A Doutrina Bush identifica a resistência armada ao terrorismo e empurra os grupos fundamentalistas nacionais para os braços do “terror global” de Osama Bin Laden.
No debate político contemporâneo, confunde-se muito facilmente o terrorismo com o fenômeno geral da resistência armada à opressão dos Estados. Esta última atividade tem sido um traço destacado do mundo moderno – em especial em situações de domínio de potências ocidentais ou coloniais – e abrangeu, em tempos mais recentes, as atividades do Congresso Nacional Africano contra o regime do apartheid na África do Sul, assim como a OLP na Palestina, a guerrilha no Afeganistão (...). O direito geral à resistência e, quando existe uma coação extrema, a pegar em armas costuma ser reconhecido no discurso político moderno e também na legislação: constituiu o fundamento do respaldo de Reagan à revolta contra os regimes comunistas no Terceiro Mundo na década de 80 e do anterior respaldo comunista às guerras de libertação nacional nas décadas de 50 e 60. Este direito é também uma valiosa parte da herança da reflexão política, no Ocidente e no Oriente, ao longo de muitos séculos: a tradição política e legal cristã rendeu homenagem a este princípio, abraçado entre outros por John Locke e os “pais fundadores” dos Estados Unidos. (Fred Halliday, “Terrorismo y perspectivas históricas”, Vanguardia, Dossier n. 10: Terror Global, Barcelona, 2004).
O terrorismo não é a resistência armada contra a opressão, a ocupação ou a dominação colonial. Terrorismo é a ação política contra o poder estabelecido caracterizada pelo emprego de atos de violência dirigidos a civis, líderes políticos ou militares não-combatentes.
No 11 de setembro de 2001, os fanáticos da Al-Qaeda praticaram o terror, fazendo aviões comerciais, com passageiros, colidirem contra as torres gêmeas do World Trade Center, repletas de civis que trabalhavam para empresas privadas. No 11 de março de 2004, o terror da Al-Qaeda atingiu trens urbanos lotados de trabalhadores, em Madri. Esses são atos clássicos de terrorismo, como o são os atentados suicidas cometidos pelos homens- bomba que explodem restaurantes ou cafés em Jerusalém e ônibus ou supermercados em Tel-Aviv.
O terror não é “islâmico” e não é “fundamentalista”.
O IRA utilizou o terror, entre as décadas de 70 e 90, com finalidade nacionalista: a independência da Irlanda do Norte e a reunificação irlandesa. O ETA também atua no quadro do nacionalismo: sua meta é a independência do País Basco. O terror é um traço marcante da política contemporânea. Na Rússia do século XIX, extremistas cometiam atentados contra figuras simbólicas do governo imperial. No mandato britânico da Palestina, antes do surgimento do Estado de Israel, células terroristas judaicas cometeram atentados contra indivíduos integrantes da administração britânica.
A Doutrina Bush, da “guerra ao terror”, deturpou a linguagem política. As ações armadas da resistência iraquiana dirigidas contra soldados das forças de ocupação ou contra policiais locais treinados por essas forças são, invariavelmente, classificadas por Washington como atentados terroristas. Mas isso não é terror, pois os alvos são tropas em uniforme ou administradores civis diretamente associados à ocupação.
A linguagem degenerada da Doutrina Bush oferece um instrumento de incalculável valor ideológico para todos os Estados que enfrentam movimentos de contestação da ordem interna. Desde o 11 de setembro de Nova York, esses movimentos passaram a ser regularmente tachados como “terroristas”, de modo a isolá-los politicamente e gerar legitimidade internacional para a repressão. A China passou a classificar como “terroristas” os rebeldes do Tibete e do Turquestão, que não praticam o terror ou sequer a resistência armada. Israel dedicou-se a identificar o jovem palestino que lança pedras contra as tropas de ocupação na Cisjordânia ou Gaza com os homens-bomba do terror suicida. Cuba processou como terroristas os seqüestradores de uma lancha que pretendiam alcançar a Flórida e não usaram de violência, condenando-os à pena de morte por fuzilamento.
Aparentemente, o terror é a anulação da política: a barbárie pura e simples. Os terroristas são, certamente, fanáticos – mas o terror se inscreve no campo da política. Os terroristas atuam com vistas a metas políticas e subordinam seus atentados a lógicas políticas, mesmo que estranhas sob a perspectiva da imensa maioria das pessoas.
Todo o terror é condenável. Por mais bela que seja a causa invocada pelos terroristas, os seus métodos provocam a asfixia da vida política, a militarização das sociedades, a expansão desenfreada dos aparatos policiais e de segurança. No fim, o terror acaba fortalecendo os inimigos que jura combater.
Mas nem todo o terror é igual. De modo geral, o terrorismo é um instrumento de combate do fraco contra o forte. Mas há a exceção do terror de Estado, que é fruto da renúncia ao estado de direito por parte do poder constituído. Israel pratica o terror de Estado quando, por exemplo, demole casas de parentes dos homens-bomba na Cisjordânia ou Gaza.
A política de “assassinatos seletivos” contra líderes palestinos enquadra-se na definição de terror de Estado. Não é aceitável o argumento israelense, explicitamente sustentado por Bush e por seu oponente democrata John Kerry, de que tem o direito de se defender do terrorismo. O Estado, na teoria, tem o monopólio da violência legítima – ou seja, da repressão conduzida sob as leis e de acordo com procedimentos judiciais reconhecidos. Mas o Estado não pode substituir os tribunais pelo helicóptero artilhado ou por mísseis dirigidos intencionalmente contra opositores – sejam eles terroristas ou não.
Se o terror, em geral, não é novidade, o “terror global” é. O terrorismo emergiu na política contemporânea como instrumento enquadrado nas lutas nacionais.
Os terroristas anti-czaristas do século XIX agiam nos limites do Império Russo. As células judaicas, na Palestina britânica. O ETA, na Espanha. O IRA, na Grã-Bretanha.
O Hamas atua na Palestina histórica (ou seja, Israel e os territórios ocupados). Mas a rede mundial de Osama Bin Laden não reconhece fronteiras e orienta-se por uma meta global: a derrubada da “ordem ocidental” e a restauração de uma mítica idade de ouro do Islã. Do Paquistão às Filipinas, do Afeganistão à Arábia Saudita, da África do Norte à Europa e aos Estados Unidos, grupos associados à rede global agem coordenadamente.
Tragicamente, a “guerra ao terror” de Bush fortalece e alimenta o “terror global”, ao aprofundar o caos institucional, a instabilidade política e o desespero das populações em vastas áreas do mundo árabe e muçulmano.
A ocupação do Iraque, por exemplo, criou uma nova frente de combate para a jihad (guerra santa) fundamentalista.
O apoio de Washington à política do gabinete Sharon, em Israel, de anexação unilateral de significativa porção da Cisjordânia e de “assassinatos seletivos” de líderes palestinos, ameaça erguer uma ponte ligando o terror palestino à Al-Qaeda.
Horas depois do “assassinato seletivo” do xeque Ahmed Yassin, o Hamas anunciou que passaria a mirar em “alvos americanos” no mundo inteiro. No dia seguinte, veio o recuo e a garantia de que o inimigo é apenas Israel e a “vingança” se restringiria à Palestina histórica. Poucas semanas depois, o “assassinato seletivo” de Abdel Rantisi, o sucessor de Yassin, provocou novas manifestações de rua com queimas de bandeiras americanas e gritos de vingança contra os Estados Unidos.
Washington pode estar unificando os fundamentalismos islâmicos “nacionais” ao “terror global” de Osama Bin Laden. Um cenário de pesadelo.
Boletim Mundo Ano 12 n° 3
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