No momento da Revolução Americana, as antigas colônias inglesas formaram uma confederação que, logo depois, se transformou em federação. Os territórios adquiridos ou conquistados durante a expansão para o oeste, no século XIX, aderiram à federação. Na Guerra de Secessão (1861-65), a classe de empresários capitalistas do norte derrotou os grandes proprietários de terras do sul, unificou economicamente o país e reforçou o poder do governo federal.
O ponto de partida brasileiro não foi muito diferente. As capitanias coloniais eram, na realidade, colônias distintas . Mas a Independência originou um Estado monárquico e unitário, não uma república federativa.
O Império do Brasil amalgamou as antigas capitanias, transformando-as em províncias.
A federação nasceu muito mais tarde, com a República, que transformou as províncias em estados. A grande federação da América do Norte serviu como modelo explícito: a primeira constituição republicana, de 1891, adotou a denominação de Estados Unidos do Brasil, que foi mantida até 1967.
Ao longo dessa trajetória, o problema da distribuição de poderes entre o governo central e os governos provinciais ou estaduais ressurgiu periodicamente, refletindo as divergências, atritos e acomodações no interior das elites econômicas e políticas. Esse é o pano de fundo histórico da crise atual do pacto federativo, expressa na complexa articulação da reforma tributária.
As capitanias gerais do século XVIII funcionaram como expressões políticas do poder e dos interesses das oligarquias regionais. A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, foi o primeiro ato de um processo conservador de emancipação política. A Independência de 1822 materializou o projeto de criação de um império escravista nos trópicos. A Constituição outorgada de 1824 consolidou a organização da monarquia unitária e hereditária.
Nos planos político e territorial, a monarquia empreendeu a construção da unidade, soldando as colônias herdadas da Coroa portuguesa. Para isso, ela teve que domesticar as oligarquias regionais, enquadrando-as nas instituições imperiais e subordinando-as à autoridade do Rio de Janeiro. O escravismo foi a solda que uniu as oligarquias regionais brasileiras. O interesse compartilhado na manutenção do trabalho cativo e do tráfico negreiro era ameaçado pela campanha internacional britânica contra o comércio de escravos. O Estado imperial funcionou como instrumento diplomático para enfrentar as pressões britânicas, conseguindo sustentar o tráfico até 1850 e a escravidão até 1888.
A Constituição de 1824, outorgada pelo imperador, definiu o Brasil como um Estado unitário. As províncias não dispunham de autonomia política e seus presidentes eram nomeados pelo poder central. No fundo, as oligarquias regionais sacrificaram a sua autonomia no altar de um interesse geral e comum, que era a manutenção da escravidão.
Mas a domesticação das oligarquias pela monarquia foi um processo turbulento, que agitou a política imperial durante todo o período da Regência (1831-40). O descontentamento das oligarquias e a revolta do povo provocaram a abdicação de D. Pedro I, em 1831. O governo central, acuado, acabou aceitando a eleição de deputados com poderes constituintes. O Ato Adicional, de 1834, criou Assembléias Legislativas provinciais dotadas de amplos poderes. O Conselho de Estado, que corporificava o centralismo imperial, foi abolido. O Brasil transformou-se, por um breve período, num “império federativo”.
O Golpe da Maioridade, de junho de 1840, revitalizou o poder central. Através da Lei Interpretativa do Ato Adicional, o Conselho de Estado foi restaurado, o poder das Assembléias Legislativas foi limitado e voltou a funcionar o Poder Moderador, que assegurava a precedência do imperador sobre o parlamento. Completava-se a trajetória de “construção da ordem”, ou seja, de edificação do Estado monárquico e unitário.
A Proclamação da República, em 1889, representou antes de tudo uma reação autonomista das oligarquias regionais.
Sem a escravidão, abolida um ano antes, o Império não tinha razão para existir. Depois da curta etapa de conflitos entre os cafeicultores e os militares positivistas, que durou até 1894, o novo regime assumiu as feições de um parque de diversões das oligarquias regionais organizadas nos partidos republicanos estaduais.
A República Velha (1889-1930) assinalou o auge do poder oligárquico e da autonomia dos estados. A “política dos governadores”, que se coagulou no revezamento do “café com leite”, entre São Paulo e Minas Gerais, funcionou como veículo para a captura do poder federal pelos grandes proprietários do núcleo geoeconômico nacional.
O pêndulo voltou a se inclinar para o lado do centralismo com a Revolução de 30, que decorreu da aliança dos militares com as oligarquias periféricas do Nordeste e do Rio Grande do Sul. O regime de Getúlio Vargas golpeou a oligarquia paulista, derrotando a Revolução Constitucionalista de 1932, e conseguiu implantar um poder central forte através do golpe do Estado Novo. A Constituição outorgada de 1937 definiu o Executivo como “órgão supremo do Estado”, conferiu ao presidente o poder de nomear interventores nos estados e eliminou o sufrágio direto para o parlamento.
Na verdade, a federação tornou-se uma farsa jurídica.
O fim do Estado Novo e a chamada redemocratização propiciaram a restauração do Estado federal, através da Constituição de 1946. Mas o processo de industrialização e integração econômica nacional, posto em marcha durante a “era Vargas”, transformou para sempre as relações entre o poder central e as elites regionais.
A nova elite industrial paulista afirmou a sua hegemonia econômica. As elites periféricas foram obrigadas a negociar favores junto ao poder central, utilizando como barganha os votos dos seus senadores e das suas bancadas de deputados federais. As velhas oligarquias nordestinas, cinicamente enroladas na bandeira da miséria regional, passaram a sugar recursos federais através de órgãos como o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf ).
O centralismo autoritário retornou com o golpe militar de 1964 e a Constituição de 1967, mas a redemocratização e a Constituição de 1989 restabeleceram o pacto federativo. Contudo, as regras do jogo nunca mais serão as do passado. O poder político concentra-se no governo federal. O poder econômico, no complexo financeiro e industrial de São Paulo.
Isso não significa que inexiste um jogo. O governo federal precisa de maioria parlamentar e os governadores exercem influência determinante sobre as bancadas na Câmara dos Deputados.
A “política dos governadores” sobrevive como uma sombra esmaecida, quase uma reminiscência da República Velha: não é casual que tanto a Reforma da Previdência quanto a Reforma Tributária tenham emanado de negociações entre Lula e os governadores.
Boletim Mundo Ano 11 n° 4
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