quarta-feira, 3 de agosto de 2011

UM TIRO NO ESCURO

Um atentado terrorista em Sarajevo, na Bósnia, levou, há 90 anos, ao início da Primeira Guerra Mundial. A guerra que ninguém queria e que ninguém conseguiu evitar.

Chegou a hora de as grandes nações acalmarem-se, ocupando-se com objetivos pacíficos.
Ou então, virá uma explosão que ninguém deseja e que não beneficiará ninguém.
(Bethmann-Hollweg, chanceler alemão, junho de 1913)
O estudante de origem sérvia Gavrilo Princip teve seus 15 minutos de fama. No dia 28 de junho de 1914, depois de uma série de trapalhadas que o haviam feito desistir e ir tomar uma cerveja em uma taberna de Sarajevo, ele percebeu, bem à sua frente, o carro do herdeiro do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando. Princip sacou o revólver e atirou, matando o herdeiro de 51 anos. Saiu correndo e entrou em um cinema, onde seria preso. Morreu quatro anos depois, quase junto com o fim da grande guerra, de tuberculose, esquecido num campo de prisioneiros sérvios, antes de completar 30 anos.
Os tiros do desconhecido Gavrilo Princip precipitaram a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), que matou nove milhões de pessoas, deixou 21 milhões de feridos, destruiu quatro impérios – Alemanha, Rússia, Austro-Hungria e Turco-Otomano – além de abrir as portas para o surgimento do primeiro Estado socialista do mundo, na antiga Rússia dos czares, e somar prejuízos hoje calculados em US$ 200 bilhões.
Ações individuais ou atos terroristas que aceleram a roda da história têm sido comuns, ao longo dos séculos. Há pouco tempo, em setembro de 2000, o então aspirante a primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, resolveu “passear” na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, um dos lugares sagrados para os muçulmanos, cercado por centenas de soldados. A provocação fez explodir uma nova rebelião palestina e detonou junto grande parte das perspectivas de paz no Oriente Médio.
Lá atrás, a própria visita do arquiduque a Sarajevo, na Bósnia, foi uma provocação diante dos sérvios, que compunham grande parte da população local. Ele decidiu inspecionar manobras militares no dia 28 de junho de 1914. Mesmo dia em que, no longínquo ano medieval de 1349, uma grande coalizão destruiu o reino sérvio independente do rei Dusan.
A ação terrorista funciona, então, como uma centelha que incendeia um paiol de pólvora preparado há muito tempo. Acontece que, no caso de Gavrilo Princip, os tiros disparados por  seu velho revólver na capital da província austro-húngara da Bósnia-Herzegovina precipitaram uma guerra que nenhum dos principais estadistas europeus desejava. E que ninguém conseguiu evitar, pois as suas raízes já estavam fincadas numa Europa dividida por alianças rivais.
O conflito era previsível. A Europa, então o centro da economia mundial, havia liderado a Revolução Industrial, tendo à frente a Grã-Bretanha, França, Alemanha e Bélgica. Senhores do mundo, as grandes empresas sediadas nesses países exportavam capitais, criando ferrovias, usinas elétricas ou empresas de navegação na Argentina, Brasil, Austrália, Índia ou África do Sul.
De olho em fontes de matérias-primas para suas indústrias famintas, as potências européias dividiram entre si a África, como se fosse uma pizza, ao final do século XIX. Alemanha e Itália, que haviam alcançado sua unificação nacional apenas na segunda metade do século XIX, chegaram tarde a essa divisão. Sentiam-se injustiçadas. Os alemães derrotaram os franceses na Guerra Franco-Prussiana de 1870, espalhando na Europa o temor pela pujança da economia germânica e, na França, o revanchismo pela perda da Alsácia e da Lorena. Em duas ocasiões, 1905 e 1911, França e Alemanha quase voltaram ao campo de batalha, a pretexto de disputas envolvendo o Marrocos. Por esses anos, a França já tinha articulado com a Grã-Bretanha e a Rússia a Entente, enquanto a Alemanha e o Império Austro- Húngaro formavam a aliança das Potências Centrais.
O Império Turco-Otomano, rival da Rússia, acabaria associando-se às Potências Centrais.
Três dos quatro grandes impérios europeus –Austro-Húngaro, Turco-Otomano e Russo – viam crescer, junto com o liberalismo que acompanhou a Revolução Industrial, reivindicações de nações oprimidas dentro de seus territórios, exigindo o direito de falar o “seu” idioma, erguer a “sua” bandeira ou praticar a “sua” religião.
O nacionalismo era a verdadeira religião da época.
Cada império, é claro, tratou de articular-se a grupos nacionalistas que tentavam arrancar de impérios rivais a sua independência. Assim, o governo da pequena Sérvia fomentava grupos nacionalistas sérvios, na tentativa de criar um novo Estado a partir das províncias eslavas dos impérios Austro-Húngaro (incluindo a Croácia e a Eslovênia) e Turco (partes da Bósnia- Herzegovina). Um desses grupos era a Jovem Bósnia, ao qual Gavrilo Princip pertencia. Para ganhar força, a Sérvia aliara-se governo russo, também eslavo.
Durante as décadas de tensão que precederam a Primeira Guerra Mundial, os gigantes da Europa haviam construído exércitos imensos. A maior parte dos países do continente adotou o serviço militar obrigatório entre 1870 e 1914. Qualquer impasse no delicado equilíbrio europeu levava à mobilização geral de milhões de soldados.
O perigo era iminente. Os chefes de Estado sabiam disso e tratavam de evitar o confronto definitivo.
Disputas “quentes”, como a que envolveu a Grã- Bretanha e a Alemanha, no início da década de 1910, em torno da construção da ferrovia Berlim-Bagdá, terminavam em acordos. Mesmo após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, houve intensos movimentos diplomáticos para evitar a guerra. Todos os estadistas se manifestaram contra o conflito.
O problema é que os tiros de Princip incendiaram uma mistura terrível de alianças, exércitos e generais prontinhos para uma guerra que todos acreditavam poder vencer em pouco tempo, e de ódios nacionalistas que inflamavam multidões cansadas de séculos de opressão.
Poucas semanas depois do atentado de Sarajevo, mobilizadas as tropas, raros foram os estadistas – de esquerda ou direita – que tiveram a coragem de se opor a um conflito que entusiasmava as massas. Os militares tomaram o lugar dos políticos na condução da política externa européia. Nas palavras do historiador britânico A. J. P. Taylor, “os estadistas tornaram-se prisioneiros de suas próprias armas. Os grandes exércitos, organizados para prover segurança e preservar a paz, carregaram as nações para a guerra...”. Os tiros de Gavrilo Princip haviam atingido um alvo muito maior do que o peito de Francisco Ferdinando.

Boletim Mundo Ano 12 n° 3

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