Talvez mais revelador do que o discurso de Byrd foi o silêncio que ele obteve como resposta. Bush invadiu o Iraque sem com isso provocar nenhuma grande comoção da opinião pública. O protesto limitou-se, basicamente, à ação de corajosos artistas, intelectuais, professores, estudantes e líderes sindicais, que, enfrentando o sinistro clima de “caça às bruxas” reinante no país, fizeram passeatas, redigiram manifestos e organizaram abaixo-assinados. É verdade que algumas passeatas em cidades importantes, como São Francisco, Nova York, Chicago e Washington chegaram a levar centenas de milhares às ruas. Mas é ainda muito pouco face ao tremendo ataque que a Casa Branca vem desfechando ao sistema multilateral da ONU, no plano externo, e à democracia e às liberdades civis, no plano interno.
Como explicar esse quadro? Escritores, historiadores e intelectuais das mais variadas origens e filiações ideológicas de Gore Vidal a Michael Hardt e Antonio Negri, passando por John Kenneteh Galbraith vêem nisso o perigoso avanço do Império sobre a República americana. As metáforas do Império e da República efetivamente ajudam a entender o que está acontecendo.
Bush seria a encarnação da vocação imperial dos Estados Unidos. Os interesses do Império (no caso, a estratégia geopolítica de controle do Golfo Pérsico e de suas reservas de petróleo) e a sua capacidade de garantir uma vida confortável a uma vasta classe média falam mais alto do que a convivência civilizada entre as nações (daí o total desprezo pela ONU e pelos “países amigos” de que fala Byrd) e do que os princípios da república democrática. Gore Vidal acredita que a própria condução de Bush ao poder, em dezembro de 2000, quando a Suprema Corte estuprou a Constituição para escolher como presidente o possível perdedor da eleição, abriu o caminho para o despotismo. “A velha República é uma sombra dela mesma, e vivemos sob a luz forte de um Império nuclear mundial com um governo que vê como seu verdadeiro inimigo a ‘nós, o povo’, destituídos de nosso direito eleitoral garantido”, afirma.
Os próprios fundadores dos Estados Unidos, conhecedores profundos da história do Império Romano e fortemente influenciados pelo Iluminismo francês, já demonstravam preocupação com a vocação imperial que impregnava a ideologia do Destino Manifesto. Thomas Jefferson dizia temer pelo futuro de seu país, ao refletir sobre a justiça divina. Benjamin Franklin, já perto da morte, em 1787, ao ler, pela primeira vez, a Constituição proposta à Convenção Constitucional, na Filadélfia, redigiu a seguinte nota: “Não existe forma de governo que não possa constituir uma benção para o povo se for bem administrada, e, ademais, acredito que esta [a forma proposta] deverá ser bem administrada durante muitos anos e poderá terminar no despotismo, como já fizeram outras formas antes dela, apenas quando o povo se torne a tal ponto corrompido que precise de um governo despótico, tendo se tornado incapaz de suportar qualquer outro”. Quase cem anos depois, no final da Guerra de Secessão (1861-65), foi a vez de Abraham Lincoln alertar contra o crescente poder corruptor das corporações – e de lembrar que contra elas, as corporações, foi feita a revolução de 1776.
“Por mais corrupto que nosso sistema tenha se tornado ao longo do último século – e eu vivi três quartos dele –, ainda nos apegávamos à Constituição e, sobretudo, à Carta dos Direitos [a declaração formal dos direitos dos cidadãos americanos, incorporada à Constituição por meio das emendas 1 a 10]. Por piores que as coisas ficassem, eu nunca imaginei que chegaria a ver grande parte da nação – nós, o povo - passar sem ser consultada ou representada numa questão envolvendo guerra e paz, nem deixar de se manifestar em grande número contra um governo arbitrário e conspirativo que prepara e conduz guerras para nós, ou, pelo menos, para que um Exército recrutado entre os desempregados possa combater nelas. Sim - dando prova de bom senso, eles agora deixam boa parte dos combates a cargo dos pouco instruídos, dos excluídos”, diz Gore Vidal.
As perspectivas, desse ponto de vista, são sombrias. Mas o seu desfecho ainda não está definido. Em 1940, as previsões de Adolf Hitler sobre o “Reich de mil anos” eram uma ameaça aparentemente factível; cinco anos depois, a Alemanha nazista estava em ruínas. Em 1991, o império soviético desabou com uma rapidez não imaginada sequer pelo mais alucinado futurólogo.
O conflito entre Império e República é um traço estrutural e permanente da hiper potência americana. Três décadas antes de Bush mentir para o povo americano e para o mundo a fim de deflagrar a invasão do Iraque, Richard Nixon mentiu para intensificar e ampliar a guerra na Indochina. Como Bush, ainda que em escala menor, Nixon tripudiou das liberdades e garantias constitucionais ao espionar seus adversários eleitorais – mas Nixon não completou o segundo mandato pois foi obrigado a renunciar quando o seu impeachment estava virtualmente concluído.
A história não chegou ao fim, nem pode ser domesticada. Há uma possibilidade de que Bush venha a ser lembrado como o coveiro da República americana; mas há também a possibilidade, nada pequena, de que se torne conhecido como um infeliz falastrão.
Boletim Mundo Ano 11 n° 4