quarta-feira, 3 de agosto de 2011

UM TIRO NO ESCURO

Um atentado terrorista em Sarajevo, na Bósnia, levou, há 90 anos, ao início da Primeira Guerra Mundial. A guerra que ninguém queria e que ninguém conseguiu evitar.

Chegou a hora de as grandes nações acalmarem-se, ocupando-se com objetivos pacíficos.
Ou então, virá uma explosão que ninguém deseja e que não beneficiará ninguém.
(Bethmann-Hollweg, chanceler alemão, junho de 1913)
O estudante de origem sérvia Gavrilo Princip teve seus 15 minutos de fama. No dia 28 de junho de 1914, depois de uma série de trapalhadas que o haviam feito desistir e ir tomar uma cerveja em uma taberna de Sarajevo, ele percebeu, bem à sua frente, o carro do herdeiro do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando. Princip sacou o revólver e atirou, matando o herdeiro de 51 anos. Saiu correndo e entrou em um cinema, onde seria preso. Morreu quatro anos depois, quase junto com o fim da grande guerra, de tuberculose, esquecido num campo de prisioneiros sérvios, antes de completar 30 anos.
Os tiros do desconhecido Gavrilo Princip precipitaram a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), que matou nove milhões de pessoas, deixou 21 milhões de feridos, destruiu quatro impérios – Alemanha, Rússia, Austro-Hungria e Turco-Otomano – além de abrir as portas para o surgimento do primeiro Estado socialista do mundo, na antiga Rússia dos czares, e somar prejuízos hoje calculados em US$ 200 bilhões.
Ações individuais ou atos terroristas que aceleram a roda da história têm sido comuns, ao longo dos séculos. Há pouco tempo, em setembro de 2000, o então aspirante a primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, resolveu “passear” na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, um dos lugares sagrados para os muçulmanos, cercado por centenas de soldados. A provocação fez explodir uma nova rebelião palestina e detonou junto grande parte das perspectivas de paz no Oriente Médio.
Lá atrás, a própria visita do arquiduque a Sarajevo, na Bósnia, foi uma provocação diante dos sérvios, que compunham grande parte da população local. Ele decidiu inspecionar manobras militares no dia 28 de junho de 1914. Mesmo dia em que, no longínquo ano medieval de 1349, uma grande coalizão destruiu o reino sérvio independente do rei Dusan.
A ação terrorista funciona, então, como uma centelha que incendeia um paiol de pólvora preparado há muito tempo. Acontece que, no caso de Gavrilo Princip, os tiros disparados por  seu velho revólver na capital da província austro-húngara da Bósnia-Herzegovina precipitaram uma guerra que nenhum dos principais estadistas europeus desejava. E que ninguém conseguiu evitar, pois as suas raízes já estavam fincadas numa Europa dividida por alianças rivais.
O conflito era previsível. A Europa, então o centro da economia mundial, havia liderado a Revolução Industrial, tendo à frente a Grã-Bretanha, França, Alemanha e Bélgica. Senhores do mundo, as grandes empresas sediadas nesses países exportavam capitais, criando ferrovias, usinas elétricas ou empresas de navegação na Argentina, Brasil, Austrália, Índia ou África do Sul.
De olho em fontes de matérias-primas para suas indústrias famintas, as potências européias dividiram entre si a África, como se fosse uma pizza, ao final do século XIX. Alemanha e Itália, que haviam alcançado sua unificação nacional apenas na segunda metade do século XIX, chegaram tarde a essa divisão. Sentiam-se injustiçadas. Os alemães derrotaram os franceses na Guerra Franco-Prussiana de 1870, espalhando na Europa o temor pela pujança da economia germânica e, na França, o revanchismo pela perda da Alsácia e da Lorena. Em duas ocasiões, 1905 e 1911, França e Alemanha quase voltaram ao campo de batalha, a pretexto de disputas envolvendo o Marrocos. Por esses anos, a França já tinha articulado com a Grã-Bretanha e a Rússia a Entente, enquanto a Alemanha e o Império Austro- Húngaro formavam a aliança das Potências Centrais.
O Império Turco-Otomano, rival da Rússia, acabaria associando-se às Potências Centrais.
Três dos quatro grandes impérios europeus –Austro-Húngaro, Turco-Otomano e Russo – viam crescer, junto com o liberalismo que acompanhou a Revolução Industrial, reivindicações de nações oprimidas dentro de seus territórios, exigindo o direito de falar o “seu” idioma, erguer a “sua” bandeira ou praticar a “sua” religião.
O nacionalismo era a verdadeira religião da época.
Cada império, é claro, tratou de articular-se a grupos nacionalistas que tentavam arrancar de impérios rivais a sua independência. Assim, o governo da pequena Sérvia fomentava grupos nacionalistas sérvios, na tentativa de criar um novo Estado a partir das províncias eslavas dos impérios Austro-Húngaro (incluindo a Croácia e a Eslovênia) e Turco (partes da Bósnia- Herzegovina). Um desses grupos era a Jovem Bósnia, ao qual Gavrilo Princip pertencia. Para ganhar força, a Sérvia aliara-se governo russo, também eslavo.
Durante as décadas de tensão que precederam a Primeira Guerra Mundial, os gigantes da Europa haviam construído exércitos imensos. A maior parte dos países do continente adotou o serviço militar obrigatório entre 1870 e 1914. Qualquer impasse no delicado equilíbrio europeu levava à mobilização geral de milhões de soldados.
O perigo era iminente. Os chefes de Estado sabiam disso e tratavam de evitar o confronto definitivo.
Disputas “quentes”, como a que envolveu a Grã- Bretanha e a Alemanha, no início da década de 1910, em torno da construção da ferrovia Berlim-Bagdá, terminavam em acordos. Mesmo após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, houve intensos movimentos diplomáticos para evitar a guerra. Todos os estadistas se manifestaram contra o conflito.
O problema é que os tiros de Princip incendiaram uma mistura terrível de alianças, exércitos e generais prontinhos para uma guerra que todos acreditavam poder vencer em pouco tempo, e de ódios nacionalistas que inflamavam multidões cansadas de séculos de opressão.
Poucas semanas depois do atentado de Sarajevo, mobilizadas as tropas, raros foram os estadistas – de esquerda ou direita – que tiveram a coragem de se opor a um conflito que entusiasmava as massas. Os militares tomaram o lugar dos políticos na condução da política externa européia. Nas palavras do historiador britânico A. J. P. Taylor, “os estadistas tornaram-se prisioneiros de suas próprias armas. Os grandes exércitos, organizados para prover segurança e preservar a paz, carregaram as nações para a guerra...”. Os tiros de Gavrilo Princip haviam atingido um alvo muito maior do que o peito de Francisco Ferdinando.

Boletim Mundo Ano 12 n° 3

A PRIMAVERA DO TERROR EM MADRI

Regina Araujo
Os atentados que atingiram alvos americanos em 11 de setembro de 2001 fizeram soar os tambores do revanchismo e da guerra. Começava ali a história sangrenta das invasões do Afeganistão e do Iraque.
Os atentados que atingiram a capital espanhola em 11 de março de 2004 desencadearam uma reação a favor da paz e da convivência pacífica entre os povos. Nas ruas e nas urnas, Madri respondeu à violência desmesurada com maturidade e espírito cívico.
Visitei Madri quase um mês após os atentados.
A paz era a palavra de ordem que ressoava dos inúmeros memoriais improvisados na imponente estação ferroviária de Atocha, no centro da cidade, onde se concentraram as explosões e o maior número de vítimas fatais. A exaltação à paz e a condenação sem ressalvas ao terror e aos terroristas – assassinos, conforme estampava a maioria dos cartazes – eram expressas nas mais diversas línguas e se misturavam com uma enorme quantidade de velas e flores que homenageavam os mortos.
As lembranças da tragédia se espalhavam por toda a cidade. Nas fachadas da maior parte dos edifícios do centro histórico e nas vitrines das lojas, laços negros sobre a bandeira da Espanha expressam o luto e a dor dos moradores e comerciantes. Cidadãos a caminho do trabalho ou na famosa peregrinação noturna pelos incontáveis botecos e restaurantes, diversão tipicamente madrileña, portavam o mesmo laço preto em suas roupas. Nos circuitos mais intelectualizados, tais como a tradicional feira de livros que acontece aos domingos entre a Atocha e o Parque no Retiro, fragmentos do Guernica, obra prima do pintor Pablo Picasso evocando os horrores da guerra civil espanhola, ilustram os cartazes de repúdio tanto ao terror quanto à guerra.
Para nós, vindos do Novo Mundo, as capitais européias fascinam sobretudo pelas diversas camadas de significados históricos, incorporados na paisagem e nos monumentos arquitetônicos. No caso de Madri, as reminiscências medievais se entrelaçam com as lembranças da grandiosidade imperial do tempo dos Habsburgo e dos Bourbon, e história se revela aos poucos, em cada esquina e em cada perspectiva.
A barbárie do 11 de março já se incorporou a essa riqueza histórica. Na sede do governo regional, situada na fervilhante Puerta Del Sol, onde se encontram e se cruzam boa parte das rotas que atravessam a cidade, uma placa de mármore exalta o “comportamento exemplar” dos que prestaram auxílio às vítimas e dos cidadãos anônimos que os ajudaram. Aqui, a intenção é perenizar o espírito “Madrid agradecido”, que também predomina nas placas de metal afixadas pelas autoridades ferroviárias nas estações de trem diretamente atingidas pelas explosões.
O medo é um resultado quase inevitável do terror.
Como não poderia deixar de ser, as autoridades madrilenhas reagiram aos atentados redobrando a vigilância nos locais públicos – principalmente estações ferroviárias e metroviárias – e nos sistemas de abastecimento, já que chegaram a circular boatos de planos de contaminação criminosa das águas que servem à cidade.
Mas também neste quesito, a reação espanhola passou longe da histeria coletiva que tomou conta dos Estados Unidos como conseqüência do Também em Barcelona, onde estive durante os feriados da Semana Santa, os votos de paz estavam presentes nas fachadas, em especial nas ruelas do bairro gótico. Nesse caso, porém, a bandeira é a da Catalunha, trazendo em seu centro a palavra “paz” grafada em catalão. Assim, a expressão da solidariedade é, ao mesmo tempo, a expressão da diferença .
Apesar dos atentados, Madri e Barcelona conservaram suas condições de destinos turísticos privilegiados, como acontece tradicionalmente durante a Semana Santa. A esmagadora maioria dos visitantes, que como sempre chegava de outros países da União Européia 11 de setembro.
O trabalho eficiente da polícia especializada, que culminou com o cerco e o suicídio dos prováveis líderes do 11 de março nas cercanias de Madri, não se imiscuía no cotidiano da cidade e muito menos restringia os direitos dos cidadãos, independente de suas origens e credos. Nada de prisões indiscriminadas ou intimidação contra imigrantes.
Também em Barcelona, onde estive durante os feriados da Semana Santa, os votos de paz estavam presentes nas fachadas, em especial nas ruelas do bairro gótico. Nesse caso, porém, a bandeira é a da Catalunha, trazendo em seu centro a palavra “paz” grafada em catalão. Assim, a expressão da solidariedade é, ao mesmo tempo, a expressão da diferença .
Apesar dos atentados, Madri e Barcelona conservaram suas condições de destinos turísticos privilegiados, como acontece tradicionalmente durante a Semana Santa. A esmagadora maioria dos visitantes, que como sempre chegava de outros países da União Européia em especial Alemanha, Inglaterra, França e Portugal, desta vez estava visivelmente interessada nas discussões  políticas locais e na cobertura das repercussões dos atentados. O grito de paz que ecoava nas principais cidades espanholas certamente irá ressoar em outras capitais européias, independente do alinhamento de alguns de seus líderes aos artífices da guerra.
Boletim Mundo Ano 12 n° 3

O “TERROR GLOBAL” E A LINGUAGEM DA “GUERRA AO TERROR”

A Doutrina Bush identifica a resistência armada ao terrorismo e empurra os grupos fundamentalistas nacionais para os braços do “terror global” de Osama Bin Laden.
No debate político contemporâneo, confunde-se muito facilmente o terrorismo com o fenômeno geral da resistência armada à opressão dos Estados. Esta última atividade tem sido um traço destacado do mundo moderno – em especial em situações de domínio de potências ocidentais ou coloniais – e abrangeu, em tempos mais recentes, as atividades do Congresso Nacional Africano contra o regime do apartheid na África do Sul, assim como a OLP na Palestina, a guerrilha no Afeganistão (...). O direito geral à resistência e, quando existe uma coação extrema, a pegar em armas costuma ser reconhecido no discurso político moderno e também na legislação: constituiu o fundamento do respaldo de Reagan à revolta contra os regimes comunistas no Terceiro Mundo na década de 80 e do anterior respaldo comunista às guerras de libertação nacional nas décadas de 50 e 60. Este direito é também uma valiosa parte da herança da reflexão política, no Ocidente e no Oriente, ao longo de muitos séculos: a tradição política e legal cristã rendeu homenagem a este princípio, abraçado entre outros por John Locke e os “pais fundadores” dos Estados Unidos. (Fred Halliday, “Terrorismo y perspectivas históricas”, Vanguardia, Dossier n. 10: Terror Global, Barcelona, 2004).
O terrorismo não é a resistência armada contra a opressão, a ocupação ou a dominação colonial. Terrorismo é a ação política contra o poder estabelecido caracterizada pelo emprego de atos de violência dirigidos a civis, líderes políticos ou militares não-combatentes.
No 11 de setembro de 2001, os fanáticos da Al-Qaeda praticaram o terror, fazendo aviões comerciais, com passageiros, colidirem contra as torres gêmeas do World Trade Center, repletas de civis que trabalhavam para empresas privadas. No 11 de março de 2004, o terror da Al-Qaeda atingiu trens urbanos lotados de trabalhadores, em Madri. Esses são atos clássicos de terrorismo, como o são os atentados suicidas cometidos pelos homens- bomba que explodem restaurantes ou cafés em Jerusalém e ônibus ou supermercados em Tel-Aviv.
O terror não é “islâmico” e não é “fundamentalista”.
O IRA utilizou o terror, entre as décadas de 70 e 90, com finalidade nacionalista: a independência da Irlanda do Norte e a reunificação irlandesa. O ETA também atua no quadro do nacionalismo: sua meta é a independência do País Basco. O terror é um traço marcante da política contemporânea. Na Rússia do século XIX, extremistas cometiam atentados contra figuras simbólicas do governo imperial. No mandato britânico da Palestina, antes do surgimento do Estado de Israel, células terroristas judaicas cometeram atentados contra indivíduos integrantes da administração britânica.
A Doutrina Bush, da “guerra ao terror”, deturpou a linguagem política. As ações armadas da resistência iraquiana dirigidas contra soldados das forças de ocupação ou contra policiais locais treinados por essas forças são, invariavelmente, classificadas por Washington como atentados terroristas. Mas isso não é terror, pois os alvos são tropas em uniforme ou administradores civis diretamente associados à ocupação.
A linguagem degenerada da Doutrina Bush oferece um instrumento de incalculável valor ideológico para todos os Estados que enfrentam movimentos de contestação da ordem interna. Desde o 11 de setembro de Nova York, esses movimentos passaram a ser regularmente tachados como “terroristas”, de modo a isolá-los politicamente e gerar legitimidade internacional para a repressão. A China passou a classificar como “terroristas” os rebeldes do Tibete e do Turquestão, que não praticam o terror ou sequer a resistência armada. Israel dedicou-se a identificar o jovem palestino que lança pedras contra as tropas de ocupação na Cisjordânia ou Gaza com os homens-bomba do terror suicida. Cuba processou como terroristas os seqüestradores de uma lancha que pretendiam alcançar a Flórida e não usaram de violência, condenando-os à pena de morte por fuzilamento.
Aparentemente, o terror é a anulação da política: a barbárie pura e simples. Os terroristas são, certamente, fanáticos – mas o terror se inscreve no campo da política. Os terroristas atuam com vistas a metas políticas e subordinam seus atentados a lógicas políticas, mesmo que estranhas sob a perspectiva da imensa maioria das pessoas.
Todo o terror é condenável. Por mais bela que seja a causa invocada pelos terroristas, os seus métodos provocam a asfixia da vida política, a militarização das sociedades, a expansão desenfreada dos aparatos policiais e de segurança. No fim, o terror acaba fortalecendo os inimigos que jura combater.
Mas nem todo o terror é igual. De modo geral, o terrorismo é um instrumento de combate do fraco contra o forte. Mas há a exceção do terror de Estado, que é fruto da renúncia ao estado de direito por parte do poder constituído. Israel pratica o terror de Estado quando, por exemplo, demole casas de parentes dos homens-bomba na Cisjordânia ou Gaza.
A política de “assassinatos seletivos” contra líderes palestinos enquadra-se na definição de terror de Estado. Não é aceitável o argumento israelense, explicitamente sustentado por Bush e por seu oponente democrata John Kerry, de que tem o direito de se defender do terrorismo. O Estado, na teoria, tem o monopólio da violência legítima – ou seja, da repressão conduzida sob as leis e de acordo com procedimentos judiciais reconhecidos. Mas o Estado não pode substituir os tribunais pelo helicóptero artilhado ou por mísseis dirigidos intencionalmente contra opositores – sejam eles terroristas ou não.
Se o terror, em geral, não é novidade, o “terror global” é. O terrorismo emergiu na política contemporânea como instrumento enquadrado nas lutas nacionais.
Os terroristas anti-czaristas do século XIX agiam nos limites do Império Russo. As células judaicas, na Palestina britânica. O ETA, na Espanha. O IRA, na Grã-Bretanha.
O Hamas atua na Palestina histórica (ou seja, Israel e os territórios ocupados). Mas a rede mundial de Osama Bin Laden não reconhece fronteiras e orienta-se por uma meta global: a derrubada da “ordem ocidental” e a restauração de uma mítica idade de ouro do Islã. Do Paquistão às Filipinas, do Afeganistão à Arábia Saudita, da África do Norte à Europa e aos Estados Unidos, grupos associados à rede global agem coordenadamente.
Tragicamente, a “guerra ao terror” de Bush fortalece e alimenta o “terror global”, ao aprofundar o caos institucional, a instabilidade política e o desespero das populações em vastas áreas do mundo árabe e muçulmano.
A ocupação do Iraque, por exemplo, criou uma nova frente de combate para a jihad (guerra santa) fundamentalista.
O apoio de Washington à política do gabinete Sharon, em Israel, de anexação unilateral de significativa porção da Cisjordânia e de “assassinatos seletivos” de líderes palestinos, ameaça erguer uma ponte ligando o terror palestino à Al-Qaeda.
Horas depois do “assassinato seletivo” do xeque Ahmed Yassin, o Hamas anunciou que passaria a mirar em “alvos americanos” no mundo inteiro. No dia seguinte, veio o recuo e a garantia de que o inimigo é apenas Israel e a “vingança” se restringiria à Palestina histórica. Poucas semanas depois, o “assassinato seletivo” de Abdel Rantisi, o sucessor de Yassin, provocou novas manifestações de rua com queimas de bandeiras americanas e gritos de vingança contra os Estados Unidos.
Washington pode estar unificando os fundamentalismos islâmicos “nacionais” ao “terror global” de Osama Bin Laden. Um cenário de pesadelo.
Boletim Mundo Ano 12 n° 3

CRIA CUERVOS...

Cria cuervos y te arrancarán los ojos” – se você alimentar futuros inimigos, vai pagar mais tarde o preço da bobagem. O provérbio é espanhol mas se aplica direitinho ao conflito entre Israel e palestinos. Afinal, o Hamas, maior facção fundamentalista palestina e atual inimigo número um do governo israelense, foi apoiado e até financiado, nos anos 70 e 80, pelo Estado judeu. Para Israel, a vocação original, religiosa e assistencialista, do Hamas – cuja principal base são centenas de clínicas, escolas e refeitórios populares – era um excelente contraponto para a militância armada nacionalista, à frente a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), de Yasser Arafat. Quem reza não agita nem atira, era o raciocínio.
Mas voltemos um pouco no tempo. O Hamas – sigla, em árabe, de Movimento de Resistência Islâmica – tem raízes na Irmandade Muçulmana, facção religiosa nascida no Egito ao final do século XIX. A irmandade enxergava a religião como instrumento importante de resistência diante de um governo egípcio totalmente dominado por potências estrangeiras. Não por acaso, o grupo Mujama, principal componente do atual Hamas, nasceu na Faixa de Gaza, que até 1967 era ocupada pelos egípcios.
Os líderes do Mujama – tendo à frente o xeque Ahmed Yassin, que Israel assassinou em abril – criticavam Arafat e seus colegas nacionalistas por deixarem de lado a religião. Enquanto as diversas facções da OLP se desdobravam em ataques armados contra Israel ou desafiavam governos árabes conservadores, o Mujama tratou de construir uma ampla rede de estabelecimentos de assistência, fundamentais para a população miserável de Gaza ou da Cisjordânia. Sua base filosófica é o centenário conceito de umma, a comunidade islâmica mundial, para a qual todos devem colaborar, independente  de sua situação econômica. Israel reconheceu, no fim dos anos 70, a rede da Mujama como beneficente, abrindo-lhe espaço para o financiamento oficial.
As coisas começaram a mudar a partir de 1987, com a Intifada, a rebelião palestina nos territórios ocupadas, primeiro  movimento de importância detonado e conduzido fora do comando da OLP, e às vezes em aberta oposição à liderança nacionalista. Desesperados com a falta de perspectiva para a ocupação israelense em Gaza e na Cisjordânia, dezenas de milhares de adolescentes lançaram-se às ruas, enfrentando tanques com pedras e atiradeiras.
A Intifada não se restringiu aos fundamentalistas religiosos e, entre seus líderes, estavam também intelectuais nacionalistas e democráticos dos territórios ocupados. Mas os ativistas do fundamentalismo desempenharam papéis destacados à frente da rebelião e, em 1988, era criada o Hamas.
Logo viria seu braço armado, as brigadas Izz elidem Al-Qassam. Enquanto Arafat negociava o reconhecimento do Estado judeu, o Hamas emitia nota denunciando o “Ocidente judeu”. Entre outras afirmações, “acusava” os judeus de liderarem a Revolução Francesa de 1789 – que, lembremos, separou a religião do Estado e da política – e a Revolução Russa de 1917.
Arafat conseguiu retomar o comando da Intifada e obteve, com o apoio de Washington, negociações com Israel que levaram aos acordos de paz de Oslo, em 1993. Logo, Arafat seria eleito presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), o primeiro embrião de governo palestino. Mesmo assim, sua liderança nunca mais seria a mesma. Incidentes entre militantes fundamentalistas e nacionalistas deixaram dezenas de mortos, em 1991 e 1992. O Hamas boicotou as primeiras eleições para o Parlamento palestino, em 1994, mas fez um acordo de não-agressão com Arafat. A incapacidade de Arafat e do então primeiro-ministro trabalhista de Israel, Ehud Barak, de alcançarem um acordo de paz definitivo, em 2001, levou a extrema-direita de Ariel Sharon a vencer as eleições naquele país.
De lá para cá, a lógica política da região tem sido ditada pelo Hamas e por Sharon. Este último, que não aceita o princípio de “terra por paz”, optou pela violência e os “assassinatos  seletivos”, inclusive dos dois principais líderes do Hamas, Ahmed Yassin e Abdel Aziz al-Rantisi. O Hamas reage com homens-bomba assassinando civis, o que reforça o discurso da direita israelense contra a paz.
Pouco a pouco, sua retórica foi se modificando, em direção a um movimento islâmico mundial contra Israel e os Estados Unidos. E beneficiou-se de novas fontes de financiamento no mundo árabe, em particular dos países mais hostis a um acordo definitivo com os israelenses.
O Hamas já declarou abertamente que prefere Sharon no poder em Israel, uma vez que os trabalhistas “trazem ilusões de paz”. Também prefere a guerra, que torna Arafat seu refém. Seus dirigentes não desejam romper com a OLP, liderança histórica da resistência palestina e que ainda goza de um  certo  prestígio interno e internacional. Mas querem Arafat cada vez menos comprometido com um acordo com os israelenses e engajado em uma luta mortal contra “o Ocidente”. É pouco provável que tentem assumir sozinhos  o poder, o que modificaria seu caráter de movimento militante.
Ao que tudo indica, a principal aposta da Hamas é a vitória de Bush nas próximas eleições nos Estados Unidos. Não se assuste: é isso mesmo. O desastre da ocupação americana no Iraque, a ocupação do Afeganistão e o apoio à política de Sharon estão fazendo de Bush o mais importante líder “islâmico” desde o patriarca Maomé. A Doutrina Bush alimenta a popularidade dos grupos fundamentalistas no mundo muçulmano, unifica  sunitas e xiitas no Iraque e provoca uma crise sem precedentes nos Estados aliados de Washington, como o Egito, a Jordânia e a Arábia Saudita.
A continuidade da política Bush/Sharon terá o condão de promover o que o Hamas e as demais facções fundamentalistas mais desejam: um embate Ocidente x Oriente, onde as principais vítimas serão a paz, a tolerância e os civis de todos os lados.
Dessa vez, não estão criando corvos: é, no mínimo, um dinossauro.
E carnívoro.

A PAZ DOS CIDADÃOS
Em dezembro de 2003, diante do crescimento do terror de Estado israelense e do terrorismo de facções fundamentalistas e nacionalistas palestinas, um grupo de 58 ativistas políticos – israelenses e palestinos –assinou em Genebra (Suíça) um “acordo informal” de paz. Tendo à frente o ex-ministro israelense Yossi Beilin, um dos arquitetos dos acordos de paz de Oslo, de 1993, e o ex-ministro palestino da Informação, Yasser Abed Rabbo, o grupo apresentou um roteiro realista e prático para o encerramento do conflito.
O “acordo informal” prevê, em linhas gerais, a imediata retirada das tropas israelenses da Cisjordânia e Gaza, a soberania compartilhada sobre Jerusalém, e a criação do Estado da Palestina, que reconheceria o vizinho Estado de Israel. Havia soluções para todos os temas espinhosos, inclusive a questão do direito de retorno dos refugiados palestinos.
Dias depois, o “acordo”, assinado de surpresa, recebia o apoio de dezenas de personalidades, entre eles o ex-dirigente soviético Mikhail Gorbachev e o ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. Mas, na verdade, o “acordo” foi uma tentativa de criar um fato político, uma ação desesperada para reagrupar pelo menos parte do “campo da paz”: o conjunto de forças pacifistas israelenses e palestinas que impulsionaram os acordos de Oslo.
O colapso das negociações de paz, em 2000, desacreditou os pacifistas dos dois lados e reforçou os defensores de todos os terrorismos. Tragicamente, quase seis meses após a assinatura do “acordo” de Genebra, a possibilidade de um “acordo” de verdade parece cada vez mais distante.

Boletim Mundo Ano 12 n° 3

DISCURSO DE BUSH ENTERRA O CAMPO DA PAZ NO ORIENTE MÉDIO

O modelo do bantustão para Gaza, representado pelo plano de separação, é o modelo que Sharon planeja reproduzir na Cisjordânia. O anúncio de que ele não iniciará a separação antes que a construção da cerca seja completada ao longo de uma rota que incluirá todos os blocos de colônias (...) evidencia a continuidade do conceito do bantustão. A cerca cria três bantustões na Cisjordânia: primeiro, Jenin-Nablus; segundo, Belém-Hebron; e terceiro, Ramallah. Esse é o verdadeiro vínculo entre os planos para Gaza e para a Cisjordânia...

(Meron Benvenisti, Haaretz, 22 de abril de 2004)

Israel tem o direito de conservar parte dos territórios da Cisjordânia anexados após a Guerra dos Seis Dias (1967), declarou o presidente George Bush, em entrevista coletiva realizada na Casa Branca, no dia 14 de abril, ao lado do primeiro- ministro de Israel, Ariel Sharon. Na Cisjordânia, vivem 2,3 milhões de palestinos e 230 mil colonos judeus em 120 assentamentos ilegais. A posição de Bush rompe com o princípio – defendido durante décadas pelos próprios Estados Unidos, pelas Nações Unidas e pelas principais potências do planeta – de que a anexação dos territórios palestinos ocupados, mesmo se parcial, é um obstáculo intransponível a qualquer plano de paz no Oriente Médio. Rompe também com o princípio de que a solução do conflito exige um acordo formal entre Israel e os palestinos, o que exclui a definição unilateral de fronteiras por Israel.
Para tornar a situação ainda mais explosiva, Bush também afirmou que os 4,5 milhões de palestinos espalhados pelo mundo, se quiserem voltar para casa, terão que se ajeitar exclusivamente nos limites territoriais do eventual Estado Palestino. Na prática, isso equivale a anular antecipadamente uma das principais reivindicações palestinas e, talvez, transformar em letra morta o próprio direito de retorno.
“À luz das novas realidades no terreno, incluindo a existência de fato de importantes centros populacionais israelenses na área, é irrealista esperar que o resultado das negociações sobre o status final seja o retorno completo e total às linhas do armistício traçadas em 1949”, disse Bush.
As fronteiras de 1949 foram traçadas após a primeira guerra árabe-israelense. A declaração abre a possibilidade de anexação, por Israel, das áreas situadas em torno do setor árabe de Jerusalém, onde foram criados alguns dos assentamentos judeus mais densamente povoados. Caso se confirme essa hipótese, aliás muito provável, isso tornará ainda mais distante a proposta palestina, rejeitada por Israel, de fazer de Jerusalém a capital binacional de Israel e de um futuro Estado Palestino.
Bush elogiou, ainda, a iniciativa de Ariel Sharon de retirar os assentamentos de 7 mil colonos judeus da Faixa de Gaza, onde vivem cerca de 1,3 milhão de palestinos, caracterizada como um “gesto histórico” que abre o caminho para a paz. Para os palestinos, isso soa como zombaria. “Não há mais solução política a partir do momento em que os Estados Unidos dão o sinal verde à anexação territorial. A diferença entre radicais e moderados vai desaparecer. Isso a meu ver é capital”, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo Elias Sanbar, representante em Paris do Instituto de Estudos Palestinos, entidade baseada em Beirute e com centros também em Washington e Jerusalém. Em outros termos, a declaração de Bush enterra os esforços de uma saída política, tal como a tentada pelos negociadores de Genebra.
Mesmo a combalida Autoridade Palestina (AP), presidida por Yasser Arafat e normalmente disposta a aceitar as iniciativas de Washington, foi empurrada para uma posição de enfrentamento. “Ninguém no mundo tem o direito de abrir mão dos direitos palestinos.
Não aceitaremos isso”, declarou o premiê palestino, Ahmed Korei, ao exigir que o Quarteto (União Européia, ONU, Rússia e Estados Unidos) organize uma conferência internacional para “discutir a negligência em relação aos direitos palestinos”.
Um comunicado oficial da AP afirma que Bush “endossa a existência ilegal das colônias habitacionais israelenses e sua expansão sobre o território palestino, além do muro da segregação que confisca 58% de nossas terras na Cisjordânia. Também substitui o ‘mapa do caminho’ pelo Plano Sharon de expansão, colonização por meio de colônias habitacionais, perpetuação da ocupação e pela continuação da construção do muro racista de segregação, sem mencionar o fato de que dificulta a criação de um Estado Palestino independente, tendo Jerusalém como sua capital. O caráter condicional da retirada israelense de Gaza e a continuação do controle israelense sobre as fronteiras da Faixa de Gaza com o Egito, bem como sobre o espaço aéreo, terrestre e marítimo são prova de que essa não é uma retirada: ao contrário, sua intenção é transformar Gaza em uma grande prisão isolada. Esse plano é um plano contra Jerusalém e, portanto, contra os lugares santos islâmicos e cristãos.”
O Plano Sharon está sendo apresentado em Israel como um “desligamento” entre o Estado judeu e os territórios ocupados, começando pela Faixa de Gaza e continuando, após a conclusão do “muro de segurança”, pela Cisjordânia. O Paz Agora, movimento pacifista israelense, surpreendentemente saudou o “desmantelamento de colônias” e os sinais do “fim da conquista”. Na verdade, Sharon pretende conservar a soberania israelense sobre toda a Palestina e estabelecer enclaves palestinos isolados na Faixa de Gaza e em três regiões separadas da Cisjordânia (veja o Mapa). O resultado não seria sequer um Estado Palestino inviável, mas uma coleção de “bantustões palestinos”, como os que a África do Sul do apartheid tentou criar para erradicar a população negra.
O quadro criado pelo apoio de Washington ao Plano Sharon reforça a perspectiva fundamentalista defendida pelo Hamas, de que não há saída possível a não ser a eliminação do Estado de Israel. O Hamas já havia sido extraordinariamente fortalecido, em 22 de março, com a execução do seu líder espiritual, o xeque Ahmed Yassin, assassinado pelo exército israelense quando saía de uma mesquita, perto de sua casa, no bairro de Sabra, em Gaza. Cerca de 200 mil palestinos compareceram ao enterro, jurando vingança. À época, o jornalista israelense Uri Avnery, veterano militante da luta pela paz, fez uma análise profética: “O destino do Estado de Israel encontra-se nas mãos de um grupo de pessoas cuja visão é primitiva, e cujas percepções são retardadas. Eles são incapazes de compreender as dimensões racionais, emocionais e políticas do conflito. (...) A ação de ontem (...) golpeou terrivelmente a possibilidade de encerrar, com a palavra “fim”, três conflitos: o palestino-israelense, o árabe-israelense e o israelense-islâmico.”
A estratégia de Sharon destina-se, antes de tudo, a dinamitar de uma vez por todas as chances de um acordo de paz. Seu objetivo secundário consiste em salvar seu próprio governo, envolto em um escândalo de corrupção e abalado por uma desastrosa política econômica.
O acirramento do conflito com os palestinos serve para convocar a coesão nacional em defesa de Israel. O sucesso de seu plano tem significado catastrófico para os povos israelense e palestino que, afinal das contas, estão condenados pela história e pela geografia a compartilhar o mesmo pedaço do planeta.

Boletim Mundo Ano 12 n° 3

BIG STICK INSPIRA POLÍTICA CONTINENTAL DE BUSH

Newton Carlos

Obsessão é preparar a derrubada de Fidel Castro, mas os projetos abrangem um golpe de Estado na Venezuela de Chávez e a escalada militar na Colômbia.
George Bush ressuscitou uma velha guarda da Guerra Fria para que ela voltasse a cuidar de questões latino-americanas ou de regiões de conflitos. É o caso de Elliot Abrahms, a cargo do Oriente Médio no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Abrahms foi assistente do secretário de Estado para a América Latina no governo Ronald Reagan (1981-88) e andou envolvido em operações ilegais de apoio à guerrilha anti-sandinista dos “contras”, na Nicarágua. Dois de seus assessores de origem hispânica, um deles cubano de nascimento, condenado por “falsidade ideológica” e perdoado por Bush pai, comandam a tropa de Bush filho para a América Latina.
Otto Reich, depois de vetado pelo Congresso para o cargo de subsecretário, foi nomeado enviado especial para a América Latina, cargo que independe de aprovação parlamentar. É o chefão. Roger Noriega ficou primeiro como embaixador na OEA e em seguida passou à subsecretaria. Cabeças viciadas em práticas antigas e ausência absoluta de sinais de renovação. A obsessão por Cuba, acima de tudo. Embora tenha privilegiado o México em sua primeira visita ao exterior como presidente, Bush não tinha um rumo claro em política latino-americana quando assumiu – e nem parecia interessado em ter.
Alca e livre comércio estavam fora do campo “político” e das áreas de atuação de Reich e Noriega, os “cubanos” de Bush. A idéia fixa em Cuba se sobrepunha à própria Colômbia e sua interminável guerra civil, vistas como caso especial, no âmbito de guerras mais amplas. Reich percorreu o continente, logo depois da posse de Bush, com o recado de que a política de isolamento de Cuba é intocável. Cuba será, possivelmente, o único tema latino-americano de importância na campanha de Bush à reeleição. Ele procura atrair os votos hispânicos de modo geral, mas a Flórida continua sendo um dos estados- chave, onde os votos cubano-americanos têm muito peso.
Uma comissão “Free Cuba”, com mais ou menos cem especialistas de agências do governo, opera desde dezembro dentro do Departamento de Estado. Ela trata de acelerar o que Noriega chama de “transição”. Segundo um de seus membros, Andrew Natsios, os Estados Unidos buscam uma estratégia que “salve vidas e reduza o sofrimento”. As conclusões estão previstas para maio ou junho, em plena campanha eleitoral. Há três cenários: transição “pacífica”, transição “com espasmos de violência” e transição “desordenada”. Com o andar da carruagem, no entanto, outras questões foram se impondo.
A venezuelana, por exemplo, de início encarada  com “negligência benévola” e depois com “torpezas diplomáticas”, como escreveu o jornal Washington Post.
Reich deu sua primeira grande mancada na Venezuela.
O governo Bush apoiou uma tentativa de golpe, a 11 de março de 2002, antes que o golpe se consumasse.
Uma presidência-relâmpago logo se apagou mesmo com a benção de Washington. Curiosa é a abordagem de Reich e sua turma. Ele vive dizendo que a Venezuela não será “outra Cuba”. Fala da existência de relatórios apontando a presença de “agentes cubanos” no país andino. Estariam se incorporando ao aparato de inteligência do presidente Hugo Chávez. Tipos físicos, caras de cubanos, segundo Reich, indicam isso...
O que os “cubanos” de Bush entendem por “outra Cuba”? Chávez – não importa no caso o que veio depois – derrotou nas urnas uma classe política corrupta, que saqueou cofres repletos de dólares do petróleo enquanto aumentava a miséria da população.
Empunhou a bandeira anti-FMI, anti-neoliberalismo, anti-Consenso de Washington. “Outra Cuba” significaria, portanto, novos desafios à hegemonia dos Estados Unidos em seu velho “quintal”. Não podem ser tolerados.
Países latino-americanos pensaram em relançar o “espírito de Contadora”. Nos anos 80 o Grupo de Contadora, nome de uma ilha panamenha onde se reuniram seus criadores, entre os quais o Brasil, tentou encaminhar uma “solução latino-americana” para a guerra civil na Nicarágua. A “nova Contadora” atuaria na Colômbia. Mas o império não aceita limitações. Nos anos 80 não foi possível fazer nada de prático em relação à Nicarágua e o Grupo de Contadora se dissolveu.
Agora, sequer foi possível relançá-lo com vistas à tragédia na Colômbia.
Nas duas etapas, o obstáculo foi a presença de Reich: antes, andava metido até o pescoço com os “contras”; hoje, é um entusiasta do presidente linha-dura da Colômbia, Álvaro Uribe, cujos punhos de ferro não conseguem pacificar o país. O governo Bush optou plenamente, com Uribe, pela solução militar e incrementou os componentes de força do Plano Colômbia. Há rumores até que soldados americanos estariam protegendo oleodutos...
Negociações caíram na escala de prioridades. As condições exigidas por Uribe impedem qualquer retomada de conversações. Um ex-chefe guerrilheiro, Antônio Navarro Wolf, cujo grupo entregou as armas em 1989 e internou-se numa “esquerda democrática” legal, não vê possibilidade de solução militar, pelo menos no próximo quarto de século. Está convencido de que uma solução, se é que existe, tem de passar necessariamente por negociações políticas. Mas, numa Colômbia encaixada em guerras mais amplas, contra o tráfico de drogas e também contra o terrorismo, segundo modelos vigentes em Washington, as ordens são de fogo e não de diálogo.
No meio de tudo isso, ainda houve o Haiti. A equipe de Reich e Noriega promoveu um giro de 180 graus na política americana de apoio ao governo de Jean-Bertrand Aristide, financiou grupos de oposição e, aproveitando o caos instalado no país, montou uma rápida intervenção militar. Com apoio da França, o presidente foi obrigado a renunciar e transferido à força para a República Centro-Africana. Tropas brasileiras preparam- se para embarcar rumo ao Haiti, a fim de participar da força de paz da ONU que, na prática, sustentará o novo governo criado sob a tutela de Washington e Paris.

“ELE É DE ESQUERDA E EU DE DIREITA,MAS NOS DAMOS BEM”
Na primeira visita de Lula a Bush ouviu-se que as relações entre os dois ainda iriam “surpreender”.
Bush, em suas avaliações primárias, quase ingênuas, se não fossem em geral perigosas, comentou o encontro com uma observação carinhosa. “Dizem que ele é de esquerda e eu de direita, mas nos damos bem”, foi a frase do presidente americano registrada em publicações dos Estados Unidos. Nada demais, no entanto, para os que acompanhavam com lentes de aumento as reações em Washington à eleição de Lula, na expectativa de desencontros e não encontros.
Ledo engano. O primeiro “uau” aconteceu com uma conferência num centro de estudos neoconservador, reduto de falcões, de Otto Reich, o homem de Bush para a América Latina. Reich procurou demolir as análises pessimistas em relação a Lula. A Latin America Newsletters, editada em Londres, foi uma das poucas publicações a registrarem o que disse Reich. “Dureza com Castro, mãos de luvas com Lula”, informava a matéria em seu título. Reich garantiu a interlocutores privilegiados, com inserções formais e informais no governo Bush, que Lula não seria “outro Chávez” e muito menos “outro Castro”.
Reich falou antes da posse de Lula, tratando de dissipar, com aval do Departamento de Estado e da Casa Branca, inquietações a seu ver injustificáveis. Desde a eleição o governo Bush encarou Lula como referência latino-americana de grande peso e com a qual os embates envolvendo interesses nacionais, de ambos os lados, deveriam ficar acima de possíveis confrontos ideológicos. Alienar um governo democrático, num Brasil gigantesco, seria mais um erro. Pragmatismo raro na tribo dos Bush. A isso devem ser creditadas as simpatias pela reivindicação do Brasil de ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e a articulação para entregar ao Brasil o comando de uma força de paz no Haiti.

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CENSOS NARRAM A HISTÓRIA DA IDEOLOGIA DA MESTIÇAGEM

Desde 1872, o grupo censitário negro conheceu paulatina redução relativa. Enquanto isso, crescia o grupo censitário pardo e consolidava-se o mito da democracia racial.
Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro”.
A afirmação de Gilberto Freyre, no livro Casa- grande e senzala, publicado em 1933, consagrou a ideologia da mestiçagem e o mito da democracia racial no Brasil. A história do recenseamento dos negros reflete não exatamente a trajetória da miscigenação mas, sobretudo, o percurso da ideologia da mestiçagem.
Não é segredo que os negros foram introduzidos como escravos no Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Todavia, não se sabe exatamente o número de indivíduos que para cá foram trazidos. As estimativas falam em cerca de 3,5 milhões. A dificuldade de se estabelecer um número exato decorre, principalmente, de dois fatores: a entrada de escravos contrabandeados e a queima intencional de muitos documentos sobre a escravidão em 1890, logo após a proclamação da República.
A substituição do Império pela República foi acompanhada pelo esforço de “apagar” o passado escravista, que se associava com a marcha triunfante da valorização da mestiçagem e com a produção do mito da democracia racial.
No século XVI, a mão-de-obra escrava já estava presente na agroindústria açucareira no Nordeste, em áreas do atual estado de Pernambuco e na região do Recôncavo Baiano. Em seguida, durante os séculos XVII e XVIII, a mão-de-obra escrava foi introduzida nas lavouras de algodão do Maranhão. Com a decadência da lavoura canavieira no Nordeste, a partir do século XVII, novos escravos e outros deslocados das regiões nordestinas decadentes passaram a ser utilizados na região das Minas Gerais, durante o período da exploração aurífera.
Não há estatísticas demográficas sobre a população negra no período colonial. As estimativas indicam que, em 1819, às vésperas da independência, a população do Brasil era de cerca de 3,6 milhões de habitantes.
Desse total, pouco menos de 2,5 milhões eram livres e algo como 1,1 milhão (quase 31%) eram escravos.
Evidentemente, a população negra representava uma proporção maior que a população escrava.
No século XIX, no período que antecedeu a Lei Eusébio de Queiroz (1850), de proibição do tráfico negreiro, um expressivo contingente de mão-de-obra escrava ainda foi utilizado nas lavouras de cana-de-açúcar e café no Rio de Janeiro e, um pouco mais tarde, na primeira fase da expansão do ciclo cafeeiro paulista.
A “era censitária” no Brasil começou na penúltima década do Império. A partir daí, ao longo dos censos, curiosamente, registra-se retrocesso histórico na participação dos negros na população nacional. Em 1872, quando se realizou o primeiro censo, a população negra representava cerca de 20% do total. No segundo censo, em 1890, essa participação reduziu-se para pouco menos de 15%. Na primeira metade do século XX, caiu para 11% e, atualmente, é de aproximadamente 6%.
A pergunta se impõe: qual é a causa do fenômeno?
Do ponto de vista metodológico, a questão deve ser formulada como hipóteses alternativas: teria ocorrido diminuição efetiva da participação dos negros na população nacional ou a diminuição ocorre apenas no registro da participação dos negros? A resposta não é singular, pois o fenômeno decorre de uma combinação de fatores, entre os quais destacam-se três:
1. A proibição do tráfico negreiro estancou a transferência de africanos para o Brasil. Desde 1850, quase toda a expansão demográfica da população negra resulta do crescimento vegetativo. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, um vigoroso movimento de imigração européia introduziu milhões de brancos na sociedade nacional.
2. O processo histórico de miscigenação, associado ao sistema de classificação utilizado nos censos, inevitavelmente reduz o registro da participação dos negros e aumenta o da participação dos “pardos”. Os descendentes de negros formam a quase totalidade dos mestiços, que o IBGE classifica como “pardos”.
Esse grupo censitário ampliou a sua participação no conjunto da população nacional ao longo de toda a “era censitária”. Atualmente, representa cerca de 40% do total .
3. Os censos baseiam-se na auto-declaração, o que é correto pois objetivamente a espécie humana não se divide em raças. Mas o racismo influencia, diretamente, os registros censitários. A existência de um grupo censitário denominado “pardos”, num contexto cultural de desvalorização dos negros e valorização da miscigenação, tende a direcionar a informação original. Inquiridas pelos recenseadores, muitas pessoas que poderiam se declarar negras optaram por se declararem pardas.
Os censos não são, rigorosamente, “retratos da realidade” – apesar se sempre se apresentarem assim.
Eles retratam um modo de interpretar a realidade, que é condicionado pela política e pela cultura e é filtrado pelo tipo de questões formuladas pelos recenseadores.
No censo de 1970, o regime ditatorial que vigorava no Brasil proibiu que fossem formuladas questões sobre a cor da pele da população. A intenção evidente era evitar cruzamentos de dados sócio-econômicos (renda familiar, escolaridade, tipo de moradia) com dados sobre a cor da pele, de forma a ocultar a constatação de que a incidência da pobreza é maior entre os negros.
No censo de 1980, os recenseadores registraram mais de 120 “cores” declaradas pelos entrevistados. Surgiram “cores” como “amorenada”, “acastanhada”, “agalegada”, “alva-escura”, “alva-rosada”, “branca-queimada”, “branca-suja”, etc. No fim, todos esses declarantes foram classificados como “pardos”. Obviamente, as respostas refletiam o peso da discriminação. Por outro lado, ironicamente, são mais verdadeiras que as classificações tradicionais de cor da pele, que nasceram com o racismo “científico” do século XIX: ninguém é “branco”, “preto”, “amarelo” ou “vermelho”, como queriam os inventores das raças humanas.
A redução histórica do registro da participação dos negros nos censos parece ter sido interrompida recentemente.
Dados da última década indicam um ligeiro crescimento da população negra. Muitos indivíduos optaram por se declarar negros, e não pardos. O fenômeno reflete, provavelmente, um fortalecimento da identidade cultural do grupo.
Sob o ponto de vista regional, os registros censitários revelam, ao menos em parte, as heranças da escravidão e da imigração européia. Isso transparece na elevada participação dos brancos nas populações do Sul e no Sudeste e na dos pardos nas regiões Norte e Nordeste.
No Centro-Oeste, cuja população formou-se essencialmente pelas migrações internas do século XX, há equilíbrio estatístico quase perfeito entre brancos e pardos .
No que se refere ao grupo negro, o censo constatou  que sua maior presença relativa ocorre no Nordeste (cerca de 7,5% da população regional) e no Sudeste (aproximadamente 6,5%). Do ponto de vista absoluto, os quatro estados com maior população negra são Bahia (1,7 milhão), São Paulo (1,66 milhão), Rio de Janeiro (1,57 milhão) e Minas Gerais (1,3 milhão).

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ONU E UNIÃO EUROPÉIA FRACASSAM EM CHIPRE

O novo alargamento da União Européia (UE), com a adesão de uma dezena de países, integrou quase todo o continente, do Atlântico às fronteiras ocidentais da CEI. Entre os novos membros, dois são micro-Estados insulares: Malta e Chipre.
Eles compartilham, curiosamente, a condição de ilhas estrategicamente localizadas no Mediterrâneo e o passado de colônias britânicas que só alcançaram a independência na década de 60.
No caminho da integração à UE, o caso mais complicado é o de Chipre. Com superfície de 9.250 km2 (menos da metade da área do estado de Sergipe), o país localiza-se a menos de 80 quilômetros da Turquia e nas proximidades da Síria e do Líbano. A imagem adequada é a de um “porta-aviões permanentemente ancorado no Mediterrâneo oriental”.
Língua, cultura e religião aproximam Chipre da Grécia. Contudo, entre 1570 e 1878, a ilha permaneceu sob o controle do Império Turco-Otomano. As influências grega e turca revelam-se na composição da população: os cipriotas de origem grega e religião ortodoxa correspondem a cerca de 78% da população; os de origem turca e religião muçulmana perfazem cerca de 18%.
A decadência otomana fez Chipre deslizar para a influência britânica. Em 1878, a Grã- Bretanha adquiriu controle parcial sobre a ilha. Os acordos de paz firmados após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) transformaram- na em colônia britânica.
Grécia e Turquia, países que têm grande interesse nos destinos de Chipre, possuem rivalidades ancestrais mas são parceiros na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Desde o século XIX, greco-cipriotas elaboraram planos para unir Chipre à Grécia, um projeto conhecido como enosis.
Isso sempre foi considerado inaceitável pela Turquia. Com base no ideário da enosis surgiu, em 1946, a Organização Nacional dos Combatentes Cipriotas (EOKA), que dirigiu sua luta contra o domínio colonial britânico.
Os acordos que resultaram na independência de Chipre, em 1960, foram marcados por acirradas discussões em torno partilha do poder no país entre as duas comunidades. Os turcos-cipriotas queriam representação política eqüitativa à dos greco-cipriotas, enquanto estes defendiam participação proporcional ao peso demográfico de cada comunidade.
Os anos 60 assistiram a confrontos esporádicos entre as duas comunidades. Em 1974, os partidários da enosis promoveram um golpe de Estado, derrubando o governo presidido pelo arcebispo Makários, o “patriarca da independência”. Makários havia defendido a causa, mas a abandonara pois julgava que o tempo da união de Chipre à Grécia tinha passado.
A derrubada do governo Makários forneceu um pretexto para que o governo turco invadisse Chipre, alegando defender os interesses da minoria turco-cipriota.
A invasão quase provocou uma guerra entre Grécia e Turquia, governadas à época por ditaduras, mas a mediação de Washington, amparada por fortes ameaças, evitou que a fagulha degenerasse em explosão no flanco sudeste da OTAN.
Contudo, desafiando as pressões internacionais, as forças invasoras turcas consolidaram suas posições no norte da ilha, ocupando cerca de 37% do território cipriota. Cerca de 200 mil greco-cipriotas abandonaram áreas ocupadas pelos turcos, enquanto 50 mil turco- cipriotas transferiam-se do sul para o norte. De lá para cá, tropas das Nações Unidas patrulham a faixa fronteiriça entre as duas comunidades, conhecida como linha Átila ou Verde.
Em 1983, os turco-cipriotas proclamaram a República Turca do Norte de Chipre, reconhecida apenas pela Turquia. A decisão cristalizava a partição da ilha. As tentativas da ONU de negociar uma solução política esbarraram no muro das desconfianças mútuas e na eterna discussão sobre a representação política das duas comunidades. A parte grega de Chipre saiu-se melhor que a turca. A guerra civil no Líbano, entre 1975 e 1991, subtraiu a esse país o papel de pólo financeiro regional, que passou a ser desempenhado por Chipre. Além disso, a parte grega beneficiou-se das rendas do turismo e, indiretamente, da relativa prosperidade experimentada pela Grécia desde a adesão à Comunidade Européia, em 1981. A “Chipre grega” exibe PIB per capita em torno de 15 mil dólares, enquanto a “Chipre turca”, de cerca de 6 mil dólares.
As pressões internacionais para a reunificação aumentaram em 1998, quando a parte grega de Chipre solicitou sua adesão à UE. Em 2002 foi lançado pela ONU o Plano Annan, que previa a reunificação num república confederal, formada por um Estado grego e um turco. Mas o referendo popular, realizado no fim de abril, implodiu o projeto. Na parte grega, 78% dos eleitores rejeitaram a reunificação. Na parte turca, o plano foi aprovado.
Com esse resultado, desastroso do ponto de vista da ONU e da UE, apenas a parte grega ingressa no bloco europeu.
Agora, contudo, desaparecem os argumentos contrários ao reconhecimento internacional da República Turca do Norte de Chipre.

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