sexta-feira, 24 de junho de 2011

EUROPA 40 GRAUS

No domingo, 10 de agosto, em sua residência de verão em Castelgandolfo, o papa João Paulo II exortou os fiéis a “pedir fervorosamente ao Senhor que conceda à sedenta terra o frescor da chuva”.
Talvez seja mesmo preciso a interferência divina para refrescar o velho continente, varrido por ondas de calor de proporções avassaladoras e com os reservatórios de água chegando a limites perigosamente baixos. Mas nem o papa acredita que o fenômeno seja de ordem celestial: a “irresponsabilidade do homem, que destrói um patrimônio precioso” foi eleita como a causa maior da tragédia.
No mesmo dia em que o Vaticano pedia clemência aos céus, os termômetros registravam recordes históricos de temperatura, em diversas regiões do continente. No Alentejo, em Portugal, a marca dos 45 graus estava sendo ultrapassada pela primeira vez, enquanto a cidade de Roth, próxima à famosa Nuremberg (Alemanha) sufocava com mais de 40 graus medidos na sombra e Londres ardia com mais de 38 graus. Em editorial, a sisuda revista britânica The Economist sugeriu aos londrinos procurar trégua em “climas mais amenos como os do Cairo e Delhi”. O sol e o calor, que costumavam ser recebido com festa pelos povos europeus, já haviam se transformado em sintomas de calamidade.
Para nós, brasileiros, pode ser difícil entender a razão de tanto pânico. Afinal, estamos acostumados a realizar nossas atividades cotidianas sob temperaturas elevadas. Entretanto, tanto as populações quanto as infra-estruturas européias não estão adaptadas a tanto calor. No caso deles, as conseqüências são efetivamente dramáticas.
Estima-se que, somente na França, mais de 5 mil pessoas possam ter morrido em conseqüência do calor, gerando uma crise sem precedentes no sistema de saúde do país. A insolação afeta principalmente os mais idosos, que passam longos períodos em residências – as quais, como é comum na Europa, foram projetadas para conservar. Afinal, pensar em casas e apartamentos “ventilados” não teria sentido no continente temperado. Também as escolas e os prédios públicos não são equipados para funcionar em condições de temperatura elevada, quando se transformam em verdadeiros fornos. Em toda a Alemanha, por exemplo, as autoridades recomendam que as crianças sejam liberadas das aulas quando as temperaturas atingem a marca dos 25 graus e, em Berlim, os funcionários municipais são dispensados quando o calor supera os 29 graus. Regras assim, aplicadas ao Rio de Janeiro, degenerariam em férias quase permanentes.
Nos bosques europeus, em especial naqueles situados próximos ao mar Mediterrâneo, a combinação explosiva do calor com a seca gera incêndios de grandes proporções. Mais de 1.750 km2 cobertos por matas ou vegetação mediterrânea foram atingidos pelo fogo entre 25 de julho e 15 de agosto, a maior parte na Itália, Espanha, França e Portugal.
É bem verdade que o calor e a seca não agiram sempre sozinhos: uma parcela da devastação resultou da ação de proprietários inescrupulosos, que tocam fogo propositalmente em suas terras para receber indenização das companhias de seguro. Na Itália e em Portugal, dezenas de incendiários foram presos. Na Alemanha, a situação foi um pouco menos grave, mas também lá algumas reservas florestais tiveram que ser fechadas para os visitantes, devido a focos de incêndio que ameaçavam se alastrar.
O sistema de geração de energia também foi profundamente abalado pelas condições atípicas do verão europeu, ao mesmo tempo em que o  aumento do uso de ar condicionado, refrigeradores e ventiladores fazia crescer a demanda energética. Devido à seca, a água tornou-se insuficiente para movimentar as usinas hidrelétricas italianas instaladas no Rio Pó. Na França e na Alemanha, o problema concentrou-se na elevada temperatura das águas fluviais, que inviabilizaram o sistema de resfriamento necessário para o funcionamento da rede de usinas nuclearas. Na Holanda, o sistema elétrico trabalhou em condições de “alerta vermelho”. E, como a crise afetou todo o continente, não havia como “emprestar” energia do vizinho em caso de colapso da oferta nacional. Em trechos dos rios Danúbio e Elba, até mesmo a navegação teve que ser interrompida pela falta de água. Dois navios afundados na Segunda Guerra Mundial, na Romênia, emergiram das águas rasas do Danúbio. Embarcações em trânsito lutaram para não encalhar. O rio Elba, que na enchente do verão passado atingiu 9,40 metros de profundidade, estava com 81 centímetros em meados de agosto.
Com esse calor todo, até mesmo as geleiras supostamente eternas dos Alpes começaram a derreter.
Em Zermatt, uma vila turística suíça situada a 1,6 mil metros de altitude, os termômetros ultrapassaram a marca dos 33 graus. Deslizamentos e avalanches se tornaram rotineiros, causando a morte de mais de uma dezena de alpinistas e abalando as estruturas dos teleféricos, construídos sobre as geleiras. Em apenas duas semanas, mais de 1,6 milhão de metros cúbicos de gelo foram derretidos na Áustria, enquanto o recorde anterior era de 3,2 milhões de metros cúbicos em um ano.
As águas dos mares também experimentaram aquecimento excepcional: o Mediterrâneo se transformou em verdadeira “banheira”, chegando a 32 graus, e mesmo as águas profundas dos mares do Norte e Báltico aqueceram-se  4 graus acima do normal.
Na esfera da ciência climática, o verão europeu esquentou a polêmica sobre o aquecimento global.
Os especialistas são quase unânimes em afirmar que há relação entre o aumento da concentração de gases de estufa na atmosfera – em especial o dióxido de carbono – e a sucessão de eventos climáticos extremos que sacodem o planeta a intervalos cada vez mais curtos. A constatação é estatística: nove entre os últimos doze verões da Europa estiveram entre os mais quentes desde que começaram os registros.
As metas de redução das emissões dos gases de estufa, estabelecidas pelo Protocolo de Kioto em 1997, parecem mais urgentes do que nunca. Mesmo assim, os Estados Unidos, principal poluidor do mundo, recusam os termos do protocolo e propõem, em troca, um vago programa de redução voluntária, gradual e flexível das emissões de gases. Washington esclarece, mais uma vez, que a economia americana é prioritária em relação ao clima global.
Os modelos de simulação criados em respeitáveis centros de estudos climáticos europeus são implacáveis. Eles nos dizem que os episódios de fortes desequilíbrios climáticos, que costumavam ocorrer uma vez por século, deverão se repetir duas vezes a cada três anos, a partir de 2100.
Resta saber quem vai conseguir manter o sangue frio diante da catástrofe anunciada.

Boletim Mundo Ano 11 n° 5

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