Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro”.
A afirmação de Gilberto Freyre, no livro Casa- grande e senzala, publicado em 1933, consagrou a ideologia da mestiçagem e o mito da democracia racial no Brasil. A história do recenseamento dos negros reflete não exatamente a trajetória da miscigenação mas, sobretudo, o percurso da ideologia da mestiçagem.
Não é segredo que os negros foram introduzidos como escravos no Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Todavia, não se sabe exatamente o número de indivíduos que para cá foram trazidos. As estimativas falam em cerca de 3,5 milhões. A dificuldade de se estabelecer um número exato decorre, principalmente, de dois fatores: a entrada de escravos contrabandeados e a queima intencional de muitos documentos sobre a escravidão em 1890, logo após a proclamação da República.
A substituição do Império pela República foi acompanhada pelo esforço de “apagar” o passado escravista, que se associava com a marcha triunfante da valorização da mestiçagem e com a produção do mito da democracia racial.
No século XVI, a mão-de-obra escrava já estava presente na agroindústria açucareira no Nordeste, em áreas do atual estado de Pernambuco e na região do Recôncavo Baiano. Em seguida, durante os séculos XVII e XVIII, a mão-de-obra escrava foi introduzida nas lavouras de algodão do Maranhão. Com a decadência da lavoura canavieira no Nordeste, a partir do século XVII, novos escravos e outros deslocados das regiões nordestinas decadentes passaram a ser utilizados na região das Minas Gerais, durante o período da exploração aurífera.
Não há estatísticas demográficas sobre a população negra no período colonial. As estimativas indicam que, em 1819, às vésperas da independência, a população do Brasil era de cerca de 3,6 milhões de habitantes.
Desse total, pouco menos de 2,5 milhões eram livres e algo como 1,1 milhão (quase 31%) eram escravos.
Evidentemente, a população negra representava uma proporção maior que a população escrava.
No século XIX, no período que antecedeu a Lei Eusébio de Queiroz (1850), de proibição do tráfico negreiro, um expressivo contingente de mão-de-obra escrava ainda foi utilizado nas lavouras de cana-de-açúcar e café no Rio de Janeiro e, um pouco mais tarde, na primeira fase da expansão do ciclo cafeeiro paulista.
A “era censitária” no Brasil começou na penúltima década do Império. A partir daí, ao longo dos censos, curiosamente, registra-se retrocesso histórico na participação dos negros na população nacional. Em 1872, quando se realizou o primeiro censo, a população negra representava cerca de 20% do total. No segundo censo, em 1890, essa participação reduziu-se para pouco menos de 15%. Na primeira metade do século XX, caiu para 11% e, atualmente, é de aproximadamente 6%.
A pergunta se impõe: qual é a causa do fenômeno?
Do ponto de vista metodológico, a questão deve ser formulada como hipóteses alternativas: teria ocorrido diminuição efetiva da participação dos negros na população nacional ou a diminuição ocorre apenas no registro da participação dos negros? A resposta não é singular, pois o fenômeno decorre de uma combinação de fatores, entre os quais destacam-se três:
1. A proibição do tráfico negreiro estancou a transferência de africanos para o Brasil. Desde 1850, quase toda a expansão demográfica da população negra resulta do crescimento vegetativo. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, um vigoroso movimento de imigração européia introduziu milhões de brancos na sociedade nacional.
2. O processo histórico de miscigenação, associado ao sistema de classificação utilizado nos censos, inevitavelmente reduz o registro da participação dos negros e aumenta o da participação dos “pardos”. Os descendentes de negros formam a quase totalidade dos mestiços, que o IBGE classifica como “pardos”.
Esse grupo censitário ampliou a sua participação no conjunto da população nacional ao longo de toda a “era censitária”. Atualmente, representa cerca de 40% do total .
3. Os censos baseiam-se na auto-declaração, o que é correto pois objetivamente a espécie humana não se divide em raças. Mas o racismo influencia, diretamente, os registros censitários. A existência de um grupo censitário denominado “pardos”, num contexto cultural de desvalorização dos negros e valorização da miscigenação, tende a direcionar a informação original. Inquiridas pelos recenseadores, muitas pessoas que poderiam se declarar negras optaram por se declararem pardas.
Os censos não são, rigorosamente, “retratos da realidade” – apesar se sempre se apresentarem assim.
Eles retratam um modo de interpretar a realidade, que é condicionado pela política e pela cultura e é filtrado pelo tipo de questões formuladas pelos recenseadores.
No censo de 1970, o regime ditatorial que vigorava no Brasil proibiu que fossem formuladas questões sobre a cor da pele da população. A intenção evidente era evitar cruzamentos de dados sócio-econômicos (renda familiar, escolaridade, tipo de moradia) com dados sobre a cor da pele, de forma a ocultar a constatação de que a incidência da pobreza é maior entre os negros.
No censo de 1980, os recenseadores registraram mais de 120 “cores” declaradas pelos entrevistados. Surgiram “cores” como “amorenada”, “acastanhada”, “agalegada”, “alva-escura”, “alva-rosada”, “branca-queimada”, “branca-suja”, etc. No fim, todos esses declarantes foram classificados como “pardos”. Obviamente, as respostas refletiam o peso da discriminação. Por outro lado, ironicamente, são mais verdadeiras que as classificações tradicionais de cor da pele, que nasceram com o racismo “científico” do século XIX: ninguém é “branco”, “preto”, “amarelo” ou “vermelho”, como queriam os inventores das raças humanas.
A redução histórica do registro da participação dos negros nos censos parece ter sido interrompida recentemente.
Dados da última década indicam um ligeiro crescimento da população negra. Muitos indivíduos optaram por se declarar negros, e não pardos. O fenômeno reflete, provavelmente, um fortalecimento da identidade cultural do grupo.
Sob o ponto de vista regional, os registros censitários revelam, ao menos em parte, as heranças da escravidão e da imigração européia. Isso transparece na elevada participação dos brancos nas populações do Sul e no Sudeste e na dos pardos nas regiões Norte e Nordeste.
No Centro-Oeste, cuja população formou-se essencialmente pelas migrações internas do século XX, há equilíbrio estatístico quase perfeito entre brancos e pardos .
No que se refere ao grupo negro, o censo constatou que sua maior presença relativa ocorre no Nordeste (cerca de 7,5% da população regional) e no Sudeste (aproximadamente 6,5%). Do ponto de vista absoluto, os quatro estados com maior população negra são Bahia (1,7 milhão), São Paulo (1,66 milhão), Rio de Janeiro (1,57 milhão) e Minas Gerais (1,3 milhão).
Boletim Mundo Ano 12 n° 3
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