George Bush colocou a Coréia do Norte junto com o Iraque, no “eixo do mal”. Mesmo sem dispor de armas de destruição em massa, como hoje se sabe, o Iraque foi bombardeado, invadido, ocupado e submetido a protetorado militar informal dos Estados Unidos.
A Coréia do Norte, que anuncia aos quatro ventos que seu programa nuclear encontra-se em estágio avançado, foi convidada por Washington a sentar à mesa de negociações, ao lado da Coréia do Sul, do Japão, da Rússia e da China. Dois pesos e duas medidas?
Iraque e Coréia do Norte estão juntos na retórica de Bush, mas separados na estratégia dos Estados Unidos. O Iraque participa do subsistema do Golfo Pérsico e da geopolítica do petróleo. A Coréia do Norte, do subsistema do Extremo Oriente e do delicado equilíbrio entre a China e o Japão. O Iraque não tinha exército operacional. A Coréia do Norte tem – e, além disso, dispõe de mísseis de médio alcance e, talvez, de algumas ogivas nucleares. O Iraque pode ser ocupado.
A Coréia do Norte não, pois é vizinha da China.
Coréia do Norte e Coréia do Sul são frutos da Guerra Fria. A Coréia do Sul, Tigre Asiático, atingiu a condição de terceira economia do Extremo Oriente. A Coréia do Norte, ao contrário, é uma ruína econômica e direciona seus parcos recursos para o orçamento militar. Kim Jong Il, filho e sucessor de Kim Il Sung, que morreu em 1994, recebeu um país em crise terminal. Em 1995, a perda da safra agrícola resultou em pavorosa tragédia: calcula-se que mais de um milhão de camponeses tenham morrido de inanição.
O programa nuclear norte-coreano foi lançado com a clara finalidade política de assegurar a sobrevivência da ditadura de Kim Jong Il. Em troca do congelamento do programa, a Coréia do Norte conseguiu assistência financeira dos Estados Unidos e uma promissora distensão das relações com a Coréia do Sul, inaugurada no ano 2000. Washington e Seul engajavam-se na sustentação do moribundo regime comunista para evitar que o Japão fosse levado a reagir à nuclearização norte coreana desenvolvendo seu próprio programa nuclear.
A Doutrina Bush derrubou o castelo de cartas.
Desde o discurso do “eixo do mal”, no início de 2002, a Coréia do Norte retomou o desenvolvimento de mísseis de alcance intermediário e de ogivas nucleares.
Durante a ofensiva americana no Iraque, o regime norte-coreano anunciou publicamente seu programa nuclear e pediu negociações diretas com Washington. Kim Jong Il faz da assinatura de um tratado de não-agressão com os Estados Unidos a condição prévia para uma eventual desistência de suas ambições nucleares.
É uma aposta perigosa, mas sustentada por claro raciocínio estratégico. Coréia do Sul e Japão não podem conviver com uma Coréia do Norte nuclearizada. O Japão, gastando apenas pouco mais de 1% do PIB com as forças armadas, já exibe vultoso orçamento militar . O engajamento japonês numa corrida nuclear representaria ameaça direta à segurança da China e reativaria velhos temores na própria Coréia do Sul.
Washington entrou no jogo rangendo os dentes e vociferando, mas cuidadosamente tateando os caminhos da diplomacia. No primeiro capítulo, instalou um impasse, exigindo o desmantelamento do programa nuclear como condição para negociações em formato multilateral. No capítulo seguinte, cedeu um pouco, aceitando a idéia de que as negociações possam preceder ao desarmamento.
A Coréia do Norte também sabe que precisa jogar. Nos primeiros dias de agosto, arquivou a exigência de negociações bilaterais, admitindo sentar-se à mesa com americanos, russos, chineses, japoneses e sul coreanos.
Os seis reúnem-se em Pequim, em busca de uma saída para o impasse. É um pequeno avanço mas, nas palavras do jornal oficial China Daily, “não há muitos motivos para otimismo”. Chineses são sábios.
Um front da Guerra Fria
Durante séculos, a Coréia foi objeto de disputas entre chineses, mongóis, japoneses e russos. No final do século XIX, tornou-se alvo do expansionismo do Japão Meiji. As guerras Sino-Japonesa (1894-95) e Russo-Japonesa (1905), abriram caminho para a anexação da península coreana pelo Japão, em 1910. A potência ocupante engajou-se em desenfreada repressão, procurando destruir a cultura coreana e suprimir a língua nacional. O trauma da prolongada ocupação manifesta-se ainda hoje sob a forma de arraigada hostilidade coreana em relação aos japoneses.Em 1945, a ofensiva quase simultânea das forças soviéticas, no norte, e americanas, no sul, libertou a Coréia da ocupação japonesa. Em seguida, o país foi dividido em duas zonas provisórias de ocupação, que deveriam ser reunificadas em poucos anos. Contudo, a deflagração da Guerra Fria provocou a implosão das negociações e, em 1948, as zonas de ocupação deram lugar a dois Estados rivais, separados pelo paralelo de 380 N. A Coréia do Norte, sob o regime comunista de Kim Il Sung, alinhou-se com a União Soviética, enquanto a Coréia do Sul era incorporada à esfera de influência asiática dos Estados Unidos.
A Revolução Chinesa, de 1949, aprofundou as tensões na península coreana. A Guerra da Coréia estalou em junho de 1950, com a penetração, através do paralelo 38, de tropas norte-coreanas decididas a reunificar o país. Aparentemente, a Coréia do Norte tinha o beneplácito de Moscou e Pequim, que não acreditavam numa intervenção americana. Contudo, aproveitando o boicote soviético ao Conselho de Segurança, Washington fez aprovar a intervenção de forças da ONU no conflito coreano.
As tropas americanas e aliadas, sob a bandeira das Nações Unidas, desembarcaram na península e empreenderam uma funda contra-ofensiva em território norte-coreano, até as proximidades da fronteira chinesa.
A irrupção das forças armadas chinesas na guerra, apresentadas oficialmente como destacamentos de voluntários, modificou radicalmente a situação militar. O recuo das tropas americanas conduziu, em dezembro, o front de volta ao paralelo 38. A estabilização do front perdurou até o início de 1953. Então, a morte do ditador soviético Stalin abriu caminho para a conclusão do armistício de Panmunjon, que produziu um cessar-fogo permanente. A ausência de um tratado de paz transformou o front do paralelo 38 numa fronteira instável entre Estados que, tecnicamente, continuam em guerra.
Boletim Mundo Ano 11 n° 5
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