Caso se enxergue a Libéria como uma calamidade isolada, o argumento para a intervenção militar americana é fraco. (...)
Caso, contudo, se enxergue a Libéria como um fósforo aceso numa vizinhança ensopada de petróleo, o argumento para extinguir a chama é muito mais forte.
(“A region in flames”, The Economist, July 5th 2003, p. 22)
“S e Deus quiser, voltarei”. Com essas palavras, no dia 11 de agosto, o ditador da Libéria, Charles Taylor, abandonou a presidência e abriu caminho para a entrada das forças de paz da Comunidade dos Estados da África Ocidental no país. Às forças africanas, lideradas pela Nigéria, somou-se um pequeno continente de tropas americanas. A presença dos Estados Unidos, responsáveis pelo recuo final de Taylor, é um atestado de que o conflito, com foco na Libéria, tem caráter regional e ameaça o equilíbrio geopolítico de toda a África Ocidental. No fundo, Washington quer evitar a desestabilização da Nigéria, o país mais importante da região e maior produtor de petróleo do continente africano.
Do ponto de vista estrutural, a instabilidade da África Ocidental é um reflexo do artificialismo dos seus Estados e das suas fronteiras, assim como dos antagonismos étnicos e culturais que atravessam cada um dos países. Contudo, foi em 1989, a partir da emergência da guerrilha liberiana de Taylor que se configurou uma verdadeira guerra regional. O saldo do conflito já é de cerca de 500 mil mortos, além de milhões de feridos e refugiados.A elite de afro-americanos governou a Libéria, de modo implacável, desde a independência.
Essa elite, assimilando a visão de mundo dos colonizadores europeus, acreditava que a sua missão consistia em civilizar os nativos. O cristianismo e a cultura senhorial do sul dos Estados Unidos foram transportadas, por mãos negras, para a nova pátria africana. Nas primeiras décadas do século XX, a “aristocracia negra” escravizou as populações locais. Depois, dedicou-se a modernizar o país, construindo estradas, fábricas, escolas e hospitais. Nos anos 70, a Libéria foi apontada como modelo de desenvolvimento econômico na África. Também era um modelo de corrupção: um antigo ministro chegou a escrever que se o anjo Gabriel fosse eleito presidente da Libéria, se tornaria “total e irrevogavelmente corrupto”.
O Estado liberiano permaneceu sob controle da elite afro-americana até 1980 quando, em meio a desordens e saques, o sargento Samuel Doe derruba o governo, executa o presidente e instaura a ditadura, prometendo libertar o povo pobre do domínio da elite urbana. Sob Doe, grande parte dos profissionais e trabalhadores qualificados foge do país. Escolas, fábricas e hospitais são virtualmente paralisados, enquanto o PIB per capita retrocede em cerca de 75%.
O regime desaba em 1990. Doe é capturado pelos rebeldes e executado. Mas uma intervenção internacional, liderada pela Nigéria e apoiada pela Serra Leoa, impede que a guerrilha de Taylor assuma o poder. Começava assim a guerra civil que se prolongou até 1997 e provocou um novo recuo pavoroso de quase 75% do PIB per capita liberiano.
Taylor, educado nos Estados Unidos, não representa a elite afro-americana da Libéria. Antes de tudo, chefia um clã guerreiro, cujos soldados são garotos descalços e bandos de saqueadores que, por razões místicas, usam máscaras ou vestidos de noiva e pintam-se com batom. Sob seu comando, a guerra se alastrou para além da Libéria. Um guerrilheiro associado, Foday Sankoh, avançou furiosamente sobre os campos de diamantes da vizinha Serra Leoa, matou algo em torno de 200 mil pessoas e deslocou expressiva parcela da população rural para Freetown, a capital do país. Em 2000, forças britânicas enviadas para proteger a missão de paz da ONU impediram a queda de Freetown e começaram a desmantelar os bandos rebeldes. Sankoh, preso e indiciado por crimes contra a humanidade, morreu no cárcere, de embolia pulmonar, em julho do ano passado.
Na Libéria, em 1997, um precário processo de paz desembocou em eleições gerais.
Aterrorizando eleitores, Taylor consegue três quartos dos votos e, mais do que isso, o reconhecimento da sua vitória pela Comunidade dos Estados da África Ocidental e pela ONU. Poucos meses depois, o país retornava ao caos e Monróvia tornava-se palco de bárbaros confrontos entre bandos armados.
Mas o chefe guerreiro liberiano jamais restringiu suas ambições às fronteiras do próprio país. Diante da derrota de Sankoh na Serra Leoa em 2000, Taylor reúne um exército heterogêneo – constituído por antigos rebeldes leoneses, tropas liberianas e oposicionistas guineenses – para invadir a Guiné. Ao lado da Nigéria, a Guiné funciona como pilar da ordem regional na África Ocidental e obstáculo aos sonhos de Taylor de estabelecer um potentado na Libéria e na Serra Leoa.
A aventura na Guiné assinalou o começo do fim para o senhor da guerra liberiano.
O governo guineense, contando com assistência militar americana e nigeriana, expulsa os rebeldes de seu território e passa a organizar e treinar as forças anti-Taylor, agrupadas no movimento Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia (LURD). A guerrilha da LURD avança rapidamente pelo norte e sul da Libéria, atingindo os subúrbios de Monróvia, isolando as forças de Taylor e criando as condições militares para a renúncia.
A renúncia de Taylor encerra o capítulo mais recente da guerra civil liberiana.
As forças de paz lideradas pela Nigéria e o envolvimento americano asseguram a organização de um novo governo, que terá a hegemonia da LURD. Mas nada disso modifica o cenário de instabilidade estrutural da África Ocidental.
De um lado, a Costa do Marfim foi atingida pelas fagulhas da guerra regional.
Tradicionalmente apontado como exemplo de estabilidade política, o país sempre soube administrar as tensões entre os grupos étnicos do sul e as etnias mais pobres do norte. O equilíbrio rompeu-se há um ano e um movimento rebelde, apoiado pelo regime da vizinha Burkina, assumiu o controle do norte. O avanço dos rebeldes acabou contido por forças de paz francesas e da Comunidade dos Estados da África Ocidental mas o país continua dividido em duas zonas militares.
De outro, o fantasma de Taylor continua a assombrar a região. O saque tornou-se um meio de vida para milhares de pessoas que, na última década, engajaram-se na guerra regional. Na Libéria, na Serra Leoa e na Guiné, os bandos de rebeldes mobilizados pelo senhor da guerra permanecem disponíveis para novas aventuras. Há indícios de que soldados dos exércitos de Taylor já se integraram à guerrilha do norte da Costa do Marfim.
O castelo de cartas dos Estados da África Ocidental está desabando em câmara lenta. O pilar que ainda o sustenta é formado por forças militares nigerianas, francesas, britânicas e americanas. Mas os “estrangeiros em armas” não podem substituir, por tempo indefinido, as instituições políticas que entraram em colapso.
ESTADOS SEM NAÇÕES
A África Ocidental, uma das regiões da África Subsaariana, compreende doze países localizados entre a foz do rio Senegal e a fronteira entre a Nigéria e Camarões. Todos eles são banhados pelas águas do Oceano Atlântico e situam-se na área do Golfo da Guiné .A região compreende dois domínios naturais principais. Quase toda a porção litorânea pertence ao domínio das florestas tropicais pluviais, em grande parte devastadas pela ação antrópica. Esse domínio é conhecido como zona guineense. Mais para o interior encontra-se o domínio das savanas, sub-úmido, denominado zona sudanesa. Algumas partes da zona sudanesa sofrem uma intensificação do processo de desertificação, que resulta da combinação de anomalias climáticas e inadequada utilização dos solos. O rio Níger, com nascentes nos planaltos da Guiné, percorre um longo arco interior, penetra na região do Sahel e retorna à África Ocidental em território nigeriano, desembocando em amplo delta no sul do Golfo da Guiné.
Perfazendo uma extensão de aproximadamente 2,3 milhões de km2, os países da região abrigam um efetivo populacional de quase 240 milhões de pessoas. Metade dessa população habita a Nigéria, o país de maior superfície (924 mil km2), que concentra mais de 50% do PIB regional e lidera a Comunidade dos Estados da África Ocidental.
Do ponto de vista cultural, a África Ocidental é um verdadeiro mosaico de povos e etnias. É, também, uma área de contato entre seguidores de crenças ancestrais, denominadas animistas, do cristianismo (introduzido pelos colonizadores e missionários europeus) e do islamismo (difundido no passado pelos árabes do norte africano através das rotas do Saara). Na atualidade, o islamismo exibe dinâmica de crescimento e vigor renovado entre as populações da região. A diversidade étnica, cultural e religiosa é um elemento de base dos inúmeros conflitos que se manifestam na África Ocidental.
Como o restante do continente, a África Ocidental sofreu o impacto do colonialismo europeu, que deflagrou o processo de configuração dos Estados contemporâneos. As linhas gerais da divisão colonial da África foram definidas na Conferência de Berlim (1884-85). A conferência das potências européias deflagrou a corrida pela partilha africana, que se concluiria na última década do século XIX, quando foram firmados os tratados de delimitação das fronteiras. O traçado das fronteiras ignorou os espaços étnicos e culturais pré-existentes, apoiando-se em paralelos e meridianos ou acidentes naturais. No processo de delimitação, os divisores de águas foram utilizados com mais freqüência que os cursos fluviais, pois os rios serviam como eixos de penetração dos colonizadores no interior do continente.
Durante o período colonial, as metrópoles européias criaram divisões administrativas no interior de seus domínios. Essas divisões, quase sempre ligadas à distribuição das forças militares ou ao controle de cidades e enclaves de exploração mineral, viriam a servir em muitos casos como critério para o traçado das fronteiras dos Estados soberanos.
Grã-Bretanha, França e Portugal foram as potências coloniais da África Ocidental. A Libéria, criada por escravos libertos dos Estados Unidos em 1847, figura, ao lado da Etiópia, como os únicos países africanos que não conheceram colonização formal. À exceção dela, os países da África Ocidental alcançaram a independência após 1958 .
A Nigéria entrou na esfera de influência britânica no século XVIII, depois que os portugueses perderam a disputa pelo controle dos entrepostos litorâneos de tráfico de escravos. Mas o estabelecimento colonial ocorreu mais de cem anos depois, a partir da penetração pela bacia do rio Níger.
O tráfico escravista e, depois, a campanha contra o tráfico, asseguraram aos britânicos o controle de Gâmbia, Serra Leoa e Gana (a antiga Costa do Ouro). Fort James, no litoral de Gâmbia, funcionou como principal entreposto de escravos da África Ocidental no século XVIII. Freetown, a capital da Serra Leoa, foi fundada pelos britânicos em 1786, para receber escravos emancipados da América e Europa. O Togo é um caso à parte: colonizado pela Alemanha, tornou-se mandato franco-britânico após a Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Os outros países da região, com exceção das colônias portuguesas de Guiné-Bissau e Cabo Verde, conheceram a colonização francesa. Esses territórios foram reunidos em 1893 na África Ocidental Francesa, cuja capital instalou-se em Dacar (Senegal). O Daomé (atual Benin), antes de se tornar colônia francesa, era uma monarquia tribal sustentada pelo negócio do tráfico negreiro para a América Portuguesa. O poder da monarquia decorria da associação entre a elite local e os traficantes luso-brasileiros da chamada Costa dos Escravos. Em 1822, o Daomé tentou incorporar-se ao Império do Brasil mas a operação esbarrou na oposição de franceses e britânicos.
A descolonização da África Ocidental representou a substituição do poder das metrópoles pelo das elites africanas locais que, como regra, ocupavam os cargos intermediários na administração colonial. De modo geral, essas elites representavam apenas um dos grupos étnicos do novo país e excluíam por completo as etnias rivais. Os casos mais dramáticos são a Serra Leoa e a Libéria: nesses países, as elites “nacionais” são formadas pelas minorias de antigos escravos transferidos da América do Norte, Europa ou outros países africanos.
Os afro-americanos da Libéria, que perfazem menos de 5% da população, mantiveram o poder político desde a independência, em 1847, até 1980.
Os antagonismos entre grupos étnicos e culturais pontuam a vida política de quase todos os países da região. Na Nigéria, um complexo mosaico de etnias e religiões, esses antagonismos degeneraram na sangrenta Guerra de Biafra (1967-70), na qual podem ter morrido até 2 milhões de pessoas. O complexo quadro dos conflitos regionais abrange também as disputas pela exploração dos expressivos recursos naturais da África Ocidental: diamantes, ferro, madeiras nobres, petróleo e ouro .
Boletim Mundo Ano 11 n° 5
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