sexta-feira, 24 de junho de 2011

GUERRA SEM FRONTEIRAS DEVASTA A ÁFRICA OCIDENTAL

As guerras da África Ocidental são, usualmente, registradas como tragédias circunscritas a cada Estado. Nesse mês, o foco recai sobre a Libéria. Alguns meses atrás, o conflito na Costa do Marfim recebia maior atenção. Antes disso, era a Guiné, e antes ainda, a Serra Leoa. Efetivamente, todas essas guerras estão interconectadas e não é possível compreender uma sem referência às outras.
Caso se enxergue a Libéria como uma calamidade isolada, o argumento para a intervenção militar americana é fraco. (...)
Caso, contudo, se enxergue a Libéria como um fósforo aceso numa vizinhança ensopada de petróleo, o argumento para extinguir a chama é muito mais forte.

(“A region in flames”, The Economist, July 5th 2003, p. 22)

“S e Deus quiser, voltarei”. Com essas palavras, no dia 11 de agosto, o ditador da Libéria, Charles Taylor, abandonou a presidência e abriu caminho para a entrada das forças de paz da Comunidade dos Estados da África Ocidental no país. Às forças africanas, lideradas pela Nigéria, somou-se um pequeno continente de tropas americanas. A presença dos Estados Unidos, responsáveis pelo recuo final de Taylor, é um atestado de que o conflito, com foco na Libéria, tem caráter regional e ameaça o equilíbrio geopolítico de toda a África Ocidental. No fundo, Washington quer evitar a desestabilização da Nigéria, o país mais importante da região e maior produtor de petróleo do continente africano.
Do ponto de vista estrutural, a instabilidade da África Ocidental é um reflexo do artificialismo dos seus Estados e das suas fronteiras, assim como dos antagonismos étnicos e culturais que atravessam cada um dos países. Contudo, foi em 1989, a partir da emergência da guerrilha liberiana de Taylor que se configurou uma verdadeira guerra regional. O saldo do conflito já é de cerca de 500 mil mortos, além de milhões de feridos e refugiados.
A elite de afro-americanos governou a Libéria, de modo implacável, desde a independência.
Essa elite, assimilando a visão de mundo dos colonizadores europeus, acreditava que a sua missão consistia em civilizar os nativos. O cristianismo e a cultura senhorial do sul dos Estados Unidos foram transportadas,  por mãos negras, para a nova pátria africana. Nas primeiras décadas do século XX, a “aristocracia negra” escravizou as populações locais. Depois, dedicou-se a modernizar o país, construindo estradas, fábricas, escolas e hospitais. Nos anos 70, a Libéria foi apontada como modelo de desenvolvimento econômico na África. Também era um modelo de corrupção: um antigo ministro chegou a escrever que se o anjo Gabriel fosse eleito presidente da Libéria, se tornaria “total e irrevogavelmente corrupto”.
O Estado liberiano permaneceu sob controle da elite afro-americana até 1980 quando, em meio a desordens e saques, o sargento Samuel Doe derruba o governo, executa o presidente e instaura a ditadura, prometendo libertar o povo pobre do domínio da elite urbana. Sob Doe, grande parte dos profissionais e trabalhadores qualificados foge do país. Escolas, fábricas e hospitais são virtualmente paralisados, enquanto o PIB per capita retrocede em cerca de 75%.
O regime desaba em 1990. Doe é capturado pelos rebeldes e executado. Mas uma intervenção internacional, liderada pela Nigéria e apoiada pela Serra Leoa, impede que a guerrilha de Taylor assuma o poder. Começava assim a guerra civil que se prolongou até 1997 e provocou um novo recuo pavoroso de quase 75% do PIB per capita liberiano.
Taylor, educado nos Estados Unidos, não representa a elite afro-americana da Libéria. Antes de tudo, chefia um clã guerreiro, cujos soldados são garotos descalços e bandos de saqueadores que, por razões místicas, usam máscaras ou vestidos de noiva e pintam-se com batom. Sob seu comando, a guerra se alastrou para além da Libéria. Um guerrilheiro associado, Foday Sankoh, avançou furiosamente sobre os campos de diamantes da vizinha Serra Leoa, matou algo em torno de 200 mil pessoas e deslocou expressiva parcela da população rural para Freetown, a capital do país. Em 2000, forças britânicas enviadas para proteger a missão de paz da ONU impediram a queda de Freetown e começaram a desmantelar os bandos rebeldes. Sankoh, preso e indiciado por crimes contra a humanidade, morreu no cárcere, de embolia pulmonar, em julho do ano passado.
Na Libéria, em 1997, um precário processo de paz desembocou em eleições gerais.
Aterrorizando eleitores, Taylor consegue três quartos dos votos e, mais do que isso, o reconhecimento da sua vitória pela Comunidade dos Estados da África Ocidental e pela ONU. Poucos meses depois, o país retornava ao caos e Monróvia tornava-se palco de bárbaros confrontos entre bandos armados.
Mas o chefe guerreiro liberiano jamais restringiu suas ambições às fronteiras do próprio país. Diante da derrota de Sankoh na Serra Leoa em 2000, Taylor reúne um exército heterogêneo – constituído por antigos rebeldes leoneses, tropas liberianas e oposicionistas guineenses – para invadir a Guiné. Ao lado da Nigéria, a Guiné funciona como pilar da ordem regional na África Ocidental e obstáculo aos sonhos de Taylor de estabelecer um potentado na Libéria e na Serra Leoa.
A aventura na Guiné assinalou o começo do fim para o senhor da guerra liberiano.
O governo guineense, contando com assistência militar americana e nigeriana, expulsa os rebeldes de seu território e passa a organizar e treinar as forças anti-Taylor, agrupadas no movimento Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia (LURD). A guerrilha da LURD avança rapidamente pelo norte e sul da Libéria, atingindo os subúrbios de Monróvia, isolando as forças de Taylor e criando as condições militares para a renúncia.
A renúncia de Taylor encerra o capítulo mais recente da guerra civil liberiana.
As forças de paz lideradas pela Nigéria e o envolvimento americano asseguram a organização de um novo governo, que terá a hegemonia da LURD. Mas nada disso modifica o cenário de instabilidade estrutural da África Ocidental.
De um lado, a Costa do Marfim foi atingida pelas fagulhas da guerra regional.
Tradicionalmente apontado como exemplo de estabilidade política, o país sempre soube administrar as tensões entre os grupos étnicos do sul e as etnias mais pobres do norte. O equilíbrio rompeu-se há um ano e um movimento rebelde, apoiado pelo regime da vizinha Burkina, assumiu o controle do norte. O avanço dos rebeldes acabou contido por forças de paz francesas e da Comunidade dos Estados da África Ocidental mas o país continua dividido em duas zonas militares.
De outro, o fantasma de Taylor continua a assombrar a região. O saque tornou-se um meio de vida para milhares de pessoas que, na última década, engajaram-se na guerra regional. Na Libéria, na Serra Leoa e na Guiné, os bandos de rebeldes mobilizados pelo senhor da guerra permanecem disponíveis para novas aventuras. Há indícios de que soldados dos exércitos de Taylor já se integraram à guerrilha do norte da Costa do Marfim.
O castelo de cartas dos Estados da África Ocidental está desabando em câmara lenta. O pilar que ainda o sustenta é formado por forças militares nigerianas, francesas, britânicas e americanas. Mas os “estrangeiros em armas” não podem substituir, por tempo indefinido, as instituições políticas que entraram em colapso.

ESTADOS SEM NAÇÕES
A África Ocidental, uma das regiões da África Subsaariana, compreende doze países localizados entre a foz do rio Senegal e a fronteira entre a Nigéria e Camarões. Todos eles são banhados pelas águas do Oceano Atlântico e situam-se na área do Golfo da Guiné .
A região compreende dois domínios naturais principais. Quase toda a porção litorânea pertence ao domínio das florestas tropicais pluviais, em grande parte devastadas pela ação antrópica. Esse domínio é conhecido como zona guineense. Mais para o interior encontra-se o domínio das savanas, sub-úmido, denominado zona sudanesa. Algumas partes da zona sudanesa sofrem uma intensificação do processo de desertificação, que resulta da combinação de anomalias climáticas e inadequada utilização dos solos. O rio Níger, com nascentes nos planaltos da Guiné, percorre um longo arco interior, penetra na região do Sahel e retorna à África Ocidental em território nigeriano, desembocando em amplo delta no sul do Golfo da Guiné.
Perfazendo uma extensão de aproximadamente 2,3 milhões de km2, os países da região abrigam um efetivo populacional de quase 240 milhões de pessoas. Metade dessa população habita a Nigéria, o país de maior superfície (924 mil km2), que concentra mais de 50% do PIB regional e lidera a Comunidade dos Estados da África Ocidental.
Do ponto de vista cultural, a África Ocidental é um verdadeiro mosaico de povos e etnias. É, também, uma área de contato entre seguidores de crenças ancestrais, denominadas animistas, do cristianismo (introduzido pelos colonizadores e missionários europeus) e do islamismo (difundido no passado pelos árabes do norte africano através das rotas do Saara). Na atualidade, o islamismo exibe dinâmica de crescimento e vigor renovado  entre as populações da região. A diversidade étnica, cultural e religiosa é um elemento de base dos inúmeros conflitos que se manifestam na África Ocidental.
Como o restante do continente, a África Ocidental sofreu o impacto do colonialismo europeu, que deflagrou o processo de configuração dos Estados contemporâneos. As linhas gerais da divisão colonial da África foram definidas na Conferência de Berlim (1884-85). A conferência  das potências européias deflagrou a corrida pela partilha africana, que se concluiria na última década do século XIX, quando foram firmados os tratados de delimitação das fronteiras. O traçado das fronteiras ignorou os espaços étnicos e culturais pré-existentes, apoiando-se em paralelos e meridianos ou acidentes naturais. No processo de delimitação, os divisores de águas foram utilizados com mais freqüência que os cursos fluviais, pois os rios serviam como eixos de penetração dos colonizadores no interior do continente.
Durante o período colonial, as metrópoles européias criaram divisões administrativas no interior de seus domínios. Essas divisões, quase sempre ligadas à distribuição das forças militares ou ao controle de cidades e enclaves de exploração mineral, viriam a servir em muitos casos como critério para o traçado das fronteiras dos Estados soberanos.
Grã-Bretanha, França e Portugal foram as potências coloniais da África Ocidental. A Libéria, criada por escravos libertos dos Estados Unidos em 1847, figura, ao lado da Etiópia, como os únicos países africanos que não conheceram colonização formal. À exceção dela, os países da África Ocidental alcançaram a independência após 1958 .
A Nigéria entrou na esfera de influência britânica no século XVIII, depois que os portugueses perderam a disputa pelo controle dos entrepostos litorâneos de tráfico de escravos. Mas o estabelecimento colonial ocorreu mais de cem anos depois, a partir da penetração pela bacia do rio Níger.
O tráfico escravista e, depois, a campanha contra o tráfico, asseguraram aos britânicos o controle de Gâmbia, Serra Leoa e Gana (a antiga Costa do Ouro). Fort James, no litoral de Gâmbia, funcionou como principal entreposto de escravos da África Ocidental no século XVIII. Freetown, a capital da Serra Leoa, foi fundada pelos britânicos em 1786, para receber escravos emancipados da América e Europa. O Togo é um caso à parte: colonizado pela Alemanha, tornou-se mandato franco-britânico após a Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Os outros países da região, com exceção das colônias portuguesas de Guiné-Bissau e Cabo Verde, conheceram a colonização francesa. Esses territórios foram reunidos em 1893 na África Ocidental Francesa, cuja capital instalou-se em Dacar (Senegal). O Daomé (atual Benin), antes de se tornar colônia francesa, era uma monarquia tribal sustentada pelo negócio do tráfico negreiro para a América Portuguesa. O poder da monarquia decorria da associação entre a elite local e os traficantes luso-brasileiros da chamada Costa dos Escravos. Em 1822, o Daomé tentou incorporar-se ao Império do Brasil mas a operação esbarrou na oposição de franceses e britânicos.
A descolonização da África Ocidental representou a substituição do poder das metrópoles pelo das elites africanas locais que, como regra, ocupavam os cargos intermediários na administração colonial. De modo geral, essas elites representavam apenas um dos grupos étnicos do novo país e excluíam por completo as etnias rivais. Os casos mais dramáticos são a Serra Leoa e a Libéria: nesses países, as elites “nacionais” são formadas pelas minorias de antigos escravos transferidos da América do Norte, Europa ou outros países africanos.
Os afro-americanos da Libéria, que perfazem menos de 5% da população, mantiveram o poder político desde a independência, em 1847, até 1980.
Os antagonismos entre grupos étnicos e culturais pontuam a vida política de quase todos os países da região. Na Nigéria, um complexo mosaico de etnias e religiões, esses antagonismos degeneraram na sangrenta Guerra de Biafra (1967-70), na qual podem ter morrido até 2 milhões de pessoas. O complexo quadro dos conflitos regionais abrange também as disputas pela exploração dos expressivos recursos naturais da África Ocidental: diamantes, ferro, madeiras nobres, petróleo e ouro .

Boletim Mundo Ano 11 n° 5

VIAGEM À “IDADE DA PEDRA” DE 1973

Enquanto os judeus celebravam o Yom Kipur, o Dia do Perdão, em 5 de outubro de 1973, mais de 800 mil soldados egípcios cruzavam o Canal de Suez, dando início, de surpresa, a uma guerra pela reconquista de territórios árabes perdidos aos israelenses quase sete anos antes. A Guerra do Yom Kipur, como seria conhecida, terminou 19 dias depois. Mas apenas começava outra crise – dessa vez econômica – que paralisaria quase todo o mundo, lançando também o temor generalizado de que um planeta movido a petróleo estaria para sempre à mercê dos principais produtores do combustível.
No dia 17 de outubro, quando a guerra no deserto se inclinava para o lado de Israel, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em conferência no Kuwait, decretava um embargo do fornecimento aos Estados Unidos e à Europa Ocidental, acusados de apoiar a ocupação israelense de territórios árabes.
As conseqüências foram terríveis. Em poucas semanas, países industrializados que dependiam do petróleo importado literalmente pararam. Os noticiários de TV mostravam cenas de estradas vazias. Aconteceram, até, reações patéticas: a Holanda, com suas fábricas paralisadas, decidiu solenemente bloquear as exportações de tulipas aos países árabes...
O embargo durou apenas dois meses, mas aquele mundo que rodava à base do petróleo barato jamais seria o mesmo. A OPEP retomou as exportações promovendo um “choque de preços” e o barril de petróleo, que custava US$ 2,29 em 1972 e US$ 5,11 no início da guerra, atingiu US$ 11,65 em dezembro. O “choque de preços” arrebentou as finanças de muitos países, desequilibrando as contas externas das economias industrializadas e, mais ainda, dos países em desenvolvimento.
O Brasil, que importava 78% do petróleo consumido, viu o saldo da balança comercial, positivo há uma década, inverter de sinal. Em 1974, o déficit no comércio externo alcançou US$ 724 milhões.
A primeira crise do petróleo, como ficou conhecida, repercutiu além da economia, invadindo a esfera das concepções de mundo. A crença no progresso permanente das sociedades industriais foi ferida de morte. Nascia o movimento ecológico contemporâneo, que se expressou pela emergência dos partidos verdes europeus e a ativação da “diplomacia ambiental”. A crítica ecológica à queima desenfreada de combustíveis fósseis misturou-se com o mito do esgotamento iminente das reservas mundiais de petróleo.
O Departamento de Energia dos Estados Unidos chegou a profetizar o apocalipse, prevendo que a escassez física das reservas se refletiria em preços de até US$ 250 por barril na virada para o século XXI. O mundo lançou-se à busca de fontes alternativas de energia. O Brasil, ainda sob regime militar, mergulhou em 1975 no Proálcool, um plano ambicioso destinado à produção massiva de veículos movidos a álcool, combustível menos poluente, renovável e que, imaginava-se, logo substituiria o petróleo nos carburadores verde-amarelos.
O mundo ainda sofreu uma nova crise do petróleo no final dos anos 70, quando a Revolução Islâmica no Irã paralisou as exportações do então segundo maior produtor mundial. Mas o panorama energético global e a política mundial do petróleo evoluíram em direções que poucos imaginavam naqueles dias da “Idade da Pedra” de 1973.
O mito do esgotamento do petróleo desabou sob o impacto da descoberta de novas reservas. As prospecções, turbinadas justamente pelos “choques de preços”, revelaram vastos depósitos no Mar do Norte, na China, na África, na Bacia do Cáspio e, principalmente, no próprio Golfo Pérsico. As reservas comprovadas de petróleo cresceram mais de duas vezes e meia em vinte anos . O Brasil, que em 1973 produzia 155 mil barris/dia, atingiu 1,45 milhão de barris/dia em 2002, aproximando-se da auto-suficiência.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, superpotência militar e maior consumidor mundial de petróleo, formularam uma estratégia e uma geopolítica destinadas a assegurar o fornecimento ininterrupto do combustível para as economias ocidentais. O núcleo da estratégia consistiu numa aliança especial com a Arábia Saudita e, através dela, com os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG). A Arábia Saudita passou a funcionar como uma espécie de torneira de segurança.
Nos momentos de aumento da demanda, os sauditas utilizam a sua capacidade ociosa para aumentar a oferta, regulando assim os preços. Não é casual que, na última década, a crise da monarquia saudita gerada pelo fundamentalismo islâmico tenha passado a figurar como prioridade máxima da política externa de Washington.
É verdade que, desde o “choque” de 1973, os preços internacionais do petróleo nunca foram os mesmos.
Mas a violenta oscilação para cima deu lugar, desde meados da década de 80, a uma curva para baixo e a uma  certa acomodação instável . Ao longo do tempo, a tensão constante no Oriente Médio – a Guerra Irã-Iraque (1980-88), a primeira Guerra do Golfo (1991) e a segunda Guerra do Golfo (2003) –encheram as impressoras de altos-e-baixos nas cotações do combustível. Mas a economia mundial conseguiu absorver as flutuações e os preços se mantiveram em níveis administráveis. Depois de 1991, o embargo internacional contra o Iraque de Saddam Hussein não teve grandes conseqüências, a não ser, é claro, para a própria economia iraquiana.
Globalmente, a matriz energética sofreu mudanças razoavelmente significativas, mas o petróleo não foi substituído no seu trono: em 1973, respondia por 47% do consumo mundial de energia; hoje, representa ainda quase 43%. O carvão mineral caiu muito mais, de quase 14% para menos de 8%. As principais fontes substitutas, contudo, são o gás natural e, principalmente, a hidroeletricidade, cuja participação saltou de menos de 10% para quase 16%. As fontes alternativas, como a solar e a eólica, experimentaram crescimento mas ainda representam menos de 4% do total .
Trinta anos depois do susto provocado pelo rugido do leão da OPEP e pelo bafo na nuca do dragão da escassez de petróleo, os dois animais parecem ter se transformado em singelos bichinhos de estimação. O que sobrou da “Idade da Pedra” instalada há três décadas, em 1973? Sobrou a crítica ecológica à queima de combustíveis fósseis – agora adensada pelas provas do aquecimento global.

Boletim Mundo Ano 11 n° 5

EUROPA 40 GRAUS

No domingo, 10 de agosto, em sua residência de verão em Castelgandolfo, o papa João Paulo II exortou os fiéis a “pedir fervorosamente ao Senhor que conceda à sedenta terra o frescor da chuva”.
Talvez seja mesmo preciso a interferência divina para refrescar o velho continente, varrido por ondas de calor de proporções avassaladoras e com os reservatórios de água chegando a limites perigosamente baixos. Mas nem o papa acredita que o fenômeno seja de ordem celestial: a “irresponsabilidade do homem, que destrói um patrimônio precioso” foi eleita como a causa maior da tragédia.
No mesmo dia em que o Vaticano pedia clemência aos céus, os termômetros registravam recordes históricos de temperatura, em diversas regiões do continente. No Alentejo, em Portugal, a marca dos 45 graus estava sendo ultrapassada pela primeira vez, enquanto a cidade de Roth, próxima à famosa Nuremberg (Alemanha) sufocava com mais de 40 graus medidos na sombra e Londres ardia com mais de 38 graus. Em editorial, a sisuda revista britânica The Economist sugeriu aos londrinos procurar trégua em “climas mais amenos como os do Cairo e Delhi”. O sol e o calor, que costumavam ser recebido com festa pelos povos europeus, já haviam se transformado em sintomas de calamidade.
Para nós, brasileiros, pode ser difícil entender a razão de tanto pânico. Afinal, estamos acostumados a realizar nossas atividades cotidianas sob temperaturas elevadas. Entretanto, tanto as populações quanto as infra-estruturas européias não estão adaptadas a tanto calor. No caso deles, as conseqüências são efetivamente dramáticas.
Estima-se que, somente na França, mais de 5 mil pessoas possam ter morrido em conseqüência do calor, gerando uma crise sem precedentes no sistema de saúde do país. A insolação afeta principalmente os mais idosos, que passam longos períodos em residências – as quais, como é comum na Europa, foram projetadas para conservar. Afinal, pensar em casas e apartamentos “ventilados” não teria sentido no continente temperado. Também as escolas e os prédios públicos não são equipados para funcionar em condições de temperatura elevada, quando se transformam em verdadeiros fornos. Em toda a Alemanha, por exemplo, as autoridades recomendam que as crianças sejam liberadas das aulas quando as temperaturas atingem a marca dos 25 graus e, em Berlim, os funcionários municipais são dispensados quando o calor supera os 29 graus. Regras assim, aplicadas ao Rio de Janeiro, degenerariam em férias quase permanentes.
Nos bosques europeus, em especial naqueles situados próximos ao mar Mediterrâneo, a combinação explosiva do calor com a seca gera incêndios de grandes proporções. Mais de 1.750 km2 cobertos por matas ou vegetação mediterrânea foram atingidos pelo fogo entre 25 de julho e 15 de agosto, a maior parte na Itália, Espanha, França e Portugal.
É bem verdade que o calor e a seca não agiram sempre sozinhos: uma parcela da devastação resultou da ação de proprietários inescrupulosos, que tocam fogo propositalmente em suas terras para receber indenização das companhias de seguro. Na Itália e em Portugal, dezenas de incendiários foram presos. Na Alemanha, a situação foi um pouco menos grave, mas também lá algumas reservas florestais tiveram que ser fechadas para os visitantes, devido a focos de incêndio que ameaçavam se alastrar.
O sistema de geração de energia também foi profundamente abalado pelas condições atípicas do verão europeu, ao mesmo tempo em que o  aumento do uso de ar condicionado, refrigeradores e ventiladores fazia crescer a demanda energética. Devido à seca, a água tornou-se insuficiente para movimentar as usinas hidrelétricas italianas instaladas no Rio Pó. Na França e na Alemanha, o problema concentrou-se na elevada temperatura das águas fluviais, que inviabilizaram o sistema de resfriamento necessário para o funcionamento da rede de usinas nuclearas. Na Holanda, o sistema elétrico trabalhou em condições de “alerta vermelho”. E, como a crise afetou todo o continente, não havia como “emprestar” energia do vizinho em caso de colapso da oferta nacional. Em trechos dos rios Danúbio e Elba, até mesmo a navegação teve que ser interrompida pela falta de água. Dois navios afundados na Segunda Guerra Mundial, na Romênia, emergiram das águas rasas do Danúbio. Embarcações em trânsito lutaram para não encalhar. O rio Elba, que na enchente do verão passado atingiu 9,40 metros de profundidade, estava com 81 centímetros em meados de agosto.
Com esse calor todo, até mesmo as geleiras supostamente eternas dos Alpes começaram a derreter.
Em Zermatt, uma vila turística suíça situada a 1,6 mil metros de altitude, os termômetros ultrapassaram a marca dos 33 graus. Deslizamentos e avalanches se tornaram rotineiros, causando a morte de mais de uma dezena de alpinistas e abalando as estruturas dos teleféricos, construídos sobre as geleiras. Em apenas duas semanas, mais de 1,6 milhão de metros cúbicos de gelo foram derretidos na Áustria, enquanto o recorde anterior era de 3,2 milhões de metros cúbicos em um ano.
As águas dos mares também experimentaram aquecimento excepcional: o Mediterrâneo se transformou em verdadeira “banheira”, chegando a 32 graus, e mesmo as águas profundas dos mares do Norte e Báltico aqueceram-se  4 graus acima do normal.
Na esfera da ciência climática, o verão europeu esquentou a polêmica sobre o aquecimento global.
Os especialistas são quase unânimes em afirmar que há relação entre o aumento da concentração de gases de estufa na atmosfera – em especial o dióxido de carbono – e a sucessão de eventos climáticos extremos que sacodem o planeta a intervalos cada vez mais curtos. A constatação é estatística: nove entre os últimos doze verões da Europa estiveram entre os mais quentes desde que começaram os registros.
As metas de redução das emissões dos gases de estufa, estabelecidas pelo Protocolo de Kioto em 1997, parecem mais urgentes do que nunca. Mesmo assim, os Estados Unidos, principal poluidor do mundo, recusam os termos do protocolo e propõem, em troca, um vago programa de redução voluntária, gradual e flexível das emissões de gases. Washington esclarece, mais uma vez, que a economia americana é prioritária em relação ao clima global.
Os modelos de simulação criados em respeitáveis centros de estudos climáticos europeus são implacáveis. Eles nos dizem que os episódios de fortes desequilíbrios climáticos, que costumavam ocorrer uma vez por século, deverão se repetir duas vezes a cada três anos, a partir de 2100.
Resta saber quem vai conseguir manter o sangue frio diante da catástrofe anunciada.

Boletim Mundo Ano 11 n° 5

CRISE COREANA AMEAÇA EQUILÍBRIO MILITAR NO EXTREMO ORIENTE

O programa nuclear da Coréia do Norte não representa perigo militar direto para os Estados Unidos mas aprofunda a percepção de insegurança do Japão e repercute sobre as delicadas relações entre Tóquio e Pequim.
George Bush colocou a Coréia do Norte junto com o Iraque, no “eixo do mal”. Mesmo sem dispor de armas de destruição em massa, como hoje se sabe, o Iraque foi bombardeado, invadido, ocupado e submetido a protetorado militar informal dos Estados Unidos.
A Coréia do Norte, que anuncia aos quatro ventos que seu programa nuclear encontra-se em estágio avançado, foi convidada por Washington a sentar à mesa de negociações, ao lado da Coréia do Sul, do Japão, da Rússia e da China. Dois pesos e duas medidas?
Iraque e Coréia do Norte estão juntos na retórica de Bush, mas separados na estratégia dos Estados Unidos. O Iraque participa do subsistema do Golfo Pérsico e da geopolítica do petróleo. A Coréia do Norte, do subsistema do Extremo Oriente e do delicado equilíbrio entre a China e o Japão. O Iraque não tinha exército operacional. A Coréia do Norte tem – e, além disso, dispõe de mísseis de médio alcance e, talvez, de algumas ogivas nucleares. O Iraque pode ser ocupado.
A Coréia do Norte não, pois é vizinha da China.
Coréia do Norte e Coréia do Sul são frutos da Guerra Fria. A Coréia do Sul, Tigre Asiático, atingiu a condição de terceira economia do Extremo Oriente. A Coréia do Norte, ao contrário, é uma ruína econômica e direciona seus parcos recursos para o orçamento militar. Kim Jong Il, filho e sucessor de Kim Il Sung, que morreu em 1994, recebeu um país em crise terminal. Em 1995, a perda da safra agrícola resultou em pavorosa tragédia: calcula-se que mais de um milhão de camponeses tenham morrido de inanição.
O programa nuclear norte-coreano foi lançado com a clara finalidade política de assegurar a sobrevivência da ditadura de Kim Jong Il. Em troca do congelamento do programa, a Coréia do Norte conseguiu assistência financeira dos Estados Unidos e uma promissora distensão das relações com a Coréia do Sul, inaugurada no ano 2000. Washington e Seul engajavam-se na sustentação do moribundo regime comunista para evitar que o Japão fosse levado a reagir à nuclearização norte coreana desenvolvendo seu próprio programa nuclear.
A Doutrina Bush derrubou o castelo de cartas.
Desde o discurso do “eixo do mal”, no início de 2002, a Coréia do Norte retomou o desenvolvimento de mísseis de alcance intermediário e de ogivas nucleares.
Durante a ofensiva americana no Iraque, o regime norte-coreano anunciou publicamente seu programa nuclear e pediu negociações diretas com Washington. Kim Jong Il faz da assinatura de um tratado de não-agressão com os Estados Unidos a condição prévia para uma eventual desistência de suas ambições nucleares.
É uma aposta perigosa, mas sustentada por claro raciocínio estratégico. Coréia do Sul e Japão não podem conviver com uma Coréia do Norte nuclearizada. O Japão, gastando apenas pouco mais de 1% do PIB com as forças armadas, já exibe vultoso orçamento militar . O engajamento japonês numa corrida nuclear representaria ameaça direta à segurança da China e reativaria velhos temores na própria Coréia do Sul.
Washington entrou no jogo rangendo os dentes e vociferando, mas cuidadosamente tateando os caminhos da diplomacia. No primeiro capítulo, instalou um impasse, exigindo o desmantelamento do programa nuclear como condição para negociações em formato multilateral. No capítulo seguinte, cedeu um pouco, aceitando a idéia de que as negociações possam preceder ao desarmamento.
A Coréia do Norte também sabe que precisa jogar. Nos primeiros dias de agosto, arquivou a exigência de negociações bilaterais, admitindo sentar-se à mesa com americanos, russos, chineses, japoneses e sul coreanos.
Os seis reúnem-se em Pequim, em busca de uma saída para o impasse. É um pequeno avanço mas, nas palavras do jornal oficial China Daily, “não há muitos motivos para otimismo”. Chineses são sábios.

Um front da Guerra Fria
Durante séculos, a Coréia foi objeto de disputas entre chineses, mongóis, japoneses e russos. No final do século XIX, tornou-se alvo do expansionismo do Japão Meiji. As guerras Sino-Japonesa (1894-95) e Russo-Japonesa (1905), abriram caminho para a anexação da península coreana pelo Japão, em 1910. A potência ocupante engajou-se em desenfreada repressão, procurando destruir a cultura coreana e suprimir a língua nacional. O trauma da prolongada ocupação manifesta-se ainda hoje sob a forma de arraigada hostilidade coreana em relação aos japoneses.
Em 1945, a ofensiva quase simultânea das forças soviéticas, no norte, e americanas, no sul, libertou a Coréia da ocupação japonesa. Em seguida, o país foi dividido em duas zonas provisórias de ocupação, que deveriam ser reunificadas em poucos anos. Contudo, a deflagração da Guerra Fria provocou a implosão das negociações e, em 1948, as zonas de ocupação deram lugar a dois Estados rivais, separados pelo paralelo de 380 N. A Coréia do Norte, sob o regime comunista de Kim Il Sung, alinhou-se com a União Soviética, enquanto a Coréia do Sul era incorporada à esfera de influência asiática dos Estados Unidos.
A Revolução Chinesa, de 1949, aprofundou as tensões na península coreana. A Guerra da Coréia estalou em junho de 1950, com a penetração, através do paralelo 38, de tropas norte-coreanas decididas a reunificar o país. Aparentemente, a Coréia do Norte tinha o beneplácito de Moscou e Pequim, que não acreditavam numa intervenção americana. Contudo, aproveitando o boicote soviético ao Conselho de Segurança, Washington fez aprovar a intervenção de forças da ONU no conflito coreano.
As tropas americanas e aliadas, sob a bandeira das Nações Unidas, desembarcaram na península e empreenderam uma funda contra-ofensiva em território norte-coreano, até as proximidades da fronteira chinesa.
A irrupção das forças armadas chinesas na guerra, apresentadas oficialmente como destacamentos de voluntários, modificou radicalmente a situação militar. O recuo das tropas americanas conduziu, em dezembro, o front de volta ao paralelo 38. A estabilização do front perdurou até o início de 1953. Então, a morte do ditador soviético Stalin abriu caminho para a conclusão do armistício de Panmunjon, que produziu um cessar-fogo permanente. A ausência de um tratado de paz transformou o front do paralelo 38 numa fronteira instável entre Estados que, tecnicamente, continuam em guerra.

Boletim Mundo Ano 11 n° 5

DE TIM LOPES A BEIRA-MAR, UM RELATO DO CRIME ORGANIZADO

Roberto Candelori

O combate à violência, além da sua dimensão policial, tem uma dimensão política, pois o alimento das organizações criminosas é a exclusão social. Essa é a raiz do “poder paralelo” nas favelas e periferias das metrópoles.

Antônio Lopes do Nascimento, o Tim Lopes, foi executado de forma brutal pelo líder do Comando Vermelho (CV), Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, quando preparava uma matéria sobre o abuso de menores e o tráfico de drogas nos bailes funk. Em todo o país e, principalmente, no Rio de Janeiro ocorreram manifestações de repúdio à violência e à obstrução ao trabalho da imprensa.
No entanto, o caso Tim Lopes evidencia algo mais: o “poder paralelo”, que julgou e executou o jornalista, desafia o poder constituído. Nos limites dos territórios sob o domínio dos “donos dos morros”, líderes do crime organizado, vigoram suas próprias leis.
Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, conhecido personagem do narcotráfico e do crime organizado, perambulou por várias prisões de “segurança máxima” do país entre fevereiro e abril de 2003. Detido no presídio de Bangu I, no Rio de Janeiro, foi transferido para Presidente Bernardes, no interior do estado de São Paulo, depois que o governador Geraldo Alckmin aceitou abrigar Beira-Mar pelo período de 30 dias. Vencido o prazo, seguiu para a Superintendência da Polícia Federal em Maceió. O périplo de Beira-Mar, pontuado pelas recusas dos governadores em aceitar sua presença nas penitenciárias dos estados, denuncia a precariedade do modelo prisional brasileiro.
Duas faces da mesma moeda. A ousadia crescente do crime organizado e a impotência do poder constituído revelam a moldura do embate que se trava atualmente entre o Estado e as organizações criminosas. O envolvimento de agentes do Estado com a corrupção, a superlotação dos presídios, a infiltração do crime organizado nas esferas do poder público e a impunidade são peças do intricado quebra-cabeças ao qual está subordinada a segurança de cada cidadão.
O crime organizado é responsável pela movimentação de grandes quantias de dinheiro, fruto dos seqüestros, assaltos a banco e tráfico de drogas . Também está ligado ao contrabando de armas e, mais recentemente, à receptação de carga roubada. Os grupos que hoje comandam o crime no país surgiram no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, na década de 70.
Entre as principais organizações estão o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, no Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital, o PCC, de São Paulo.
Eles reúnem milhares de criminosos sob rígido regime hierárquico de compromissos e responsabilidades.
Para ingressar no PCC, o presidiário deve fazer seu “batismo” com sangue e comprometer- se com os “irmãos da prisão”, por meio de advogados, dinheiro, ajuda aos familiares e ações de resgate.
Mesmo trancafiados, os líderes asseguram uma teia de contatos que liga o mundo das prisões com as atividades das ruas. Das prisões, planejam e comandam as operações externas, orientam os “negócios” e controlam as organizações contando com a cumplicidade de agentes penitenciários, que subornados ou ameaçados, se envolvem nos mecanismos do crime organizado. Renovando-se através da cooptação de novos elementos, essas organizações têm poder de resistência surpreendente e suas atividades criminosas representam dilema quase insolúvel para as autoridades.
O enfrentamento direto que, cada vez mais, descamba para a troca de tiros em locais urbanos, é modalidade de combate com grande visibilidade pública, mas não funciona como solução permanente.
Sem políticas públicas de inclusão social, os jovens carentes acabam seduzidos pelo dinheiro “fácil” do narcotráfico. A esse respeito, vale a pena conferir o filme “Cidade de Deus”, de Fábio Meireles.
Outro desafio encontra-se no sistema carcerário. Para que os presídios brasileiros não continuem sendo uma linha de produção da delinqüência, seriam necessárias providências como a recuperação salarial dos agentes penitenciários, a solução do problema da superlotação nas prisões e, principalmente, a implementação de programas de ressocialização capazes de inserir os ex-detentos na sociedade.
Também é flagrante a necessidade de uma reformulação na polícia. Melhores salários e preparação mais adequada dos policiais, campanha de valorização profissional para mudar a imagem social dos “homens de farda” são aspectos que poderiam contribuir para reduzir os índices de corrupção na corporação. Outras alternativas vêm sendo discutidas, como a unificação das polícias civil e militar e maior cooperação entre o governo federal e as autoridades dos Estados e municípios na formulação de políticas de segurança.

Origem do Comando Vermelho
Símbolo do crime organizado, o Comando Vermelho (CV) transformou-se numa griffe do crime e embala a imaginação dos jovens moradores dos morros cariocas que sonham alcançar o status de membro do CV – o que, acreditam, lhes traria poder, reconhecimento e proteção.
O Comando Vermelho surgiu no final da década de 70, no presídio Cândido Mendes (RJ), do convívio de detentos comuns com os militantes da Falange Vermelha, facção armada que lutava contra o regime militar. Segundo William da Silva Lima, o “Professor”, um dos fundadores da organização, “quando foi criado, o CV não era uma organização, mas um comportamento contra as arbitrariedades do sistema prisional.”. Apoiada no lema “Paz, Justiça e Liberdade”, na sua origem a facção mesclava criminalidade com idéias de justiça social, criando um código de ética dentro dos presídios.
A organização adquiriu suas feições atuais em meados dos anos 80, quando a cocaína entrou no Rio de Janeiro e foi substituindo a maconha. O comércio dessa droga, que movimenta milhões de dólares, transformou o crime em “organizado”, isto é, dotado de uma hierarquia de poder.

A execução de Marcinho VP
O assassinato do traficante Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, em julho último, no presídio de Bangu 3, reacendeu a polêmica sobre o excessivo destaque que a imprensa confere aos líderes do crime organizado. A trajetória de Marcinho VP é descrita, minuciosamente, nas páginas da obra Abusado, o dono do morro Dona Marta, do jornalista Caco Barcelos, que acaba de ser lançada pela editora Record.
Suspeita-se que Marcinho VP foi executado pela própria organização da qual fazia parte, o CV, em razão de ter se transformado numa “estrela” da vida marginal e revelado os meandros da organização. Abusado, uma reportagem policial, é leitura indispensável para conhecer com mais profundidade os mecanismos de funcionamento do crime organizado nos morros cariocas: a estrutura de distribuição das drogas, as disputas em torno do controle dos pontos de comércio, os fatores que levam centenas de jovens a se envolverem com a vida do crime.

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PAÍS DESEMPENHA FUNÇÕES CRUCIAIS NA REDE DO NARCOTRÁFICO

Wálter Fanganiello Maierovitch

O Brasil funciona como corredor de trânsito, mercado consumidor, centro produtor de insumos industriais e foco de “lavagem” de dinheiro para o narcotráfico. Atrás do fenômeno das drogas há uma poderosa rede de negócios que abrange os mercados financeiro e imobiliário.

A máscara é a melhor imagem para representar o fenômeno das drogas proibidas. No antigo teatro romano, a máscara chamava-se persona (pessoa), porque ela conseguia ressoar, ecoar, a voz de alguém. Como acontece  com as drogas, poucos se interessavam em saber o que estava por trás, encoberto pela máscara.
A política militarizada americana, batizada de Guerra às Drogas, é exemplo de como a droga mascara interesses imperiais e econômicos, com tudo realizado a pretexto de cooperação internacional. O Plano Colômbia, que completou três anos em julho de 2003, está causando danos ecológicos irreversíveis. As áreas de cultivo migraram para o Peru e a Bolívia, que triplicaram a produção. Na verdade, o Plano volta-se a estabelecer uma cabeça-de-ponte americana naquele país andino, conhecido, entre outras riquezas, pelas reservas petrolíferas, biodiversidade inexplorada, jazidas de esmeraldas e metais preciosos. A Colômbia é, também, a segunda maior reserva mundial de água doce.
Os botânicos já catalogaram 80 mil espécies de plantas. Encontraram em 4 mil delas propriedades psicoativas (exemplo: coca), depressivas (exemplo: o ópio tirado da cápsula da papoula) e perturbadoras (exemplo: a maconha). Dessas 4 mil, o homem faz uso de apenas 60 – entre elas o tabaco, o café, o chá, a coca, a cannabis e o ópio. E aí se deve incluir alguns fermentados da uva (vinho), do arroz (saquê), da cana-de-açúcar (aguardente), etc. Nos Andes, para suportar a altitude, o frio e a falta de alimentos, costuma-se mascar a folha de coca. A coca faz parte da identidade cultural do povo andino.
Perde-se no tempo o emprego – terapêutico, lúdico, místico, ritualístico e recreativo – das plantas com propriedades capazes de atuar no sistema nervoso central. Heródoto, o grego do século V a.C. alcunhado o “pai da História”, já mencionava o emprego de droga em rituais fúnebres. A pequena figura em cerâmica com bochechas dilatadas, que representa o mascador de coca andino, data de 1600 a.C. Essa cultura e o uso regular foram, aos poucos, cedendo lugar ao monopólio comercial e farmacêutico, aos objetivos expansionistas e coloniais e, por último, ao tráfico ilícito, operado por associações especiais.
Na América Espanhola, em 1569, o rei Felipe II, por decreto, autorizou e incentivou os nativos a serviço dos conquistadores a mascar coca. Os nativos, assim, trabalhavam mais horas, comiam menos e não se rebelavam. Ainda percorrendo o túnel do tempo – e agora entrando no terreno do tráfico por governos nacionais – não se pode esquecer das duas guerras envolvendo a Grã-Bretanha e a China. Foram as Guerras do Ópio (1839-42 e 1856), quando a Grã-Bretanha, vencedora, assegurou o monopólio da comercialização do ópio pela Companhia das Índias Orientais. Formalmente, a segunda Guerra do Ópio terminou com o Tratado de Tientsin, de 1860. Em face da derrota, a China, além da perda do território de Hong Kong, ficou obrigada a legalizar o uso do ópio. Em 1874, a alemã Bayer sintetizou nos seus laboratórios a diacetilmorfina. Ela foi vendida como remédio, sem contra-indicações – e causou dependência química em milhares de usuários.
A linha intervencionista, com base na bandeira da proibição, começou com os Estados Unidos, que abriram caminho para pressões e ameaças aos países produtores do Terceiro Mundo. Washington conseguiu impor suas políticas a dezenas de nações. Mas, na Europa, essa linha de ação foi abandonada por diversos países como Holanda, Suíça, Grã-Bretanha, Portugal, Itália, Espanha e Bélgica.
No mundo inteiro as polícias só conseguem apreender de 5% a 10% da produção anual de drogas  ilegais. Por outro lado, existem países com economia dependente das drogas proibidas – como a Colômbia –e existem verdadeiros “narcoestados”, como Mianmar (antiga Birmânia). Também existem Estados cúmplices com o trânsito de drogas e de insumos químicos usados no refino (coca transformada em cloridrato de cocaína) e nas misturas (drogas sintéticas do tipo metanfetaminas). O mercado global de drogas ilegais movimenta, por ano, algo entre US$ 100 bilhões e US$ 400 bilhões. Esse vultoso movimento de dinheiro passa pelos sistemas bancário e financeiro internacionais.
O Brasil sempre foi considerado país de trânsito de drogas e aliado das políticas americanas de criminalização do usuário. O destino da droga que passa pelo Brasil é a Europa. Aos poucos, e como ocorreu com todos os países de trânsito de drogas ilícitas, o Brasil tornou-se um mercado de elevado consumo. Isso começou quando o transporte da droga pelo território brasileiro passou a ser pago com a própria droga. Surgiu, então, uma rede capilar de distribuição de drogas, operada pelo crime organizado .
O Brasil é vizinho de países de produção e elaboração, como Colômbia (cocaína, heroína e marijuana), Peru (cocaína), Bolívia (cocaína) e Paraguai (maconha e drogas sintéticas). As principais portas de ingresso e circulação de drogas no território nacional encontram-se no Amazonas (Tabatinga, Vila Bitencourt e Benjamin Constant), Acre (São Vicente, São Francisco, Basiléia, Xapuri e Plácido de Castro), Rondônia (Guajará-Mirim, Vila Murtinho e Abuña), Pará (Abaetetuba e Marabá), Mato Grosso (Cáceres e Aguapeí), Mato Grosso do Sul (Ponta Porã, Bela Vista, Dourados, Amambaí, Coronel Sapucaí, Porto Murtinho e Corumbá) e Paraná (Foz do Iguaçu e Guaíra).
Além de corredor e centro de consumo, o Brasil fornece ao narcotráfico insumos químicos (éter, acetona, permanganato de potássio). A Colômbia, por exemplo, não dispõe de indústrias químicas e, sem insumos precursores químicos, não há possibilidade de refino.
Mas a coisa vai mais longe. O Brasil é, para o narcotráfico, uma praça atraente de lavagem do dinheiro da droga e para a sua reciclagem em atividades lícitas.
Nos últimos quatro anos do governo FHC, o órgão de inteligência financeira suspeitou de 568 casos de lavagem. Esse órgão tinha atribuição para fiscalizar bancos, bolsa de futuros, loterias, bingos e mercados imobiliários, de arte e de metais e pedras preciosas. Os 568 casos, por si só, demonstram o valor do Brasil para os narcotraficantes. Também evidenciam que, do ponto de vista do narcotráfico, o traficante do morro é apenas o elo inferior de uma rede poderosa e “respeitável”.

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A JIHAD DO FUNDAMENTALISMO CRISTÃO

Newton Carlos

A International Bible Society, dos Estados Unidos, já mandou 60 mil bíblias ao Iraque, em pacotes com a inscrição “Deus traz a paz”. Centenas de missionários se incorporam às operações de ajuda humanitária como “trabalhadores cristãos”, empenhados em abrir caminho para os seus proselitismos num país islâmico sob ocupação militar ocidental.
Pacotes de alimentos de primeira necessidade, doados pelo International Mission Board, carregam junto as Sagradas Escrituras. A maior denominação protestante americana, a Southern Baptiste Convention, com 16 milhões de fiéis, foi militante pró-guerra e tem forte presença no pós-guerra. Junto com a Samaritan Purse, organizou as preces coletivas no dia em que Bush assumiu a presidência. No começo de maio, quando Bush anunciou o fim dos combates, se disseram prontas para ajudar os iraquianos, “física e espiritualmente”.
A disposição é de “amá-los e salvá-los, em nome de Deus, em estreito contato com as autoridades dos Estados Unidos”. O próprio Bush, em sua mensagem radiofônica semanal que coincidiu com as celebrações da Páscoa cristã e o Passover hebraico, falou do “significado especial para nossos homens e mulheres fardados”. A falta dos familiares “é dura nesse período santo, mas é preciso, como contrapartida, recordar os valores da liberdade e o poder de um amor mais forte do que a morte”. E que “o Bem triunfou sobre o Mal”.
Discurso messiânico, um dos mais religiosos já feitos por Bush, que lê a Bíblia diariamente e promove rezas antes dos encontros com assessores mais íntimos.
No ano 1424 da Hégira, o início do calendário muçulmano, e 2003 da Era Cristã, a jihad (guerra santa) é invocada em nome de Alá e o Império bombardeia em nome da divina providência. Em termos concentrados, é o confronto entre o fundamentalismo wahabita de Bin Laden e o “fundamentalismo texano” de Bush. Pensou-se que os elementos de tumulto fossem sair do materialismo e do racionalismo ateus, como anunciavam os púlpitos, mas são as religiões que ocupam o centro das lutas no mundo.
Não é só o “eixo do mal”. Nas Molucas,  arquipélago da Indonésia, cristãos e muçulmanos se matam com crueldade. O mesmo tipo de conflito ocorre nas Filipinas.
Na Nigéria, muçulmanos decidiram aplicar a lei islâmica na parte do país onde são majoritários e explodiu a violência, com enorme saldo de mortos. Na Índia, fundamentalistas hindus martirizam muçulmanos.
Mas o wahabismo, de uma “pureza” explosiva, com a cobertura dos dólares do petróleo saudita, atacou as torres gêmeas e o Pentágono. Bateu de frente com o (neo)evangélico americano número um, George Bush, chefe verdadeiro da direita religiosa dos Estados Unidos, segundo o Washington Post. O líder do Partido Republicano na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Tom Delay, disse que entrou na política para promover uma “visão bíblica mundial”. Além disso, a direita americana quer um substituto do comunismo, um novo “alvo principal”, e o islamismo parece encaixar- se nos requisitos de grupos religiosos que assumem a vanguarda de uma guerra nada fria.
Em conferência realizada por esses grupos em Washington, o islamismo foi chamado de “religião diabólica e viciosa”. Maomé teria sido um “pedófilo possuído pelo demônio”. Ou um “fanático de olhos selvagens, ladrão e bandido”. São declarações textuais, reproduzidas por um colunista do New York Times. A National Association Evangelical não gostou das expressões, mas concorda com sua “substância”. Alerta que insultos prejudicam trabalhos de relações públicas e colocam missionários em risco. Quando ocorreu a conferência em Washington, os depósitos da direita religiosa americana já estavam cheios de materiais “didáticos” destinados ao Iraque.
O vice-presidente americano Dick Cheney fala de uma guerra de trinta anos contra o terrorismo. É o que a intelectual Susan Sontag, uma rara voz crítica, define como estado de alerta permanente. Ou guerra permanente.
Cheney talvez esteja com a alma cristã tocada pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a mais sangrenta da história em termos proporcionais. Matou a metade da população alemã da época. Foi uma guerra “sobre tudo religiosa e travada com a ferocidade característica dessas guerras”, nos ensina a Enciclopédia Britânica.
Desse jeito, matando e saqueando, católicos e protestantes enfrentaram questões criadas pela Reforma, com a União dos Príncipes Protestantes de um lado e a Liga Católica do outro. Cheney teria escolhido o século XVII como nosso “espelho distante”? Foi o século do fundamentalismo cristão, da revolução puritana de Cromwell e de uma extraordinária aventura de fanáticos fundamentalistas, os peregrinos que desembarcaram em Cape Cod em 1620, a pedra fundamental do Império que hoje bombardeia em nome da fé cristã.
Há quem fale num “efeito espelho”. A visão do laicismo ocidental teria produzido os fundamentalismos dos colonizados. Os fanáticos hindus só apareceram depois da chegada dos ingleses na Índia. Os árabes em visita às metrópoles ocidentais idealizaram uma “modernidade islâmica” que acabou em Bin Laden e resultou numa Jihad contra McDonald, título do livro de Benjamin Barber. Agora seria também McDonald, evangélico e imperial, contra a jihad.

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