Com o fim da Guerra Fria e o amplo domínio das instituições financeiras globais sobre os fluxos de produtos, serviços e crédito, o pensamento (e as políticas) ditas “heterodoxas” na economia perderam ainda mais espaço nos governos. Consagrou-se, no máximo, a estratégia retórica dos críticos, que denunciam os modelos ultra liberais como “pensamento único”.
Nesse contexto, nada mais sintomático e até saudável que a empolgação de alguns jornalistas e de uns poucos economistas pelos casos desviantes, ou seja, países ou empresas que violam os preceitos do “pensamento único” e afrontam o poder americano e/ou a força das instituições financeiras.
O exemplo mais notório é o das moratórias, isto é, casos de suspensão do pagamento de dívidas soberanas.Após a sucessão de crises financeiras que atingiram a economia mundial a partir do final dos anos 90, vários governos foram à breca, rompendo compromissos financeiros assumidos diante de autoridades, instituições, empresas e organizações públicas internacionais. Essa “bomba” tem efeitos destrutivos imediatos sobre a reputação do país que entra em moratória, incluindo nessa devastação (aumento nas taxas de juros e queda nos investimentos estrangeiros) as empresas privadas que realizam operações no país e seus trabalhadores.
No entanto, observando resultados econômicos supostamente promissores de várias economias cujos governos adotaram essa via, tem gente querendo ressaltar o lado positivo da ruptura. Em especial no Brasil, onde o PT – que por muitos anos defendeu a ruptura com o FMI e a suspensão do pagamento da dívida externa não fez a ruptura.
Entre os benefícios da ruptura com a comunidade internacional estaria a liberdade maior para administrar a economia, que passaria a operar sem transferir riqueza para o exterior. Os recursos redirecionados para o gasto público, produtivo, social ou assistencial permitiriam a afirmação de projetos nacionais e uma posição negociadora mais firme com os donos do poder global. Afinal, ruptura mesmo (quase) ninguém quer, mas sim uma suspensão de pagamentos como forma de negociação de uma inserção mais virtuosa na economia mundial.
A tese mais ousada, no entanto, afirma que mesmo o custo sobre a reputação não seria tão alto assim ou, mais importante, tão perene: seria esta a lição de casos notórios de rápido crescimento econômico após moratórias na Malásia, Rússia e Argentina.
No Brasil, a Folha de S. Paulo tem publicado comentários nessa linha. Demétrio Magnoli (colunista do jornal e, também, editor de Mundo), considerou “abjeta” a atitude do governo brasileiro, que se absteve de comentários públicos entusiasmados em favor dos “hermanos” argentinos.
Clóvis Rossi é quem mais cutuca o saber convencional com vara curta, denunciando como “financista” a visão ultra liberal que superestimaria os custos das moratórias.
Rossi escolheu a Rússia como referência: sete anos depois da moratória, o país tem nota 10 e merece a confiança dos investidores, apesar de adotar a reserva de mercado na exploração do petróleo, enquanto o Brasil continua na rabeira, considerado um país de alto risco, apesar de ter sido o bom aluno da classe, pelo menos depois que fez moratória há mais de 10 anos (em 1987, tendo como paladino o então assessor do Ministério da Fazenda e hoje também colunista da Folha, Paulo Nogueira Batista Jr., crítico do “financismo” e do fundamentalismo ultra liberal).
AS REGRAS E O JOGO
Afinal, fazer moratória é bom ou ruim? A questão, não tem resposta única ou inequívoca. Mas o problema é justamente esse: para muita gente, reagir ao pensamento único é encontrar o antípoda, a antítese, também única.É como se apenas a força de uma resposta única fosse capaz de fazer frente ao que a própria esquerda anti globalização retoricamente batiza de “pensamento único”.
Se o pensamento único de direita foi caracterizado como “respeito às regras do jogo”, então o pensamento único de esquerda deveria ser “desrespeito às regras do jogo”. Fácil, não? É, só que em nenhum dos casos há, de fato, pensamento. Apenas caricatura e retórica.
A principal armadilha da retórica esquerdista pró-rupturas é apresentar como opção de política econômica algo que a rigor ocorreu por ser inevitável. Na prática, a suspensão é na maioria das vezes inevitável, resultando apenas do colapso de regimes insustentáveis. O governante de turno, no entanto, vai em geral preferir apresentar a “saída” como um lance genial de estratégia.
Voltemos ao caso brasileiro em 1987. A equipe econômica da época jurava que aquilo era mais uma afirmação de um projeto nacional, uma moratória que havia sido cuidadosamente planejada, quando era notório o fracasso do Plano Cruzado, a política de congelamento de preços subjacente ao colapso das contas externas. Com o fim do congelamento, era também óbvio que não havia apoio interno para o projeto do então presidente José Sarney.
Outro jogo retórico é colocar lado a lado moratória e desempenho econômico ou risco do país. Essa comparação é frágil. Primeiro, porque de fato a suspensão de transferências ao exterior inevitavelmente produz um efeito imediato de redirecionamento da poupança para o consumo ou investimento domésticos. Se eu deixo de pagar o cartão de crédito para pagar outras contas (digamos, o supermercado), volto para casa feliz e encho a geladeira.
Na fatura do mês seguinte, incidirão juros e, no limite, posso perder o crédito. Quanto tempo vai passar entre o calote e a piora nas condições de crédito é uma incógnita.
A gravidade, sobre a economia do país, do aperto futuro do crédito (mesmo o interno) é também algo que depende de vários fatores.
Em casos como a Argentina, onde a economia já havia naufragado de forma dramática, é também natural que a suspensão de um processo insustentável produza recuperação dos níveis de emprego, renda e investimentos. Em especial por se tratar de uma moratória que se tornou inevitável porque o valor do peso era irreal, a desvalorização cambial coloca em cena novas fontes de crescimento: exportações mais competitivas e fantásticas oportunidades de investimento (após a maxidesvalorização cambial).
Finalmente, é preciso lembrar que entre a moratória e a recuperação do crescimento ou do crédito externo atuam outros fatores, de ordem econômica e geopolítica.
No caso da Rússia, uma prateleira com bombas atômicas e reservas significativas de petróleo também entra no cálculo dos mercados onde se avaliam riscos. Já no Brasil, muito longe da Rússia nesses quesitos, o máximo de ortodoxia financeira será ainda insuficiente para melhorar a “nota” do país aos olhos do mercado e do poder global.
Cuidado com a teoria, sobretudo se ela conduz a algum modelo único, seja de veneração, seja de repulsa às “regras do jogo”. Cometer faltas num jogo de futebol faz parte, sobretudo quando o time vai mal. Nem por isso os técnicos de futebol fazem do jogo violento sua opção preferencial para vencer campeonatos.
Há mais elementos e condições para alcançar o desenvolvimento econômico sustentável do que fazem supor tanto os detratores quanto os apologistas da ruptura com “tudo isso que aí está”. Num mundo em que as torcidas se dividiram de modo infantil entre “Davos” e “Porto Alegre”, no entanto, vence a preguiça de pensar (e jogar).
Boletim Mundo n° 1 Ano 13
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