O presidente Bush declarou Ali Saleh Kahlah al-Marri, de Peoria, Illinois, um combatente inimigo. Al-Marri foi preso logo depois de 11 de setembro de 2001 e indiciado por um grande júri federal por mentir para agentes do FBI sobre as datas nas quais ele viajou pelos Estados Unidos, as datas em que fez algumas ligações telefônicas e por estar de posse de alguns cartões de crédito falsos. Quando ele se recusou a colaborar com o Departamento de Justiça em sua investigação do terrorismo, como era seu direito, o secretário da Justiça, John Ashcroft, pediu a um tribunal para retirar a acusação contra ele, o que foi feito; pediu ao presidente Bush para declarar Al-Marri um combatente inimigo, o que ele fez na segunda de manhã; e então transferiu Al-Marri secretamente de uma instalação federal em Chicago para uma cela da Marinha na Carolina do Sul.
Al-Marri poderia padecer ali pelo resto de sua vida sem jamais ter sido condenado por um crime. Ele não tem acesso à família, amigos ou advogados, e talvez nunca veja um juiz, um júri ou um promotor. Na interpretação do governo para a lei, é possível que ele não venha a ser acusado, julgado ou condenado, e nesse período vai ficar detido em confinamento solitário.(Andrew P. Napolitano, em artigo publicado no Los Angeles Times e reproduzido em O Estado de S. Paulo em 7/7/2003)
Em janeiro começou a funcionar nos Estados Unidos o Departamento de Segurança Interna (DSI), uma agência gigante criada pelo governo Bush com o argumento de que era preciso centralizar e melhorar o uso de informações de inteligência.
O novo órgão emprega 170 mil agentes e burocratas e resultou de uma fusão de 22 agências já existentes a cargo da imigração, guarda costeira, programas de pesquisas de bio defesa, alfândegas etc. Sua criação foi possibilitada pela Lei do Fortalecimento da Segurança Interna, ou Patriot Act 2, em alusão ao primeiro Patriot Act, de 342 páginas, proposto pela Casa Branca 45 dias após os atentados de 11 de setembro de 2001.O “patriot” tem dois significados distintos, mas que reforçam a mesma idéia.
Patriot veio da junção das primeiras letras do “providing appropriate tools required to intercept and obstruct terrorism” (fornecendo os instrumentos adequados para interceptar e obstruir o terrorismo). Deixando de lado a infantilidade própria das historinhas de Disney, em que os sobrinhos escoteiros do Pato Donald vivem em um mundo simplificado ao extremo, descrito por siglas, patriot também significa “patriótico” – e isso explicita a idéia da defesa da pátria contra o terrorismo. É como se o terror viesse sempre “de fora” dos Estados Unidos, jamais como resultado de maquinações dos próprios americanos.
Claro que essa idéia não resiste aos fatos. Não foram estrangeiros que promoveram a matança da escola de Columbine, Colorado, em 20 de abril de 1999, imortalizada pelo irreverente diretor Michael Moore. Nem foram estrangeiros, mas sim o americano Timothy McVeigh que, em 19 de abril de 1995, praticou atentado à bomba que destruiu completamente um edifício na cidade de Oklahoma, matando ou ferindo centenas de pessoas. Até o 11 de setembro, Oklahoma era o pior ato terrorista praticado em território americano.
Mas é importante para a Casa Branca, com a conivência de uma mídia cada vez menos crítica, manter a idéia de que “o perigo vem de fora”, para possibilitar o apelo à unidade patriótica contra um inimigo difuso, que pode se esconder em qualquer parte e por todas as partes. Curiosamente, logo após as primeiras notícias sobre a tragédia de Oklahoma, os meios de comunicação passaram a especular sobre quem teriam sido os responsáveis. Surgiram, então, relatos de testemunhas que teriam visto perto do local pessoas “com aparência de árabes” mais ou menos na hora em que a bomba explodiu.
“Queríamos que os terroristas fossem estrangeiros, iranianos, iraquianos, não importa, jamais americanos”, disse o lojista americano Nick Pagonis, de Oklahoma.
O clima de pânico contra o inimigo difuso e onipresente é usado pela Casa Branca como instrumento político para concentrar poderes. Depois dos atentados de 11 de setembro, reforçar a segurança tornou-se um modo de vida nos Estados Unidos.
Disseminou-se o medo. Os alertas freqüentes a partir de ameaças que parecem, em grande parte, fabricadas funcionaram como senhas para golpes nas liberdades civis.Centenas de pessoas talvez até mais de mil, não há números oficiais foram presas sem qualquer respeito às normas legais.
Parentes e amigos sequer conseguiram as confirmações de nomes dos encarcerados pelo FBI, situação que permanece até hoje. Não existem acusações formais. Advogados não conseguem permissão para ultrapassar os muros das prisões. Os interrogatórios são secretos. Um brasileiro ficou nove meses preso sem saber porque e foi expulso dos Estados Unidos, também sem explicações, logo depois de solto.
O DSI tem poderes para controlar o uso da Internet, grampear telefones, monitorar viagens, vigiar atividades políticas, invadir fichas médicas, vasculhar contas em cartões de crédito, revistar casas e locais de trabalho. Como numa “república de banana”, os grampos e as buscas em residências independem de autorização judicial.
O Centro de Informação pela Privacidade Eletrônica denuncia o recurso “exagerado”, por parte do FBI, às chamadas “cartas de segurança nacional”. Por meio delas, cujos direitos de intromissão foram ampliados pelo Patriot Act, as investigações com o selo de anti-terroristas ficam praticamente livres de barreiras legais.
O “grande irmão” quer saber o que você está lendo e por isso o Patriot Act também se volta para bibliotecas e livrarias, cujos movimentos internos, de pessoas e livros, ficam na alça de mira. A Associação Americana pelas Liberdades Civis revela que, desde os atentados de 11 de setembro, mais de 80 grandes bibliotecas dos Estados Unidos foram “visitadas”. Mas o governo Bush não está satisfeito. Começou a implementar um “sistema de segurança nacional de entradas e saídas”. Não basta o rigor dos consulados americanos na concessão de vistos. O novo sistema permite mais investigações com o estrangeiro já nos Estados Unidos, por meio inclusive de apresentações obrigatórias às autoridades de imigração.
Bush também quer criar um “segundo” FBI, com a tarefa de espionar americanos e estrangeiros dentro dos Estados Unidos.
A CIA está proibida de fazê-lo, só pode atuar no exterior, e o FBI existente continuaria a cargo das investigações policiais.
Uma colunista do The New York Times, Maureen Dowd, escreveu que “o presidente americano toca em nossos nervos para ajudar a sua popularidade e reter o poder”.
O governo inclusive mobilizou certas categorias de seu funcionalismo, como os carteiros, para que observem e comuniquem movimentos “suspeitos”. Membros de um instituto de estudos de esquerda, de Washington, passaram a ser revistados com extremo vigor quando transitam por aeroportos.
Ser estrangeiro nos Estados Unidos, sobretudo com passaportes de países islâmicos, tornou-se condição de alto risco.
A oposição democrata ensaiou resistir no Congresso, sobretudo por pressões dos sindicatos em razão de problemas corporativos e não de direitos civis.
Não concordavam com regras impostas pelo governo Bush permitindo demitir e contratar livremente os agentes do DSI.
Mas essa resistência destituída de foco foi rala, durou pouco e não teve nenhum efeito.
No Senado, por exemplo, a votação foi de 94 a zero pró-DSI. Não havia “clima”: os democratas tinham perdido eleições parlamentares sob acusações de “frouxos” em segurança e a guerra contra o Iraque se aproximava.
O Centro pelos Direitos Constitucionais denuncia que tudo isso, sobretudo a onda de prisões, “é incompatível com um governo democrático”. E daí? Numa reunião do Conselho de Segurança Nacional Bush proclamou: “Não devo qualquer explicação a ninguém. É a parte interessante de ser presidente.”
Boletim Mundo Ano 11 n°4
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