sexta-feira, 14 de outubro de 2011

WASHINGTON ANUNCIA PROGAMA RADICAL DE POLÍTICA EXTERNA

(...) A SOBREVIVÊNCIA DA LIBERDADE EM NOSSA TERRA DEPENDE CADA VEZ MAIS DO SUCESSO DA LIBERDADE EM OUTRAS TERRAS. A MELHOR ESPERANÇA DE PAZ EM NOSSO MUNDO É A EXPANSÃO DA LIBERDADE EM TODO O PLANETA. OS INTERESSES VITAIS DOS ESTADOS UNIDOS E AS NOSSAS MAIS PROFUNDAS CRENÇAS AGORA SE CONFUNDEM. (...) LEVAR ADIANTE ESSES IDEAIS É A MISSÃO QUE GEROU NOSSA NAÇÃO. É A HONROSA REALIZAÇÃO DE NOSSOS ANCESTRAIS. AGORA, TORNOU-SE REQUISITO URGENTE PARA A SEGURANÇA DE NOSSA NAÇÃO E UMA TAREFA ESSENCIAL DE NOSSA ERA. (...) HOJE, OS ESTADOS UNIDOS VOLTAM A FALAR AOS POVOS DE TODO O MUNDO. TODOS OS QUE VIVEM SOB TIRANIA E DESESPERO DEVEM SABER QUE OS ESTADOS UNIDOS NÃO IGNORARÃO SUA OPRESSÃO OU PERDOARÃO OS OPRESSORES.

QUANDO VOCÊS SE ERGUEREM PELA LIBERDADE, NOS ERGUEREMOS COM VOCÊS.
(GEORGE W. BUSH, 20 DE JANEIRO DE 2005)

 No discurso de posse do segundo mandato George W. Bush narrou a história recente, tal como vista através das lentes dos neoconservadores republicanos: “Por meio século, os Estados Unidos defenderam suas liberdades guardando fronteiras distantes. Depois do naufrágio do comunismo, seguiram-se anos de repouso, anos de descanso, e a seguir um dia de fogo.”
O “meio século” mencionado corresponde à Guerra Fria, que se estendeu entre 1947 e 1989 e caracterizou-se pela rivalidade bipolar de alcance mundial entre Estados Unidos e União Soviética. Os “anos de repouso” duraram até o “dia de fogo”, o 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas de Nova York e o Pentágono, em Washington, foram alvos dos atentados terroristas cometidos pela Al-Qaeda, de Osama Bin Laden. Nesse dia, explica a narrativa, “contemplamos nossa vulnerabilidade e vimos sua fonte mais profunda”, que seria o “reino do ódio e do ressentimento”.
O 11 de setembro de 2001 definiu o primeiro mandato de Bush. O presidente deflagrou a chamada “guerra ao terror” e a operação militar no Afeganistão, que resultou na derrubada do regime fundamentalista islâmico do Talebã. Na seqüência, ampliou o seu programa e delineou uma doutrina voltada contra Estados acusados de desenvolverem armas de destruição em massa que poderiam ser utilizadas por grupos terroristas.
A Doutrina Bush assentou-se sobre um novo “direito”, proclamado por Washington, que é a “guerra preventiva”. Os alvos potenciais do exercício do novo “direito” seriam os Estados daquilo que o presidente batizou como o “Eixo do Mal”: Iraque, Irã e Coréia do Norte. No interior dessa coleção maligna, o Iraque foi selecionado como alvo prioritário. A invasão do país e a derrubada de Saddam Hussein, no início de 2003, basearam-se na acusação, que se revelaria falsa, de que o regime ocultava um arsenal de armas de destruição em massa.
A operação militar no Iraque foi posta em marcha apesar da oposição explícita da maioria do Conselho de Segurança da ONU. A “coalizão” montada por Washington só abrangia, entre as grandes potências, a Grã-Bretanha. A Doutrina Bush revelava-se nitidamente unilateralista, ignorava as instituições internacionais de segurança e desencadeava uma crise nas relações dos Estados Unidos com tradicionais aliados europeus como, principalmente, a França e a Alemanha.
Bush conquistou um segundo mandato, para desalento da maioria absoluta da opinião pública internacional e da maior parte dos eleitores dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Ao oferecer suas congratulações, John Kerry, o candidato democrata derrotado, conclamou o presidente reeleito a superar a profunda divisão na sociedade americana e promover a reconciliação entre os Estados Unidos e seus aliados europeus.
O discurso inaugural do segundo mandato desapontou os que vislumbravam a possibilidade de políticas conciliatórias. As fontes históricas desse discurso podem ser traçadas num passado anterior à própria fundação do país. O programa de política externa que ele encarna constitui uma radicalização da Doutrina Bush e, provavelmente, a mais perigosa declaração emanada de uma grande potência desde os tempos da Alemanha de Hitler.

AS PALAVRAS E AS COISAS
No seu discurso, Bush pronunciou a palavra “liberdade” nada menos que 44 vezes e por seis vezes mencionou a “tirania”.
Terror, armas de destruição em massa e Iraque não apareceram nenhuma vez. Originalmente, apesar de tudo, a Doutrina Bush apresentou-se como reação defensiva diante de ameaças concretas à segurança nacional dos Estados Unidos. Na sua nova e extremada versão, a Doutrina Bush apresenta-se como um programa de reforma do mundo.
“Todos os que vivem sob tirania e desespero devem saber que os Estados Unidos não ignorarão sua opressão ou perdoarão os opressores. Quando vocês se erguerem pela liberdade, nos ergueremos com vocês.” O que isso significa? Tomadas pelo que são, as palavras do presidente devem ser traduzidas como a proclamação do “direito” de derrubar governos que Washington decidir qualificar como tirânicos.
Antes, a ameaça americana ao “Eixo do Mal” amparava-se na acusação da posse ou desenvolvimento de armas de destruição em massa. Agora, basta uma condenação unilateral da natureza das instituições políticas de um país ou do comportamento de um regime.
Não apenas o Irã ou a Coréia do Norte, mas a Síria, a Venezuela e Cuba, por exemplo, poderiam se tornar, a qualquer momento, alvos de operações militares ofensivas dos Estados Unidos. A senha para o ataque se resumiria ao pedido de ajuda de um grupo de opositores ou dissidentes.
Mas as palavras do presidente devem ser tomadas pelo que significam? Ou o discurso é uma peça retórica destinada a ocultar uma política mais realista e prudente?
Os Estados Unidos mantêm mais de 120 mil soldados no Iraque e a insurgência não dá trégua. A operação eleitoral conduzida pelas forças de ocupação resultou em vitória arrasadora da coligação xiita, que inclui uma forte corrente conectada aos interesses do Irã. Bush não pode deslocar forças significativas do Iraque para alguma nova frente militar.
O Irã aparece em todas as especulações como próximo alvo de um ataque americano, mas as declarações recentes do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e da secretária de Estado, Condoleezza Rice, indicam que a opção atual é pela cautela.
Há toneladas de motivos para prudência, pois o Irã não é o Iraque. De qualquer modo, os analistas imaginam, no máximo, bombardeios aéreos sobre instalações nucleares iranianas.
A opinião pública mundial opõe-se fortemente à agressividade de Bush. Entre as sociedades européias, os Estados Unidos jamais foram tão impopulares e o discurso de posse teve péssima repercussão. E, se tudo isso não bastasse, a expansão do orçamento militar pressiona as contas públicas americanas e representa um fator significativo na desvalorização internacional do dólar.
A análise realista dos cenários  político, militar e econômico conduziria Bush a relegar seu discurso aos anais da retórica e organizar o segundo mandato em torno das prioridades de estabilização do Iraque e reaproximação com os tradicionais aliados europeus. Mas Bush não  é um realista nem um conservador. É um radical, comprometido com a ideologia de reforma do mundo. Eis o que não deve ser esquecido.

AS FONTES DO DISCURSO DE BUSH
Em 1656, três anos depois da nomeação de Oliver Cromwell como Lorde Protetor, James Harrington escrevia, no Oceana: “...se teu irmão clama por ti em aflição, não o ouvirás? Essa é uma Commonwealth tecida com os ouvidos abertos e um compromisso público; não foi feita para si mesma apenas, mas oferecida como magistratura de Deus à humanidade, para a proteção do direito comum e da lei da natureza.”
Oceana delineava o plano de uma república aristocrática e igualitária de proprietários de terra e, repercutindo os anseios do radicalismo protestante, clamava pela exportação da revolução inglesa.
A Commonwealth devia colocar o “mundo desamparado” sob “a sombra de suas asas” oferecendo à Terra “o domingo de tantos anos, o repouso de tantos trabalhos”. O dever moral dos revolucionários ingleses era espalhar as sementes da liberdade entre os povos oprimidos pela tirania das monarquias católicas.
Os radicais queriam exportar a revolução, mas a Inglaterra preferiu a segurança e a estabilidade que beneficiavam o comércio.
Frustrando seus mais fiéis seguidores, Cromwell acabou optando por uma política externa realista e pelo reconhecimento do concerto das nações européias. Entretanto, o sentido de missão e predestinação do radicalismo protestante inspirou, mais de um século depois, os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Oceana é uma das fontes filosóficas da Declaração de Independência e da Constituição americana. No fundo, a república da América do Norte enxergava-se a si própria como a Oceana realizada.
O discurso inaugural do segundo mandato de Bush, pronunciado a 20 de janeiro, ecoa o radicalismo protestante da revolução inglesa: “Existe apenas uma força na história capaz de pôr fim ao reino do ódio e do ressentimento, de expor as pretensões dos tiranos e recompensar as esperanças das pessoas decentes e tolerantes, e é a força da liberdade humana”. Os Estados Unidos, retomando “a missão que gerou nossa nação”, comprometem-se com a reforma do mundo. O presidente reeleito encarna o papel do profeta armado que Cromwell recusou-se a desempenhar.
“Os filósofos limitaram-se, até hoje, a interpretar o mundo.
Cabe,  agora, transformá-lo.” A frase célebre de Karl Marx, nas Teses sobre Feuerbach, poderia ter sido o dístico dos revolucionários ingleses de Cromwell. Eles antecipavam a Revolução Americana e a Revolução Francesa, projetando na esfera da política as idéias de liberdade e igualdade oriundas do direito natural. Na Inglaterra, o princípio dinástico acabou prevalecendo sobre a Commonwealth, mas na América do Norte, em 1776, venceu a “república dos iguais” (ainda que os escravos não fizessem parte dos “iguais”). A bandeira da luta contra a tirania não era uma farsa, mas a expressão de um novo princípio de organização política da sociedade.

O “FOGO DA LIBERDADE”
A missão da “difusão da liberdade”, uma idéia poderosa no surgimento dos Estados Unidos, jamais abandonou o discurso dos líderes americanos. Mas, ainda no século XIX, sob a ideologia do Destino Manifesto, o significado da liberdade começou a sofrer reinterpretações expansionistas. A guerra de conquista contra o México, deflagrada no Texas em 1845 e retomada em 1848, foi amparada pelo argumento da “difusão da liberdade”.
Meio século mais tarde, o argumento funcionou como justificativa da projeção do poder dos Estados Unidos no Caribe.
Era a época da política do Big Stick, ou seja, do Grande Porrete, quando os fuzileiros navais americanos substituíam, ao sabor dos humores de Washington, os governos da América Central.
O discurso de Bush tem, atrás de si, uma longa e variada tradição. As suas fontes históricas remontam ao século XVII, mas a inspiração direta, ao que parece, teria sido um livro recente, escrito por Nathan Sharanski, um ex-dissidente soviético.
Sharanski emigrou para Israel e hoje ocupa o cargo de ministro sem pasta no gabinete direitista liderado por Ariel Sharon.
Seu livro é um panfleto maniqueísta, que interpreta a política mundial como um confronto entre dois princípios de organização social: democracia versus fundamentalismo. Bush entusiasmou- se com o livro e o indicou, como leitura indispensável, a diversos interlocutores. Vários trechos do seu discurso são decalcados, quase diretamente, do panfleto do ministro de Sharon.
“Um dia, o fogo da liberdade se estenderá pelos quatro cantos da terra”. Bush repetiu incansavelmente a palavra “liberdade”, mas jamais conseguiu evitar um registro de farsa, que foi reconhecido por muita gente. O “fogo da liberdade” deveria se estender por lugares como a Arábia Saudita, o Egito ou o Paquistão, que são ditaduras violentas alinhadas aos interesses dos Estados Unidos? Ou não passa de uma metáfora ruim para o projeto de reforma do Oriente Médio pela via da implantação de regimes pró-americanos em países como o Iraque e, mais adiante, o Irã e a Síria?
A liberdade, no discurso de Bush, é uma abstração. No direito internacional, ela adquiriu um conjunto de significados objetivos, expressos em tratados solenes. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção de Genebra e a Convenção contra a Tortura estão entre os mais importantes e, atualmente, são desrespeitados pelo governo Bush.
Desde a operação militar no Afeganistão, deflagrada no final de 2001, Washington inventou a figura do “combatente inimigo ilegal” para negar aos prisioneiros de guerra as proteções contra maus-tratos previstas na Convenção de Genebra.
Em seguida, um memorando da Casa Branca “redefiniu” o significado de tortura. Nele, está escrito que só é tortura “o equivalente em intensidade à dor que acompanha um dano físico sério, como a falência de um órgão, o colapso de funções do corpo ou mesmo a morte”. A definição exclui dos domínios da tortura atos como o estupro, a aplicação de choques elétricos ou queimaduras, o afogamento controlado, a introdução de agulhas sob as unhas.
Sob o escudo do novo pensamento jurídico da Casa Branca ergueu-se uma rede internacional de tortura que abrange centros de interrogatório em Guantánamo, na base aérea de Bagram, no Afeganistão, e numa prisão secreta na Jordânia para onde foram transferidos os presos considerados valiosos do semi- desativado presídio de Abu Ghraib, no Iraque. Há indícios da existência de outros centros, inclusive a bordo de navios militares.
Liberdade? Quem falou nisso?

Boletim Mundo n° 1 Ano 13

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