Dias antes de desfechar a invasão do Iraque, o presidente americano George W. Bush anunciou, sem nenhum entusiasmo, que patrocinaria um novo plano de paz para a Palestina. Na ocasião comentou-se que era um plano “para inglês ver” – ou seja, um agrado no primeiro-ministro britânico Tony Blair que, acuado pela opinião pública do seu país, precisava associar causas nobres à operação neo-imperial no Iraque.
Em parte era. Mas, hoje está claro, não era só isso. O “mapa do caminho”, nome bizarro do plano de Bush para a Palestina, foi posto em marcha desde a ocupação de Bagdá – e já mudou a paisagem política do conflito entre Israel e os palestinos. A Autoridade Palestina reorganizou sua estrutura de poder, escolhendo um primeiro-ministro, Mahmud Abbas, que começa a fazer sombra ao líder histórico Yasser Arafat. As três organizações que protagonizam o levante palestino os grupos fundamentalistas Hamas e Jihad Islâmica e o nacionalista Brigada dos Mártires de Al-Aqsa – aceitaram uma trégua de três meses. Em troca, o governo israelense de Ariel Sharon libertou seletivamente várias centenas de prisioneiros palestinos.Uma luz no fim do túnel? A retomada do caminho interrompido dos Acordos de Oslo?
Os avanços e recuos dos Acordos de Oslo, e a sua ruína final, dominaram a política da Palestina na última década. O “espírito de Oslo” consistia numa aproximação gradual entre os inimigos históricos. Mas as etapas da chamada “paz dos bravos” estavam razoavelmente definidas. Em princípio, aceitava-se a idéia da troca de “paz por terra” e visualizava-se um Estado Palestino na Faixa de Gaza e em quase toda a Cisjordânia. Os desacordos sobre fronteiras, Jerusalém e os refugiados acabaram provocando a implosão de todo o edifício .
O “mapa do caminho” não possui nenhuma das características de um plano de paz. Israel não se comprometeu com qualquer cronograma de retirada dos territórios ocupados. Não há menção a acordos sobre fronteiras, refugiados ou Jerusalém. Sequer há uma agenda nítida de temas a serem negociados. Genericamente, fala-se na criação futura de um Estado Palestino. Praticamente, o que existe são as exigências de uma liderança “confiável” para a Autoridade Palestina e do desmantelamento das “organizações terroristas” palestinas.
Sharon prometeu apenas libertar parte dos prisioneiros palestinos, reservando-se o direito de escolher quais permanecerão encarcerados, desmantelar colônias criadas desde março de 2001 e congelar os assentamentos existentes. O líder israelense já declarou que, de acordo com a sua interpretação, o “mapa do caminho” não impede a expansão “sem alarde” dos assentamentos em terras palestinas. Além disso, negou-se terminantemente a interromper a política de “assassinatos seletivos” de líderes palestinos acusados de incitar o terrorismo.
Os Acordos de Oslo nasceram da primeira Guerra do Golfo, em 1991. Naquela ocasião, George H. Bush, pai do atual presidente americano, montou uma vasta coalizão contra Saddam Hussein, que incluía o Egito e a Síria. O preço que pagou pela participação árabe na guerra ao Iraque consistiu na garantia de que os Estados Unidos forçariam Israel a negociar a paz com os palestinos. Isso foi feito: Israel sentou-se à mesa de negociação depois que Washington, de modo inédito, recusou-lhe a concessão de um empréstimo bilionário.
O democrata Bill Clinton deu seqüência à política do antecessor republicano. A paz negociada na Palestina aparecia, aos olhos de Washington, como o caminho para a difusão e estabilização da influência americana em todo o Oriente Médio. O plano atual tem origem completamente diferente, pois se inscreve na moldura neo-imperial da “guerra ao terror”. Não é fortuito que o “mapa do caminho” tenha sido lançado apenas após a invasão do Iraque.
A segunda Guerra do Golfo obedeceu à geopolítica de Washington para o Oriente Médio. Sob o disfarce da teia de mentiras das armas de destruição em massa e das ligações entre Saddam Hussein e Osama Bin Laden, os Estados Unidos buscavam reorganizar o balanço regional de poder. De um lado, tratava-se de combater a influência do fundamentalismo islâmico na Arábia Saudita. De outro, tratava-se de criar as condições para uma “paz dos vencedores” na Palestina.
O protetorado militar americano no Iraque serve de plataforma para a ofensiva contra as organizações palestinas. As ameaças de Washington ao Irã e à Síria destinam-se a remover os pontos de apoio externos para o extremismo palestino. A reforma forçada da Autoridade Palestina destina-se a isolar as lideranças associadas, simbólica ou praticamente, à resistência contra a ocupação israelense. O “velho guerreiro” Arafat deve dar lugar a um pragmático, capaz de fazer concessões inimagináveis há dez anos. Marwan Barghouti, líder da Fatah, o núcleo histórico da OLP, está encarcerado em Israel. O procurador-geral israelense, Elyakim Rubinstein, referiu-se a Barghouti como “arquiteto do terrorismo genocida”.
Arafat agarra-se à sombra de um poder que lhe escapa das mãos tentando promover um novo giro político, como os que no passado asseguraram a sua liderança Em julho, cumprindo exigência de Bush, republicou um decreto de 1998 da Autoridade Palestina ameaçando proscrever os grupos palestinos que “incitarem a violência”. Abbas promete desarmar o Hamas, a Jihad Islâmica e a Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, mas sabe que uma ofensiva de repressão poderia provocar uma guerra civil entre os palestinos. Na verdade, ele tenta se equilibrar na corda bamba, ganhar tempo, obter alguma concessão de Sharon e domesticar parte das lideranças extremistas.
As organizações armadas palestinas aceitaram a trégua sem terem sido convencidas de que existe um processo de paz em marcha. O seu recuo provisório é um reflexo do novo balanço de forças gerado pela invasão americana do Iraque. Elas evitam o confronto aberto no momento desfavorável. Apostam que o governo Sharon não quer e não pode oferecer nenhuma concessão significativa – e pretendem comprovar a intransigência israelense suspendendo por algum tempo os atentados suicidas.
O plano americano consiste em quebrar a espinha dorsal da resistência palestina. A “paz” se traduziria na proclamação de um Estado Palestino fragmentário, estabelecido em áreas isoladas por corredores de colônias israelenses. Esse “mapa do caminho” solicita muito mais que a reforma da Autoridade Palestina, com a entronização de uma liderança pragmática ou “confiável”. A sua condição prévia é a renúncia histórica dos palestinos a se constituírem como nação. Isso demanda um banho de sangue.
Boletim Mundo Ano 11 n° 4
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