O Brasil funciona como corredor de trânsito, mercado consumidor, centro produtor de insumos industriais e foco de “lavagem” de dinheiro para o narcotráfico. Atrás do fenômeno das drogas há uma poderosa rede de negócios que abrange os mercados financeiro e imobiliário.
A máscara é a melhor imagem para representar o fenômeno das drogas proibidas. No antigo teatro romano, a máscara chamava-se persona (pessoa), porque ela conseguia ressoar, ecoar, a voz de alguém. Como acontece com as drogas, poucos se interessavam em saber o que estava por trás, encoberto pela máscara.
A política militarizada americana, batizada de Guerra às Drogas, é exemplo de como a droga mascara interesses imperiais e econômicos, com tudo realizado a pretexto de cooperação internacional. O Plano Colômbia, que completou três anos em julho de 2003, está causando danos ecológicos irreversíveis. As áreas de cultivo migraram para o Peru e a Bolívia, que triplicaram a produção. Na verdade, o Plano volta-se a estabelecer uma cabeça-de-ponte americana naquele país andino, conhecido, entre outras riquezas, pelas reservas petrolíferas, biodiversidade inexplorada, jazidas de esmeraldas e metais preciosos. A Colômbia é, também, a segunda maior reserva mundial de água doce.Os botânicos já catalogaram 80 mil espécies de plantas. Encontraram em 4 mil delas propriedades psicoativas (exemplo: coca), depressivas (exemplo: o ópio tirado da cápsula da papoula) e perturbadoras (exemplo: a maconha). Dessas 4 mil, o homem faz uso de apenas 60 – entre elas o tabaco, o café, o chá, a coca, a cannabis e o ópio. E aí se deve incluir alguns fermentados da uva (vinho), do arroz (saquê), da cana-de-açúcar (aguardente), etc. Nos Andes, para suportar a altitude, o frio e a falta de alimentos, costuma-se mascar a folha de coca. A coca faz parte da identidade cultural do povo andino.
Perde-se no tempo o emprego – terapêutico, lúdico, místico, ritualístico e recreativo – das plantas com propriedades capazes de atuar no sistema nervoso central. Heródoto, o grego do século V a.C. alcunhado o “pai da História”, já mencionava o emprego de droga em rituais fúnebres. A pequena figura em cerâmica com bochechas dilatadas, que representa o mascador de coca andino, data de 1600 a.C. Essa cultura e o uso regular foram, aos poucos, cedendo lugar ao monopólio comercial e farmacêutico, aos objetivos expansionistas e coloniais e, por último, ao tráfico ilícito, operado por associações especiais.
Na América Espanhola, em 1569, o rei Felipe II, por decreto, autorizou e incentivou os nativos a serviço dos conquistadores a mascar coca. Os nativos, assim, trabalhavam mais horas, comiam menos e não se rebelavam. Ainda percorrendo o túnel do tempo – e agora entrando no terreno do tráfico por governos nacionais – não se pode esquecer das duas guerras envolvendo a Grã-Bretanha e a China. Foram as Guerras do Ópio (1839-42 e 1856), quando a Grã-Bretanha, vencedora, assegurou o monopólio da comercialização do ópio pela Companhia das Índias Orientais. Formalmente, a segunda Guerra do Ópio terminou com o Tratado de Tientsin, de 1860. Em face da derrota, a China, além da perda do território de Hong Kong, ficou obrigada a legalizar o uso do ópio. Em 1874, a alemã Bayer sintetizou nos seus laboratórios a diacetilmorfina. Ela foi vendida como remédio, sem contra-indicações – e causou dependência química em milhares de usuários.
A linha intervencionista, com base na bandeira da proibição, começou com os Estados Unidos, que abriram caminho para pressões e ameaças aos países produtores do Terceiro Mundo. Washington conseguiu impor suas políticas a dezenas de nações. Mas, na Europa, essa linha de ação foi abandonada por diversos países como Holanda, Suíça, Grã-Bretanha, Portugal, Itália, Espanha e Bélgica.
No mundo inteiro as polícias só conseguem apreender de 5% a 10% da produção anual de drogas ilegais. Por outro lado, existem países com economia dependente das drogas proibidas – como a Colômbia –e existem verdadeiros “narcoestados”, como Mianmar (antiga Birmânia). Também existem Estados cúmplices com o trânsito de drogas e de insumos químicos usados no refino (coca transformada em cloridrato de cocaína) e nas misturas (drogas sintéticas do tipo metanfetaminas). O mercado global de drogas ilegais movimenta, por ano, algo entre US$ 100 bilhões e US$ 400 bilhões. Esse vultoso movimento de dinheiro passa pelos sistemas bancário e financeiro internacionais.
O Brasil sempre foi considerado país de trânsito de drogas e aliado das políticas americanas de criminalização do usuário. O destino da droga que passa pelo Brasil é a Europa. Aos poucos, e como ocorreu com todos os países de trânsito de drogas ilícitas, o Brasil tornou-se um mercado de elevado consumo. Isso começou quando o transporte da droga pelo território brasileiro passou a ser pago com a própria droga. Surgiu, então, uma rede capilar de distribuição de drogas, operada pelo crime organizado .
O Brasil é vizinho de países de produção e elaboração, como Colômbia (cocaína, heroína e marijuana), Peru (cocaína), Bolívia (cocaína) e Paraguai (maconha e drogas sintéticas). As principais portas de ingresso e circulação de drogas no território nacional encontram-se no Amazonas (Tabatinga, Vila Bitencourt e Benjamin Constant), Acre (São Vicente, São Francisco, Basiléia, Xapuri e Plácido de Castro), Rondônia (Guajará-Mirim, Vila Murtinho e Abuña), Pará (Abaetetuba e Marabá), Mato Grosso (Cáceres e Aguapeí), Mato Grosso do Sul (Ponta Porã, Bela Vista, Dourados, Amambaí, Coronel Sapucaí, Porto Murtinho e Corumbá) e Paraná (Foz do Iguaçu e Guaíra).
Além de corredor e centro de consumo, o Brasil fornece ao narcotráfico insumos químicos (éter, acetona, permanganato de potássio). A Colômbia, por exemplo, não dispõe de indústrias químicas e, sem insumos precursores químicos, não há possibilidade de refino.
Mas a coisa vai mais longe. O Brasil é, para o narcotráfico, uma praça atraente de lavagem do dinheiro da droga e para a sua reciclagem em atividades lícitas.
Nos últimos quatro anos do governo FHC, o órgão de inteligência financeira suspeitou de 568 casos de lavagem. Esse órgão tinha atribuição para fiscalizar bancos, bolsa de futuros, loterias, bingos e mercados imobiliários, de arte e de metais e pedras preciosas. Os 568 casos, por si só, demonstram o valor do Brasil para os narcotraficantes. Também evidenciam que, do ponto de vista do narcotráfico, o traficante do morro é apenas o elo inferior de uma rede poderosa e “respeitável”.
Boletim Mundo Ano 11 n° 5
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