Mas voltemos um pouco no tempo. O Hamas – sigla, em árabe, de Movimento de Resistência Islâmica – tem raízes na Irmandade Muçulmana, facção religiosa nascida no Egito ao final do século XIX. A irmandade enxergava a religião como instrumento importante de resistência diante de um governo egípcio totalmente dominado por potências estrangeiras. Não por acaso, o grupo Mujama, principal componente do atual Hamas, nasceu na Faixa de Gaza, que até 1967 era ocupada pelos egípcios.
Os líderes do Mujama – tendo à frente o xeque Ahmed Yassin, que Israel assassinou em abril – criticavam Arafat e seus colegas nacionalistas por deixarem de lado a religião. Enquanto as diversas facções da OLP se desdobravam em ataques armados contra Israel ou desafiavam governos árabes conservadores, o Mujama tratou de construir uma ampla rede de estabelecimentos de assistência, fundamentais para a população miserável de Gaza ou da Cisjordânia. Sua base filosófica é o centenário conceito de umma, a comunidade islâmica mundial, para a qual todos devem colaborar, independente de sua situação econômica. Israel reconheceu, no fim dos anos 70, a rede da Mujama como beneficente, abrindo-lhe espaço para o financiamento oficial.
As coisas começaram a mudar a partir de 1987, com a Intifada, a rebelião palestina nos territórios ocupadas, primeiro movimento de importância detonado e conduzido fora do comando da OLP, e às vezes em aberta oposição à liderança nacionalista. Desesperados com a falta de perspectiva para a ocupação israelense em Gaza e na Cisjordânia, dezenas de milhares de adolescentes lançaram-se às ruas, enfrentando tanques com pedras e atiradeiras.
A Intifada não se restringiu aos fundamentalistas religiosos e, entre seus líderes, estavam também intelectuais nacionalistas e democráticos dos territórios ocupados. Mas os ativistas do fundamentalismo desempenharam papéis destacados à frente da rebelião e, em 1988, era criada o Hamas.
Logo viria seu braço armado, as brigadas Izz elidem Al-Qassam. Enquanto Arafat negociava o reconhecimento do Estado judeu, o Hamas emitia nota denunciando o “Ocidente judeu”. Entre outras afirmações, “acusava” os judeus de liderarem a Revolução Francesa de 1789 – que, lembremos, separou a religião do Estado e da política – e a Revolução Russa de 1917.
Arafat conseguiu retomar o comando da Intifada e obteve, com o apoio de Washington, negociações com Israel que levaram aos acordos de paz de Oslo, em 1993. Logo, Arafat seria eleito presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), o primeiro embrião de governo palestino. Mesmo assim, sua liderança nunca mais seria a mesma. Incidentes entre militantes fundamentalistas e nacionalistas deixaram dezenas de mortos, em 1991 e 1992. O Hamas boicotou as primeiras eleições para o Parlamento palestino, em 1994, mas fez um acordo de não-agressão com Arafat. A incapacidade de Arafat e do então primeiro-ministro trabalhista de Israel, Ehud Barak, de alcançarem um acordo de paz definitivo, em 2001, levou a extrema-direita de Ariel Sharon a vencer as eleições naquele país.
De lá para cá, a lógica política da região tem sido ditada pelo Hamas e por Sharon. Este último, que não aceita o princípio de “terra por paz”, optou pela violência e os “assassinatos seletivos”, inclusive dos dois principais líderes do Hamas, Ahmed Yassin e Abdel Aziz al-Rantisi. O Hamas reage com homens-bomba assassinando civis, o que reforça o discurso da direita israelense contra a paz.
Pouco a pouco, sua retórica foi se modificando, em direção a um movimento islâmico mundial contra Israel e os Estados Unidos. E beneficiou-se de novas fontes de financiamento no mundo árabe, em particular dos países mais hostis a um acordo definitivo com os israelenses.
O Hamas já declarou abertamente que prefere Sharon no poder em Israel, uma vez que os trabalhistas “trazem ilusões de paz”. Também prefere a guerra, que torna Arafat seu refém. Seus dirigentes não desejam romper com a OLP, liderança histórica da resistência palestina e que ainda goza de um certo prestígio interno e internacional. Mas querem Arafat cada vez menos comprometido com um acordo com os israelenses e engajado em uma luta mortal contra “o Ocidente”. É pouco provável que tentem assumir sozinhos o poder, o que modificaria seu caráter de movimento militante.
Ao que tudo indica, a principal aposta da Hamas é a vitória de Bush nas próximas eleições nos Estados Unidos. Não se assuste: é isso mesmo. O desastre da ocupação americana no Iraque, a ocupação do Afeganistão e o apoio à política de Sharon estão fazendo de Bush o mais importante líder “islâmico” desde o patriarca Maomé. A Doutrina Bush alimenta a popularidade dos grupos fundamentalistas no mundo muçulmano, unifica sunitas e xiitas no Iraque e provoca uma crise sem precedentes nos Estados aliados de Washington, como o Egito, a Jordânia e a Arábia Saudita.
A continuidade da política Bush/Sharon terá o condão de promover o que o Hamas e as demais facções fundamentalistas mais desejam: um embate Ocidente x Oriente, onde as principais vítimas serão a paz, a tolerância e os civis de todos os lados.
Dessa vez, não estão criando corvos: é, no mínimo, um dinossauro.
E carnívoro.
A PAZ DOS CIDADÃOS
Em dezembro de 2003, diante do crescimento do terror de Estado israelense e do terrorismo de facções fundamentalistas e nacionalistas palestinas, um grupo de 58 ativistas políticos – israelenses e palestinos –assinou em Genebra (Suíça) um “acordo informal” de paz. Tendo à frente o ex-ministro israelense Yossi Beilin, um dos arquitetos dos acordos de paz de Oslo, de 1993, e o ex-ministro palestino da Informação, Yasser Abed Rabbo, o grupo apresentou um roteiro realista e prático para o encerramento do conflito.O “acordo informal” prevê, em linhas gerais, a imediata retirada das tropas israelenses da Cisjordânia e Gaza, a soberania compartilhada sobre Jerusalém, e a criação do Estado da Palestina, que reconheceria o vizinho Estado de Israel. Havia soluções para todos os temas espinhosos, inclusive a questão do direito de retorno dos refugiados palestinos.
Dias depois, o “acordo”, assinado de surpresa, recebia o apoio de dezenas de personalidades, entre eles o ex-dirigente soviético Mikhail Gorbachev e o ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. Mas, na verdade, o “acordo” foi uma tentativa de criar um fato político, uma ação desesperada para reagrupar pelo menos parte do “campo da paz”: o conjunto de forças pacifistas israelenses e palestinas que impulsionaram os acordos de Oslo.
O colapso das negociações de paz, em 2000, desacreditou os pacifistas dos dois lados e reforçou os defensores de todos os terrorismos. Tragicamente, quase seis meses após a assinatura do “acordo” de Genebra, a possibilidade de um “acordo” de verdade parece cada vez mais distante.
Boletim Mundo Ano 12 n° 3
Nenhum comentário:
Postar um comentário