Damasco, a capital mais antiga do mundo (segundo a Enciclopédia Britânica, o nome deriva de Dimashka, palavra de etimologia pré-semítica, cuja origem se perde na história), é fascinante. Em suas ruas, mesmo o mais distraído visitante tropeça em milênios de história. A presença tão marcante de um tempo contínuo imprime a sua marca no psiquismo das pessoas: para o damasquino típico, um fato ocorrido há 500 anos é relativamente recente. Eles falam devagar, pausadamente. Pergunto a razão, encontro a resposta: “Estamos há 5 mil anos por aqui. Para quê ter pressa?”
No mercado, que existe há 1.800 anos no mesmo local, encontra-se de tudo: de ouro e prata a especiarias, de seda e algodão a artesanatos e perfumes. E, claro, encontra-se muita comida. Comer bem é uma arte, é parte fundamental da cultura síria e, nessa medida, revela uma percepção da vida diametralmente oposta à sugerida pelo conceito do fast food (embora também o fast food faça parte da culinária árabe, como provam o quibe, a esfiha e os sanduíches de carne e falafel).Nos restaurantes, por exemplo, antes de consultar o cardápio, os clientes fumam narguilé, com 35 opções diferentes de aroma; em seguida, é a vez das pastas e só depois começa a se pensar no prato principal.
O preço de tudo é barato, quando comparado ao praticado em São Paulo. Pode-se comer muito bem com vinte reais.
A parte velha de Damasco concentra boa parte da história do Cristianismo e do Islã . Ali estão preservados os locais da conversão de Paulo e os templos onde viveram e pregaram santos e apóstolos; os portões por onde penetraram os exércitos islâmicos; a magnífica mesquita dos Omíadas (erguida sobre um antigo templo romano dedicado a Júpiter); um museu de história da medicina que ocupa o lugar de um hospital construído no final do primeiro milênio, muitos séculos antes de a Europa sequer sonhar com algo semelhante; ali estão também palácios, monumentos, tumbas de reis, califas e profetas.
Pode-se caminhar tranqüilamente, dia e noite, contando com a colaboração e boa vontade dos habitantes, que, não raro, falam inglês e francês (estatísticas da ONU mostram que a Síria é um dos países com uma das taxas de criminalidade mais baixas do mundo). A universidade pública (e gratuita) de Damasco, aliás, é freqüentada por 250 mil universitários. São comuns os programas de especialização no exterior financiados pelo Estado, com a condição de que o beneficiado, após a conclusão do curso, trabalhe por um certo tempo no setor público, como forma de pagamento.
A marca de milênios de história está impressa por todos os cantos da Síria. A cerca de 80 quilômetros de Damasco, por exemplo, fica Malula, cidade incrustada nas montanhas, cujos habitantes ainda falam o mesmo aramaico da época de Cristo, e onde existe uma capela de mais de 1.700 anos escavada na rocha (alguns historiadores acreditam ser a igreja cristã mais antiga do planeta). Na vizinha Iabrud há uma outra igreja onde, reza a lenda, o imperador romano Constantino consagrou a sua conversão ao cristianismo, no século IV. Um pouco mais distante, em Hamas, ainda funciona um sistema milenar de irrigação por rodas d’água, e a cerca de 200 quilômetros da capital encontra-se a Fortaleza dos Cavaleiros, um imponente castelo construído pelos cruzados.
Na mesma região fica o oásis de Palmira, com as ruínas de um centro imperial onde viviam cerca de 25 mil pessoas à época de Cristo, e também a cidadela romana de Afâmia. Na costa, em Ugarit, fica o local onde o homem compôs o primeiro alfabeto, no século XV a.C. É difícil encontrar alguma região do país onde não existam traços de antigas civilizações.
A capital econômica, Alepo, fica a 400 quilômetros de Damasco. É outra cidade cuja origem se perde nos tempos. O seu multi milenar mercado municipal integra nada menos que doze quilômetros de ruas, todas divididas segundo especialidades: tecidos; sabões, sabonetes e óleos para massagem e higiene corporal; especiarias; artesanato; doces; frutas etc. Algumas das lojas ficam em antigos caravançarás, locais que serviam de abrigo às caravanas que percorriam o mundo oriental, incluindo a famosa “rota da seda” trilhada por Marco Pólo.
O local, com sua profusão de cheiros e cores, exerce uma atração mágica sobre o transeunte, especialmente se dotado de imaginação histórica. A cidade é dominada por uma magnífica fortaleza islâmica que funcionou como sede de vários califados. Por ali teria passado o profeta Abrão, em cuja homenagem foi construída uma mesquita.
A sensação mais impressionante reservada ao visitante é o total contraste entre aquilo que se vive no cotidiano local e a impressão causada pelo noticiário propagado pelos veículos ocidentais. Nos jornais, Síria é sinônimo de um mundo sombrio, autoritário, conservador, atrasado, anacrônico e, claro, terrorista. Nada se sabe sobre a vida real das pessoas. É como se toda a sociedade – com os seus milênios de tradição e história – pudesse ser descrita pelo rótulo “ditadura terrorista”.
Conversei sobre isso com vários jornalistas, professores, pessoas com quem me encontrei por toda a Síria. “Vocês temem um ataque dos Estados Unidos?”, perguntava.
Em situações distintas, vários deles responderam da mesma forma: “Você viu, por toda a Síria, o que sobrou dos vários impérios que nos atacaram. Há muito, eles viraram ruínas, mas nós ainda estamos aqui.
Os Estados Unidos cometeram um erro ao atacar o Iraque. Ninguém invade impunemente um país com 5 mil anos de história.
Que venham. O império americano, como todos os outros, passará; nós não.”
O mito da “Grande Síria”
Na Antiguidade, a Síria abrangia também os atuais Líbano, Israel e Jordânia, além de partes do Egito, Turquia e Iraque. Após a conquista muçulmana, entre 661 e 750, Damasco foi a sede do califado, o império árabe-muçulmano. Bem mais tarde, entre 1516 e 1918, a Síria foi submetida ao império Turco-Otomano.
A Síria contemporânea nasceu com a revolta árabe deflagrada por Hussein, o xarife (príncipe) de Meca contra o domínio otomano, durante a Primeira Guerra Mundial. A campanha militar, dirigida por Faiçal, um dos filhos de Hussein, e pelo agente britânico T. E. Lawrence (o “Lawrence da Arábia”), concluiu-se com a tomada de Damasco, em 1918.
Mas os britânicos, traindo seus aliados árabes, recusaram a soberania prometida a Faiçal e entregaram-se à partilha do Oriente Médio. Sob a cobertura dos mandatos da Liga das Nações, a Síria e o Líbano foram entregues à França. A Grã-Bretanha ficou com o Iraque, a Transjordânia (atual Jordânia) e a Palestina.
Síria e Líbano conquistaram a soberania apenas em 1946, por decisão da ONU. Na década de 50, o Partido Baath, organizado em torno da doutrina do pan-arabismo, passou a controlar o Estado sírio. O sonho da unidade da “nação árabe” expressou-se no projeto da República Árabe Unida (RAU), uma efêmera união entre Síria e Egito, entre 1958 e 1961.
Em 1976, no quadro da guerra civil no Líbano, a Síria enviou tropas ao país vizinho.
Cerca de 16 mil soldados sírios permanecem no Líbano, apesar de uma resolução da ONU, do ano passado, solicitando a retirada. Do ponto de vista de Damasco, o Líbano não existe como Estado, pois é apenas uma província da “Grande Síria”.
Boletim Mundo n° 1 Ano 13