sexta-feira, 13 de maio de 2011

O VÉU DA DISCÓRDIA

Cláudio Camargo

Eles não costumam ser muito vistos nas regiões turísticas de Paris, mas aglomeram-se em alguns bairros, como o Barbès-Rochechouart, e perambulam no metrô da cidade-luz. Originários de antigas colônias francesas do Magreb  Argélia, Marrocos e Tunísia mas também refugiados do Paquistão, da Turquia e de outros países asiáticos, os muçulmanos da França já somam cerca de cinco milhões de almas, dois milhões das quais ilegais, numa população de 60 milhões de habitantes, majoritariamente católica.
O islamismo já se transformou na segunda religião da França, atrás do catolicismo. “Depois das guerras de religião do século XVI, é a primeira vez que há uma grande distinção religiosa na França”, diz o professor Phillipe Moreau Defarges, do Instituto Francês de Relações Internacionais. No passado, a diferença religiosa e cultural traçava linhas divisórias entre países e civilizações – lembre-se que o avanço muçulmano rumo ao Ocidente europeu foi detido em Poitiers por um guerreiro cristão, o franco Charles Martel, no ano da graça de 732. Mas hoje o “choque de civilizações” entre o Ocidente rico e o Islã depauperado se deslocou para dentro das sociedades ocidentais, como a França.
Neste país orgulhoso de seus valores iluministas e republicanos, de sua tradição laica e de sua herança democrática, os clarins da “guerra santa” voltaram a soar em abril, quando o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, foi longamente apupado numa cerimônia da União das Organizações Islâmicas da França (UOIF) ao lembrar uma lei que obriga todos a exibirem o rosto descoberto em documentos de identidade – algo que enfurece os setores muçulmanos integristas. Um ex-presidente da UOIF, Abdalá ben Mansour, replicou furioso que tal exigência equivale à obrigação nazista de que os judeus se identificassem com uma estrela amarela no peito. O ministro da Educação, Luc Ferry, reagiu mexendo nas feridas nacionais ao declarar que a França estava diante de um novo tipo de anti-semitismo “que não vem mais da extrema-direita, mas da islamização e da radicalização da comunidade muçulmana”. De fato, os setores moderados vêm perdendo espaço para os islâmicos extremistas tanto no Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), que reúne várias entidades muçulmanas, como na até então moderada mesquita de Paris.
Na seqüência, o primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, propôs à Assembléia Nacional uma lei proibindo explicitamente o uso do véu nas escolas. Com isso, se pretende corrigir as ambigüidades de uma medida de 1989, quando o Conselho de Estado elaborou uma orientação, elaborada pelo então ministro da Educação, o socialista Lionel Jospin, que estabelece que o uso no véu “não é, em si, incompatível com o princípio da laicidade”. A determinação, no entanto, proíbe sinais religiosos que “pelo seu caráter ostentatório ou reivindicativo constituam um ato de pressão, provocação ou de propaganda”.
Essa determinação surgiu de um incidente com algumas alunas muçulmanas do colégio Gabriel-Havez, em Creil, que apareceram nas salas de aula usando o véu islâmico. Alegando defender o caráter laico do ensino público francês, a direção do estabelecimento proibiu a entrada das alunas, abrindo uma verdadeira caixa de Pandora. Desde a decisão proposta por Jospin, cada universidade tem autonomia para decidir como proceder.
Na prática, a explosiva tensão entre o caráter laico da escola pública e a reivindicação de liberdade religiosa permaneceu latente.
Como não poderia deixar de ser  afinal, estamos em Paris –, o ressurgimento da polêmica dividiu todo o espectro da política francesa. Mas o tradicional maniqueísmo que, no passado recente, colocava a esquerda na defesa do “respeito à identidade cultural” e a direita exigindo que os muçulmanos se integrassem na sociedade ocidental foi virado de pernas para o ar. O presidente Jacques Chirac, por exemplo, ficou em cima do muro, preferindo não endossar as iniciativas de seu primeiro-ministro conservador. Já o deputado socialista Jacques Lang, que no passado militava contra a interdição do véu, agora tem um projeto de lei que proíbe o uso de signos religiosos em estabelecimentos escolares públicos. Na mesma trincheira, contra os rostos cobertos, se alojam os ex-esquerdistas Régis Debray e Alain Finkielkraut e o conservador Jean-François Revel.
Polêmicas à parte, é inegável que a França está com medo do Islã e nem o fato de o país ter ficado frontalmente contra Tio Sam na guerra do Iraque diminuiu esse temor. Há anos a imigração vem gerando um alarme exagerado na Europa e na França e isso explica em parte a elevada votação do candidato ultra direitista Jean-Marie Le Pen, um xenófobo radical, na eleição presidencial do ano passado. Segundo uma pesquisa feita em fevereiro, nada menos que 60% dos franceses têm medo do crescimento do islamismo.
Umberto Eco disse certa vez que os ocidentais refletem sobre os limites de seu próprio pensamento analisando “la pensée sauvage” (o pensamento selvagem).
Pode ser. Mas a França forjou os valores republicanos enfrentando seus próprios demônios, como demonstram o caso Dreyfus (1894-1906) – quando a consciência democrática se levantou contra a reação anti-semita, monarquista e católica – a resistência gaullista e comunista contra o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra Mundial e a decisão da V República de conceder independência à Argélia em 1962, depois de anos de sangrentos combates coloniais.
Agora, depois de enfrentar a ameaça da ultra direita de Le Pen, os valores republicanos e universalistas de Marianne, o símbolo nacional francês, têm pela frente um desafio muito mais complexo. Trata-se de terçar armas com o irracionalismo multicultural – isto é, a idéia de que a sociedade democrática seja uma coleção de tribos étnicas ou religiosas – sem cair na tentação xenófoba.

Boletim Mundo  Ano 11 n° 4

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