixando de lado a infantilidade própria das historinhas de Disney, em que os sobrinhos escoteiros do Pato Donald vivem em um mundo simplificado ao extremo, descrito por siglas, patriot também significa “patriótico” – e isso explicita a idéia da defesa da pátria contra o terrorismo. É como se o terror viesse sempre “de fora” dos Estados Unidos, jamais como resultado de maquinações dos próprios americanos.
Claro que essa idéia não resiste aos fatos. Não foram estrangeiros que promoveram a matança da escola de Columbine, Colorado, em 20 de abril de 1999, imortalizada pelo irreverente diretor Michael Moore. Nem foram estrangeiros, mas sim o americano Timothy McVeigh que, em 19 de abril de 1995, praticou atentado à bomba que destruiu completamente um edifício na cidade de Oklahoma, matando ou ferindo centenas de pessoas. Até o 11 de setembro, Oklahoma era o pior ato terrorista praticado em território americano.
Mas é importante para a Casa Branca, com a conivência de uma mídia cada vez menos crítica, manter a idéia de que “o perigo vem de fora”, para possibilitar o apelo à unidade patriótica contra um inimigo difuso, que pode se esconder em qualquer parte e por todas as partes. Curiosamente, logo após as primeiras notícias sobre a tragédia de Oklahoma, os meios de comunicação passaram a especular sobre quem teriam sido os responsáveis. Surgiram, então, relatos de testemunhas que teriam visto perto do local  pessoas “com aparência de árabes” mais ou menos na hora em que a bomba explodiu.
“Queríamos que os terroristas fossem estrangeiros, iranianos, iraquianos, não importa, jamais americanos”, disse o lojista americano Nick Pagonis, de Oklahoma.

O clima de pânico contra o inimigo difuso e onipresente é usado pela Casa Branca como instrumento político para concentrar poderes. Depois dos atentados de 11 de setembro, reforçar a segurança tornou-se um modo de vida nos Estados Unidos.
Disseminou-se o medo. Os alertas freqüentes  a partir de ameaças que parecem, em grande parte, fabricadas  funcionaram como senhas para golpes nas liberdades civis.
Centenas de pessoas  talvez até mais de mil, não há números oficiais  foram presas sem qualquer respeito às normas legais.
Parentes e amigos sequer conseguiram as confirmações de nomes dos encarcerados pelo FBI, situação que permanece até hoje. Não existem acusações formais. Advogados não conseguem permissão para ultrapassar os muros das prisões. Os interrogatórios são secretos. Um brasileiro ficou nove meses preso sem saber porque e foi expulso dos Estados Unidos, também sem explicações, logo depois de solto.
O DSI tem poderes para controlar o uso da Internet, grampear telefones, monitorar viagens, vigiar atividades políticas, invadir fichas médicas, vasculhar contas em cartões de crédito, revistar casas e locais de trabalho. Como numa “república de banana”, os grampos e as buscas em residências independem de autorização judicial.
O Centro de Informação pela Privacidade Eletrônica denuncia o recurso “exagerado”, por parte do FBI, às chamadas “cartas de segurança nacional”. Por meio delas, cujos direitos de intromissão foram ampliados pelo Patriot Act, as investigações com o selo de anti-terroristas ficam praticamente livres de barreiras legais.
O “grande irmão” quer saber o que você está lendo e por isso o Patriot Act também se volta para bibliotecas e livrarias, cujos movimentos internos, de pessoas e livros, ficam na alça de mira. A Associação Americana pelas Liberdades Civis revela que, desde os atentados de 11 de setembro, mais de 80 grandes bibliotecas dos Estados Unidos foram “visitadas”. Mas o governo Bush não está satisfeito. Começou a implementar um “sistema de segurança nacional de entradas e saídas”. Não basta o rigor dos consulados americanos na concessão de vistos. O novo sistema permite mais investigações com o estrangeiro já nos Estados Unidos, por meio inclusive de apresentações obrigatórias às autoridades de imigração.
Bush também quer criar um “segundo” FBI, com a tarefa de espionar americanos e estrangeiros dentro dos Estados Unidos.
A CIA está proibida de fazê-lo, só pode atuar no exterior, e o FBI existente continuaria a cargo das investigações policiais.
Uma  colunista do The New York Times, Maureen Dowd, escreveu que “o presidente americano toca em nossos nervos para ajudar a sua popularidade e reter o poder”.
O governo inclusive mobilizou certas categorias de seu funcionalismo, como os carteiros, para que observem e comuniquem movimentos “suspeitos”. Membros de um instituto de estudos de esquerda, de Washington, passaram a ser revistados com extremo  vigor quando transitam por aeroportos.
Ser estrangeiro nos Estados Unidos, sobretudo com passaportes de países islâmicos, tornou-se condição de alto risco.
A oposição democrata ensaiou resistir no Congresso, sobretudo por pressões dos sindicatos em razão de problemas corporativos e não de direitos civis.
Não concordavam com regras impostas pelo governo Bush permitindo demitir e contratar livremente os agentes do DSI.
Mas essa resistência destituída de foco foi rala, durou pouco e não teve nenhum efeito.
No Senado, por exemplo, a votação foi de 94 a zero pró-DSI. Não havia “clima”: os democratas tinham perdido eleições parlamentares sob acusações de “frouxos” em segurança e a guerra contra o Iraque se aproximava.
O Centro pelos Direitos Constitucionais denuncia que tudo isso, sobretudo a onda de prisões, “é incompatível com um governo democrático”. E daí? Numa reunião do Conselho de Segurança Nacional Bush proclamou: “Não devo qualquer explicação a ninguém. É a parte interessante de ser presidente.”

Boletim Mundo Ano 11 n°4

O VÉU DA DISCÓRDIA

Cláudio Camargo

Eles não costumam ser muito vistos nas regiões turísticas de Paris, mas aglomeram-se em alguns bairros, como o Barbès-Rochechouart, e perambulam no metrô da cidade-luz. Originários de antigas colônias francesas do Magreb  Argélia, Marrocos e Tunísia mas também refugiados do Paquistão, da Turquia e de outros países asiáticos, os muçulmanos da França já somam cerca de cinco milhões de almas, dois milhões das quais ilegais, numa população de 60 milhões de habitantes, majoritariamente católica.
O islamismo já se transformou na segunda religião da França, atrás do catolicismo. “Depois das guerras de religião do século XVI, é a primeira vez que há uma grande distinção religiosa na França”, diz o professor Phillipe Moreau Defarges, do Instituto Francês de Relações Internacionais. No passado, a diferença religiosa e cultural traçava linhas divisórias entre países e civilizações – lembre-se que o avanço muçulmano rumo ao Ocidente europeu foi detido em Poitiers por um guerreiro cristão, o franco Charles Martel, no ano da graça de 732. Mas hoje o “choque de civilizações” entre o Ocidente rico e o Islã depauperado se deslocou para dentro das sociedades ocidentais, como a França.
Neste país orgulhoso de seus valores iluministas e republicanos, de sua tradição laica e de sua herança democrática, os clarins da “guerra santa” voltaram a soar em abril, quando o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, foi longamente apupado numa cerimônia da União das Organizações Islâmicas da França (UOIF) ao lembrar uma lei que obriga todos a exibirem o rosto descoberto em documentos de identidade – algo que enfurece os setores muçulmanos integristas. Um ex-presidente da UOIF, Abdalá ben Mansour, replicou furioso que tal exigência equivale à obrigação nazista de que os judeus se identificassem com uma estrela amarela no peito. O ministro da Educação, Luc Ferry, reagiu mexendo nas feridas nacionais ao declarar que a França estava diante de um novo tipo de anti-semitismo “que não vem mais da extrema-direita, mas da islamização e da radicalização da comunidade muçulmana”. De fato, os setores moderados vêm perdendo espaço para os islâmicos extremistas tanto no Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), que reúne várias entidades muçulmanas, como na até então moderada mesquita de Paris.
Na seqüência, o primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, propôs à Assembléia Nacional uma lei proibindo explicitamente o uso do véu nas escolas. Com isso, se pretende corrigir as ambigüidades de uma medida de 1989, quando o Conselho de Estado elaborou uma orientação, elaborada pelo então ministro da Educação, o socialista Lionel Jospin, que estabelece que o uso no véu “não é, em si, incompatível com o princípio da laicidade”. A determinação, no entanto, proíbe sinais religiosos que “pelo seu caráter ostentatório ou reivindicativo constituam um ato de pressão, provocação ou de propaganda”.
Essa determinação surgiu de um incidente com algumas alunas muçulmanas do colégio Gabriel-Havez, em Creil, que apareceram nas salas de aula usando o véu islâmico. Alegando defender o caráter laico do ensino público francês, a direção do estabelecimento proibiu a entrada das alunas, abrindo uma verdadeira caixa de Pandora. Desde a decisão proposta por Jospin, cada universidade tem autonomia para decidir como proceder.
Na prática, a explosiva tensão entre o caráter laico da escola pública e a reivindicação de liberdade religiosa permaneceu latente.
Como não poderia deixar de ser  afinal, estamos em Paris –, o ressurgimento da polêmica dividiu todo o espectro da política francesa. Mas o tradicional maniqueísmo que, no passado recente, colocava a esquerda na defesa do “respeito à identidade cultural” e a direita exigindo que os muçulmanos se integrassem na sociedade ocidental foi virado de pernas para o ar. O presidente Jacques Chirac, por exemplo, ficou em cima do muro, preferindo não endossar as iniciativas de seu primeiro-ministro conservador. Já o deputado socialista Jacques Lang, que no passado militava contra a interdição do véu, agora tem um projeto de lei que proíbe o uso de signos religiosos em estabelecimentos escolares públicos. Na mesma trincheira, contra os rostos cobertos, se alojam os ex-esquerdistas Régis Debray e Alain Finkielkraut e o conservador Jean-François Revel.
Polêmicas à parte, é inegável que a França está com medo do Islã e nem o fato de o país ter ficado frontalmente contra Tio Sam na guerra do Iraque diminuiu esse temor. Há anos a imigração vem gerando um alarme exagerado na Europa e na França e isso explica em parte a elevada votação do candidato ultra direitista Jean-Marie Le Pen, um xenófobo radical, na eleição presidencial do ano passado. Segundo uma pesquisa feita em fevereiro, nada menos que 60% dos franceses têm medo do crescimento do islamismo.
Umberto Eco disse certa vez que os ocidentais refletem sobre os limites de seu próprio pensamento analisando “la pensée sauvage” (o pensamento selvagem).
Pode ser. Mas a França forjou os valores republicanos enfrentando seus próprios demônios, como demonstram o caso Dreyfus (1894-1906) – quando a consciência democrática se levantou contra a reação anti-semita, monarquista e católica – a resistência gaullista e comunista contra o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra Mundial e a decisão da V República de conceder independência à Argélia em 1962, depois de anos de sangrentos combates coloniais.
Agora, depois de enfrentar a ameaça da ultra direita de Le Pen, os valores republicanos e universalistas de Marianne, o símbolo nacional francês, têm pela frente um desafio muito mais complexo. Trata-se de terçar armas com o irracionalismo multicultural – isto é, a idéia de que a sociedade democrática seja uma coleção de tribos étnicas ou religiosas – sem cair na tentação xenófoba.

Boletim Mundo  Ano 11 n° 4

DOS ACORDOS DE OSLO AOS “BANTUSTÕES” DE SHARON

Num ciclo de dez anos, israelenses e palestinos percorreram quase toda a trajetória em direção à paz e retrocederam, violentamente, até uma espiral incontrolável de vingança e retaliação.
Nos últimos dez anos as tentativas de solução da complexa Questão Palestina alternaram fases de euforia e frustração. A trajetória pendular começou quando, em setembro de 1993, o líder palestino Yasser Arafat e o primeiro-ministro de Israel, Ytzhak Rabin, firmaram em Washington os acordos de paz negociados em Oslo. Naquele momento, pela primeira vez, estabeleceram-se as condições para um desfecho da mais renitente disputa geopolítica contemporânea.
A substância dos Acordos de Oslo era uma complexa carta de intenções na qual as duas partes se comprometiam com um processo de paz. O ponto de partida seria a implantação de um regime de autonomia palestina em partes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
Nesses territórios, ocupados desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, sucessivos governos israelenses tinham empreendido a implantação de assentamentos judaicos e de uma densa rede de rotas reservadas aos colonos israelenses. A presença das colônias e dos colonos logo se revelou um obstáculo quase intransponível para o avanço do processo de paz.
O primeiro acordo assegurou aos palestinos apenas a retirada israelense de grande parte da Faixa de Gaza e da cidade de Jericó, na Cisjordânia. A Autoridade Palestina (AP) se encarregou da administração civil e da segurança interna dessas áreas, ficando a defesa e as relações exteriores nas mãos de Israel. O segundo acordo, Oslo II, assinado 1995, ampliou a autonomia palestina na Cisjordânia. O território foi dividido em três zonas.
Na chamada Zona A, os palestinos teriam autonomia limitada, nos moldes de Gaza e Jericó. Na Zona B, a administração civil seria compartilhada entre a AP e Israel.
A “Zona C”, onde se localizam as colônias judaicas, ficaria sob controle exclusivo de Israel.
O assassinato do primeiro-ministro Rabin, no final de 1995, por um fanático israelense de ultra-direita, e a vitória eleitoral do partido direitista Likud nas eleições de 1996 em Israel, provocaram o virtual congelamento do processo de paz. Os atentados terroristas dos fundamentalistas do Hamas, que pipocaram durante a campanha eleitoral em Israel, serviram como toque de reunir para a direita expansionista. Entre 1995 e 1999 brotaram dezenas de novos assentamentos na Cisjordânia, enquanto crescia a frustração entre os palestinos.
Novo giro do pêndulo. No final de 1999, com a eleição do trabalhista Ehud Barak para primeiro-ministro de Israel, o processo de paz foi retomado. Barak assumiu anunciando a disposição de formular um acordo definitivo com os palestinos e colocou em marcha a retirada israelense de áreas da Cisjordânia prevista por Oslo II. Em março de 2000, no zênite do processo, os palestinos controlavam, integral ou parcialmente, 40% da Cisjordânia.
Então, veio o clímax e o anticlímax. Em julho de 2000, Arafat e Barak se reuniram em Camp David, nos Estados Unidos, em conversações cuidadosamente preparadas por Bill Clinton para a elaboração de um acordo sobre o estatuto final dos territórios palestinos.
Sobre a mesa, estavam as questões vitais e espinhosas do traçado das fronteiras do Estado Palestino e do futuro de Jerusalém.
Ao que tudo indica, Barak formulou a mais ampla proposta de paz já apresentada por um líder israelense.
Ofereceu aos palestinos o controle integral da Faixa de Gaza e de cerca de 90% da Cisjordânia. Israel conservaria sob seu controle a estratégica faixa que acompanha o vale rio Jordão e dois corredores que conectam essa faixa ao território israelense propriamente dito. O futuro Estado palestino teria que se contentar com direitos de trânsito entre as três partes da Cisjordânia e entre esta e a Faixa de Gaza .
Os desacordos em Camp David não se limitaram às fronteiras. Não se chegou a consenso sobre o estatuto de Jerusalém ou o direito de retorno dos refugiados palestinos. A proposta de Barak acabou sendo rejeitada  por Arafat, o que implodiu a frágil estrutura de todo o processo deflagrado em 1993.
A frustração dos palestinos com a demora na criação de seu Estado funcionou como pano de fundo para a tragédia. A gota d’água foi um ato deliberado de provocação: em 28 de setembro de 2000, Ariel Sharon, líder do Likud, protagonizou uma “visita” à Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém. O passeio do herói do expansionismo israelense pelo lugar sagrado dos muçulmanos, um gesto simbólico destinado a reafirmar a soberania israelense sobre toda Jerusalém, desencadeou ondas de protestos palestinos. Começava a segunda Intifada, uma nova revolta palestina contra a ocupação israelense.
A nova Intifada, ao contrário da primeira, que se desenrolou entre 1987 e 1993, logo ultrapassou o estágio das manifestações de rua e atingiu o das ações armadas e atentados suicidas. O governo de Barak dobrou-se sob o impacto do agravamento da violência, enquanto a sociedade israelense inclinava-se para a direita.
Nas eleições de fevereiro de 2001, o Likud voltou ao poder e Sharon tornou-se primeiro-ministro com um discurso contrário aos acordos de paz e a promessa de oferecer segurança à nação.
De lá para cá, o novelo da tragédia desenrolou-se implacavelmente. Os grupos extremistas palestinos  o Hamas, a Jihad Islâmica e a Brigada dos Mártires de Al Aqsa – desencadearam uma campanha de ataques suicidas, de dimensões inéditas, contra civis em Israel. Sharon, o extremista israelense, não ficou atrás, mobilizando uma máquina de guerra contra civis desarmados e multiplicando os “assassinatos seletivos” contra lideranças palestinas.
Tropas e tanques passaram a realizar incursões em áreas sob regime de autonomia palestina, violando os pilares dos acordos de paz. Cada atentado palestino passou a ser “vingado” por sangrentas ações de represália israelense. A lógica perversa do atentado e da retaliação assassina destruiu o que restava do processo inaugurado em Oslo.
Mas a violência de Sharon tem uma lógica. Além de submeter os territórios palestinos a bloqueios externos e barragens militares internas, o primeiro-ministro israelense lançou-se à construção de um “muro protetor” projetado para envolver quase toda a Cisjordânia e, ao que parece, também a Faixa de Gaza. Na Cisjordânia, os trabalhos de construção já ergueram cerca de metade desse muro de 350 quilômetros de extensão .
O muro, formado por blocos de concreto e dispositivos  eletrônicos de vigilância, sintetiza uma estratégia.
No horizonte de Sharon, o que se vislumbra é um Estado palestino constituído por fragmentos de território isolados e submetidos a controle militar de Israel. Qualquer semelhança com os bantustões que existiram na África do Sul do apartheid não é mera coincidência.
Boletim Mundo Ano 11 n° 4

MAPA DO CAMINHO” EXIGE A QUEBRA DA RESISTÊNCIA PALESTINA

Plano americano enquadra-se na geopolítica da “guerra ao terror” e se destina a desmantelar os grupos armados palestinos, preparando a “paz dos vencedores”

Dias antes de desfechar a invasão do Iraque, o presidente americano George W. Bush anunciou, sem nenhum entusiasmo, que patrocinaria um novo plano de paz para a Palestina. Na ocasião comentou-se que era um plano “para inglês ver” – ou seja, um agrado no primeiro-ministro britânico Tony Blair que, acuado pela opinião pública do seu país, precisava associar causas nobres à operação neo-imperial no Iraque.
Em parte era. Mas, hoje está claro, não era só isso. O “mapa do caminho”, nome bizarro do plano de Bush para a Palestina, foi posto em marcha desde a ocupação de Bagdá – e já mudou a paisagem política do conflito entre Israel e os palestinos. A Autoridade Palestina reorganizou sua estrutura de poder, escolhendo um primeiro-ministro, Mahmud Abbas, que começa a fazer sombra ao líder histórico Yasser Arafat. As três organizações que protagonizam o levante palestino os grupos fundamentalistas Hamas e Jihad Islâmica e o nacionalista Brigada dos Mártires de Al-Aqsa – aceitaram uma trégua de três meses. Em troca, o governo israelense de Ariel Sharon libertou seletivamente várias centenas de prisioneiros palestinos.
Uma luz no fim do túnel? A retomada do caminho interrompido dos Acordos de Oslo?
Os avanços e recuos dos Acordos de Oslo, e a sua ruína final, dominaram a política da Palestina na última década. O “espírito de Oslo” consistia numa aproximação gradual entre os inimigos históricos. Mas as etapas da chamada “paz dos bravos” estavam razoavelmente definidas. Em princípio, aceitava-se a idéia da troca de “paz por terra” e visualizava-se um Estado Palestino na Faixa de Gaza e em quase toda a Cisjordânia. Os desacordos sobre fronteiras, Jerusalém e os refugiados acabaram provocando a implosão de todo o edifício .
O “mapa do caminho” não possui nenhuma das características de um plano de paz. Israel não se comprometeu com qualquer cronograma de retirada dos territórios ocupados. Não há menção a acordos sobre fronteiras, refugiados ou Jerusalém. Sequer há uma agenda nítida de temas a serem negociados. Genericamente, fala-se na criação futura de um Estado Palestino. Praticamente, o que existe são as exigências de uma liderança “confiável” para a Autoridade Palestina e do desmantelamento das “organizações terroristas” palestinas.
Sharon prometeu apenas libertar parte dos prisioneiros palestinos, reservando-se o direito de escolher quais permanecerão encarcerados, desmantelar colônias criadas desde março de 2001 e congelar os assentamentos existentes. O líder israelense já declarou que, de acordo com a sua interpretação, o “mapa do caminho” não impede a expansão “sem alarde” dos assentamentos em terras palestinas. Além disso, negou-se terminantemente a interromper a política de “assassinatos seletivos” de líderes palestinos acusados de incitar o terrorismo.
Os Acordos de Oslo nasceram da primeira Guerra do Golfo, em 1991. Naquela ocasião, George H. Bush, pai do atual presidente americano, montou uma vasta coalizão contra Saddam Hussein, que incluía o Egito e a Síria. O preço que pagou pela participação árabe na guerra ao Iraque consistiu na garantia de que os Estados Unidos forçariam Israel a negociar a paz com os palestinos. Isso foi feito: Israel sentou-se à mesa de negociação depois que Washington, de modo inédito, recusou-lhe a concessão de um empréstimo bilionário.
O democrata Bill Clinton deu seqüência à política do antecessor republicano. A paz negociada na Palestina aparecia, aos olhos de Washington, como o caminho para a difusão e estabilização da influência americana em todo o Oriente Médio. O plano atual tem origem completamente diferente, pois se inscreve na moldura neo-imperial da “guerra ao terror”. Não é fortuito que o “mapa do caminho” tenha sido lançado apenas após a invasão do Iraque.
A segunda Guerra do Golfo obedeceu à geopolítica de Washington para o Oriente Médio. Sob o disfarce da teia de mentiras das armas de destruição em massa e das ligações entre Saddam Hussein e Osama Bin Laden, os Estados Unidos buscavam reorganizar o balanço regional de poder. De um lado, tratava-se de combater a influência do fundamentalismo islâmico na Arábia Saudita. De outro, tratava-se de criar as condições para uma “paz dos vencedores” na Palestina.
O protetorado militar americano no Iraque serve de plataforma para a ofensiva contra as organizações palestinas. As ameaças de Washington ao Irã e à Síria destinam-se a remover os pontos de apoio externos para o extremismo palestino. A reforma forçada da Autoridade Palestina destina-se a isolar as lideranças associadas, simbólica ou praticamente, à resistência contra a ocupação israelense. O “velho guerreiro” Arafat deve dar lugar a um pragmático, capaz de fazer concessões inimagináveis há dez anos. Marwan Barghouti, líder da Fatah, o núcleo histórico da OLP, está encarcerado em Israel. O procurador-geral israelense, Elyakim Rubinstein, referiu-se a Barghouti como “arquiteto do terrorismo genocida”.
Arafat agarra-se à sombra de um poder que lhe escapa das mãos tentando promover um novo giro político, como os que no passado asseguraram a sua liderança Em julho, cumprindo exigência de Bush, republicou um decreto de 1998 da Autoridade Palestina ameaçando proscrever os grupos palestinos que “incitarem a violência”. Abbas promete desarmar o Hamas, a Jihad Islâmica e a Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, mas sabe que uma ofensiva de repressão poderia provocar uma guerra civil entre os palestinos. Na verdade, ele tenta se equilibrar na corda bamba, ganhar tempo, obter alguma concessão de Sharon e domesticar parte das lideranças extremistas.
As organizações armadas palestinas aceitaram a trégua sem terem sido convencidas de que existe um processo de paz em marcha. O seu recuo provisório é um reflexo do novo balanço de forças gerado pela invasão americana do Iraque. Elas evitam o confronto aberto no momento desfavorável. Apostam que o governo Sharon não quer e não pode oferecer nenhuma concessão significativa – e pretendem comprovar a intransigência israelense suspendendo por algum tempo os atentados suicidas.
O plano americano consiste em quebrar a espinha dorsal da resistência palestina. A “paz” se traduziria na proclamação de um Estado Palestino fragmentário,  estabelecido em áreas isoladas por corredores de colônias israelenses. Esse “mapa do caminho” solicita muito mais que a reforma da Autoridade Palestina, com a entronização de uma liderança pragmática ou “confiável”. A sua condição prévia é a renúncia histórica dos palestinos a se constituírem como nação. Isso demanda um banho de sangue.

Boletim Mundo Ano 11 n° 4

O JOGO DAS ELITES REGIONAIS, NO TABULEIRO DA FEDERAÇÃO

Os Estados Unidos configuram o modelo principal de Estado federal.
No momento da Revolução Americana, as antigas colônias inglesas formaram uma confederação que, logo depois, se transformou em federação. Os territórios adquiridos ou conquistados durante a expansão para o oeste, no século XIX, aderiram à federação. Na Guerra de Secessão (1861-65), a classe de empresários capitalistas do norte derrotou os grandes proprietários de terras do sul, unificou economicamente o país e reforçou o poder do governo federal.
O ponto de partida brasileiro não foi muito diferente. As capitanias coloniais eram, na realidade, colônias distintas . Mas a Independência originou um Estado monárquico e unitário, não uma república federativa.
O Império do Brasil amalgamou as antigas capitanias, transformando-as em províncias.
A federação nasceu muito mais tarde, com a República, que transformou as províncias em estados. A grande federação da América do Norte serviu como modelo explícito: a primeira constituição republicana, de 1891, adotou a denominação de Estados Unidos do Brasil, que foi mantida até 1967.
Ao longo dessa trajetória, o problema da distribuição de poderes entre o governo central e os governos provinciais ou estaduais ressurgiu periodicamente, refletindo as divergências, atritos e acomodações no interior das elites econômicas e políticas. Esse é o pano de fundo histórico da crise atual do pacto federativo, expressa na complexa articulação da reforma tributária.
As capitanias gerais do século XVIII funcionaram como expressões políticas do poder e dos interesses das oligarquias regionais. A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, foi o primeiro ato de um processo conservador de emancipação política. A Independência de 1822 materializou o projeto de criação de um império escravista nos trópicos. A Constituição outorgada de 1824 consolidou a organização da monarquia unitária e hereditária.
Nos planos político e territorial, a monarquia empreendeu a construção da unidade, soldando as colônias herdadas da Coroa portuguesa. Para isso, ela teve que domesticar as oligarquias regionais, enquadrando-as nas instituições imperiais e subordinando-as à autoridade do Rio de Janeiro. O escravismo foi a solda que uniu as oligarquias regionais brasileiras. O interesse compartilhado na manutenção do trabalho cativo e do tráfico negreiro era ameaçado pela campanha internacional britânica contra o comércio de escravos. O Estado imperial funcionou como instrumento diplomático para enfrentar as pressões britânicas, conseguindo sustentar o tráfico até 1850 e a escravidão até 1888.
A Constituição de 1824, outorgada pelo imperador, definiu o Brasil como um Estado unitário. As províncias não dispunham de autonomia política e seus presidentes eram nomeados pelo poder central. No fundo, as oligarquias regionais sacrificaram a sua autonomia no altar de um interesse geral e comum, que era a manutenção da escravidão.
Mas a domesticação das oligarquias pela monarquia foi um processo turbulento, que agitou a política imperial durante todo o período da Regência (1831-40). O descontentamento das oligarquias e a revolta do povo provocaram a abdicação de D. Pedro I, em 1831. O governo central, acuado, acabou aceitando a eleição de deputados com poderes constituintes. O Ato Adicional, de 1834, criou Assembléias Legislativas provinciais dotadas de amplos poderes. O Conselho de Estado, que corporificava o centralismo imperial, foi abolido. O Brasil transformou-se, por um breve período, num “império federativo”.
O Golpe da Maioridade, de junho de 1840, revitalizou o poder central. Através da Lei Interpretativa do Ato Adicional, o Conselho de Estado foi restaurado, o poder das Assembléias Legislativas foi limitado e voltou a funcionar o Poder Moderador, que assegurava a precedência do imperador sobre o parlamento. Completava-se a trajetória de “construção da ordem”, ou seja, de edificação do Estado monárquico e unitário.
A Proclamação da República, em 1889, representou antes de tudo uma reação autonomista das oligarquias regionais.
Sem a escravidão, abolida um ano antes, o Império não tinha razão para existir. Depois da curta etapa de conflitos entre os cafeicultores e os militares positivistas, que durou até 1894, o novo regime assumiu as feições de um parque de diversões das oligarquias regionais organizadas nos partidos republicanos estaduais.
A República Velha (1889-1930) assinalou o auge do poder oligárquico e da autonomia dos estados. A “política dos governadores”, que se coagulou no revezamento do “café com leite”, entre São Paulo e Minas Gerais, funcionou como veículo para a captura do poder federal pelos grandes proprietários do núcleo geoeconômico nacional.
O pêndulo voltou a se inclinar para o lado do centralismo com a Revolução de 30, que decorreu da aliança dos militares com as oligarquias periféricas do Nordeste e do Rio Grande do Sul. O regime de Getúlio Vargas golpeou a oligarquia paulista, derrotando a Revolução Constitucionalista de 1932, e conseguiu implantar um poder central forte através do golpe do Estado Novo. A Constituição outorgada de 1937 definiu o Executivo como “órgão supremo do Estado”, conferiu ao presidente o poder de nomear interventores nos estados e eliminou o sufrágio direto para o parlamento.
Na verdade, a federação tornou-se uma farsa jurídica.
O fim do Estado Novo e a chamada redemocratização propiciaram a restauração do Estado federal, através da Constituição de 1946. Mas o processo de industrialização e integração econômica nacional, posto em marcha durante a “era Vargas”, transformou para sempre as relações entre o poder central e as elites regionais.
A nova elite industrial paulista afirmou a sua hegemonia econômica. As elites periféricas foram obrigadas a negociar favores junto ao poder central, utilizando como barganha os votos dos seus senadores e das suas bancadas de deputados federais. As velhas oligarquias nordestinas, cinicamente enroladas na bandeira da miséria regional, passaram a sugar recursos federais através de órgãos como o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf ).
O centralismo autoritário retornou com o golpe militar de 1964 e a Constituição de 1967, mas a redemocratização e a Constituição de 1989 restabeleceram o pacto federativo. Contudo, as regras do jogo nunca mais serão as do passado. O poder político concentra-se no governo federal. O poder econômico, no complexo financeiro e industrial de São Paulo.
Isso não significa que inexiste um jogo. O governo federal precisa de maioria parlamentar e os governadores exercem influência determinante sobre as bancadas na Câmara dos Deputados.
A “política dos governadores” sobrevive como uma sombra esmaecida, quase uma reminiscência da República Velha: não é casual que tanto a Reforma da Previdência quanto a Reforma Tributária tenham emanado de negociações entre Lula e os governadores.

Boletim Mundo Ano 11 n° 4

O PATO PAGA O PATO

A eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva constitui um marco histórico pois, pela primeira vez, o Brasil tem um governo de esquerda, apoiado num partido – o PT – que surgiu das lutas operárias.
Pelo menos em tese, todo o modelo econômico e social brasileiro pode sofrer mudanças estruturais. Sob o selo “Brasil em debate”, Mundo acompanha e discute a postura do governo Lula diante das grandes questões nacionais.
Nesta página, focalizamos a Reforma Tributária, com ênfase sobre as desigualdades econômicas entre as unidades da federação. Na página 5, a partir de uma análise das origens e evolução do “pacto federativo” no Brasil, interpretamos as fontes da nova “política dos governadores” articulada pelo governo federal.
Há três grandes argumentos para justificar a reforma tributária. O primeiro é a injustiça na distribuição dos impostos. O caso mais grave é o do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que hoje é cobrado nos estados em que acontece a produção desses serviços ou mercadorias. O segundo argumento é que a reforma poderia pôr fim à chamada guerra fiscal, a redução acelerada de tributos promovida por estados e municípios para incentivar a migração de empresas. Só em 2002, nada menos que R$ 26 bilhões deixaram de entrar nos cofres de municípios e estados, por conta da renúncia fiscal. O terceiro e último argumento é a necessidade de reduzir a carga de impostos sobre as empresas, em especial aquelas que exportam, permitindo que operem a custos mais competitivos no mercado internacional.
O problema da guerra fiscal, pelo menos em nível local, já havia sido suavizado por uma lei que proíbe os municípios de cobrarem menos de 2% de Imposto Sobre Serviços (ISS). Nos anos 90, enquanto cidades que concentram muitos prestadores de serviços – como São Paulo e Rio de Janeiro – cobravam alíquotas de 5% de ISS, pequenos municípios vizinhos, como Barueri e Santana de Parnaíba, ambos na Grande São Paulo, reduziram a margem para até 0,25%. O resultado foi que dezenas de milhares de empresas – principalmente de pequeno porte – fingiram ter mudado para esses locais, fornecendo endereços falsos. Além da criação da alíquota mínima de 2%, cidades grandes, como São Paulo e Guarulhos, encontraram brechas legais para reduzir o ISS para alguns setores e, assim, atrair de volta parte dessas empresas.
Quanto ao problema da distribuição de rendas tributárias, ele teria de ser resolvido com mudanças nas  regras do ICMS, a principal fonte de recursos dos estados e que arrecadou R$ 103 bilhões em 2002. A proposta original do governo era alterar o local de cobrança do ICMS. Hoje, por ser cobrado no estado produtor, esse imposto beneficia as unidades da federação mais ricas. Se o ICMS passasse a ser cobrado no local de destino das mercadorias e serviços, haveria maior justiça, uma vez que a arrecadação estaria mais ligada à população de cada estado. Em teoria, isso daria aos estados pobres novos recursos para serem aplicados em programas sociais.
Acontece que a proposta gerou reações fortíssimas dos governadores dos estados mais ricos principalmente SP, RJ e MG. E, como eles controlam parcelas importantes das bancadas na Câmara Federal e no Senado, uma oposição dura poderia causar problemas, na hora de aprovar a reforma.
O governo Lula parece estar inventando uma nova “política dos governadores” Sob a batuta do próprio presidente e do chefe da Casa Civil, José Dirceu, o governo federal negocia as reformas com os governadores e consegue o apoio deles para formar vastas maiorias parlamentares. Por isso, diante da resistência dos estados mais ricos, Lula decidiu recuar e reformular a proposta. No novo formato, o ICMS continuará a ser cobrado na origem, mas a bolada será dividida com os estados de destino de mercadorias e serviço . E, para dissolver de vez a resistência dos estados ricos, o governo acenou com uma fatia maior dos impostos federais. Trocando em miúdos, os estados ficariam com 49% do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), contra os atuais 47%, além de toda a arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR).
Então, feita a “conciliação dos governadores”, saem todos felizes? Médio. Falta decidir quem paga a conta. Será mesmo que o governo federal topa abrir mão de parte de sua arrecadação só para instaurar maior justiça fiscal? Poucas chances, já que a tônica da administração Lula tem sido apertar todos os cintos e cumprir à risca os acordos com o FMI, que prevêem fortes superávits fiscais destinados a reduzir o peso da dívida interna.
Uma pista do que deve acontecer: a redução da carga tributária sobre quem produz será menor do que se imagina. Ao mesmo tempo, o governo instituiu mecanismos para poder aumentar, por decreto – portanto, sem necessidade de negociação com o Congresso a CPMF e a Cide (contribuição sobre o consumo de combustíveis). Sem contar que a não-correção da tabela de descontos do Imposto de Renda representa um aumento de fato da tributação.
Como dizem os economistas, não existe almoço gratuito. A mudança no ICMS pode reduzir um pouco as desigualdades regionais. Mas tudo indica que quem vai pagar o pato será o próprio pato.
Ou melhor, os dois patos: o consumidor e o produtor.

Principais pontos da proposta de reforma tributária
ICMS – Continua a ser cobrado na origem, mas, em dois anos, a arrecadação será dividida entre os estados de origem e destino das mercadorias. Terá apenas cinco alíquotas, em vez das atuais 44. Fica proibida a concessão de reduções para atrair empresas.
CPMF – Torna-se permanente em 0,38% de cada transação bancária, mas a alíquota pode chegar a 0,5%, por decreto.
Cofins – Deixa de incidir sobre todas as etapas da produção.
Imposto sobre Herança e Doações – Hoje em 4%, pode ter alíquotas maiores, conforme o valor.
Imposto sobre Transferência de Bens Intervivos (imóveis) – Hoje em 2%, poderá ter alíquotas mais altas, conforme o valor do bem.
Imposto sobre Grandes Fortunas – Poderá ser criado por decreto.
Imposto Territorial Rural – Deixa de ser de competência da União e passa aos estados, com 50% dos valores destinados aos municípios.

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LULA E A ALCA: O ENIGMA DE CAPITU

O enigma de Capitu, personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, é um dos temas clássicos da literatura brasileira. Como o texto deixa as conclusões para o leitor, as opiniões se dividem: a jovem traiu ou não o marido?
Pois o encontro celebrado em junho, em Washington, entre os presidentes do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, e dos Estados Unidos, George Bush, gerou um novo enigma de Capitu. Lula capitulou ou não, ao aceitar “cooperar para a conclusão exitosa”, em 2005, da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), menina dos olhos da diplomacia americana para a América Latina?
Segundo alguns analistas, inclusive dentro do Itamaraty, Lula causou danos ponderáveis aos esforços de vários anos de diplomacia, ao aceitar o prazo de 2005 sem que Bush se comprometesse sequer negociar reduções dos bilionários subsídios agrícolas aos fazendeiros americanos, ou com o fim do protecionismo a setores industriais decadentes, como a siderurgia.
A vontade de Bush é que esses pepinos sejam remetidos à Organização Mundial do Comércio (OMC). Quer dizer, os Estados Unidos remeteriam o debate para outro foro e, no mínimo, ganhariam tempo para abrir um pouco mais seu mercado, enquanto o Brasil e outros países latino-americanos já estariam comprometidos com uma rápida liberalização, por exemplo, de seu mercado de bens industriais.
A idéia da capitulação ganha força diante da paralisia do Mercosul, cujo fortalecimento o Itamaraty encara como fundamental para reduzir os estragos de uma integração econômica acelerada, via Alca. Uma frase de Lula durante o encontro com Bush reforçou ainda mais a crença de certos setores na capitulação.
“O boxeador que nocauteia seu adversário tem que ter a humildade de abraçá-lo, depois”, afirmou. Não é preciso dizer quem são os nocauteadores  e o nocauteado, certo?
E Lula, durante a campanha eleitoral – talvez ele não goste dessa lembrança! – chegou a classificar a Alca como “um projeto de anexação”.
Há quem prefira acreditar numa hipótese melhor.
Para diversos analistas, Lula apenas ganhou tempo, evitando um confronto prematuro. Essa tese encontraria respaldo em algumas declarações genéricas emitidas no comunicado conjunto dos dois  presidentes .
A idéia é que, nos primeiros meses de governo, Lula  que já causou arrepios nos investidores estrangeiros  estaria fazendo tudo para evitar a fuga de capitais e uma eventual especulação contra a moeda brasileira, que repetiria o deus-nos-acuda do final de 2002.
Isso explicaria também a manutenção das altas taxas de juros e a promessa de cumprir os contratos da privatização do setor de telecomunicações, que vêm levando a enormes aumentos nas contas de telefone – ainda que amparados pela lei.
A tese de que Capitu não traiu  ou seja, que Lula apenas adiou o confronto  foi exposta com clareza, por exemplo, em entrevista do secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Otaviano Canuto ao jornal Gazeta Mercantil, na edição de 14 de julho. Na mesma linha do chanceler Celso Amorim, Canuto defendeu uma “Alca light” em 2005. Quer dizer: um acordo mínimo, que levasse a uma modesta redução dos subsídios e proteções americanos à agricultura e siderurgia, e a uma pequena moderação de barreiras não-tarifárias  como as exigências marotas de saúde pública e respeito ao meio ambiente que funcionam como meros pretextos para dificultar o ingresso de produtos estrangeiros nos Estados Unidos.
Em troca, o Brasil abriria um pouco, por exemplo, seu setor de serviços, ao capital estrangeiro.
Segundo a tese da “Alca light”, as grandes polêmicas ficariam para a OMC, enquanto o Brasil trataria de reforçar sua posição no cenário internacional, firmando acordos bilaterais com economias continentais  como China e Índia – e fortalecendo o Mercosul.
A polêmica Alca/Capitu promete durar vários meses. Enquanto isso, vale a pena deixar no ar algumas perguntas. Aos defensores da tese da capitulação: Será que a postura de Lula diante da Alca é tão definitiva que justifique o termo? E será que, ao assumir uma posição tão dura contra Lula, eles não terminam reforçando os setores favoráveis à Alca já? E à turma da “Alca light”: Era preciso explicitar, por escrito, um compromisso com a conclusão das negociações em 2005, como queria Bush?
Por que o comunicado conjunto sequer faz menção aos subsídios agrícolas? O velho Machado de Assis deve estar se torcendo no túmulo de ansiedade.

O comunicado conjunto
O comunicado dos dois presidentes só é específico na afirmação do compromisso com o prazo final de 2005 para a conclusão “exitosa” das negociações. Quanto ao resto, destaca-se a ausência completa de referência ao tema dos subsídios agrícolas e a profusão de afirmações genéricas. Veja algumas delas:
“Brasil e Estados Unidos decidem criar uma relação mais estreita e qualitativamente mais forte entre nossos dois países. É hora de se definir um novo e decidido rumo em nosso relacionamento, guiado por uma visão comum de liberdade, democracia, paz, prosperidade e bem-estar para nossos povos, com vistas à promoção da cooperação hemisférica e global.”
“Concordamos em que o livre comércio impulsiona a prosperidade e o desenvolvimento e contribui para a promoção da iniciativa empresarial e o fortalecimento do setor privado, com impactos sociais positivos”.
“Trabalharemos juntos para preservar e promover a estabilidade e o crescimento na economia mundial.
A abertura  ao comércio e a resistência ao protecionismo são essenciais para a superação desse desafio.”

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