sexta-feira, 14 de outubro de 2011

NO IRAQUE, WASHINGTON REPRODUZ A ANTIGA ESTRATÉGIA BRITÂNICA

Há 80 anos, Londres tentou controlar o Iraque por meio dos sunitas; hoje, os americanos, sob pressão da resistência, jogam a perigosa carta xiita.
Newton Carlos

A rapidez com que a ditadura de Saddam Hussein foi derrubada produziu em Washington a sensação de um passeio. Aparentemente, os Estados Unidos poderiam controlar o Iraque por meio de uma administração de ocupação com presença subalterna de vassalos internos.
Primeiro, o vassalo escolhido foi Ahmed Chalabi, um ex-exilado iraquiano da confiança do Pentágono, que acabou caindo em desgraça na condição de escroque. Depois, veio Ayad Allawi, um ex-informante da CIA designado chefe de um ministério interino já numa fase em que Washington, sob pressão da violência crescente, aceitou “iraquisar” a administração do país ocupado.
Bush e os seus fizeram duas constatações desagradáveis na segunda metade de 2003. A resistência assumiu a forma de guerrilha. A idéia de que estava supostamente confinada  a uma área triangular de território dos muçulmanos sunitas, que formavam a base de apoio do regime deposto, tinha de levar em conta o fato de que se trata de porção de terra maior do que a Inglaterra. Na medida em que a violência crescia foi amadurecendo a descoberta de que um clérigo xiita idoso, o aiátola Ali al-Sistani, instalado num viela da cidade santa de Najaf, tinha maior influência popular do que qualquer um dos ex-exilados na folha de pagamento do Pentágono e da CIA.
Em junho de 2003 o aiatolá Sistani baixou decreto religioso determinando que fossem eleitos, e não nomeados pelas autoridades de ocupação, os deputados que redigiriam a nova Constituição do Iraque. Em novembro do mesmo ano, Sistani decretou a necessidade  de conferir a eleitos a missão de conduzir o processo de “transição”.
Embora seja representante de uma poderosa escola xiita, que rejeita o poder político para clérigos, Sistani forçou o governo Bush a antecipar as eleições que devem marcar o início da “transição”. Executou gestos de grande força simbólica. Recusou-se, por exemplo, a encontrar Paul Bremer, ex-administrador americano, antes da posse de um governo interino.
Bremer caiu depois de ter subestimado a influência de Sistani. Washington foi obrigado a rever os planos de “transição” depois que dezenas de milhares de iraquianos saíram às ruas em apoio à exigência de eleições antecipadas feita por Sistani. Num artigo distribuído mundialmente, Henry Kissinger e George Shultz, ex-secretários de Estado americanos, fizeram constar que a data das eleições, o 30 de janeiro de 2005, foi adotada “por força de um quase ultimato do mais eminente líder xiita”. Também partiu dos xiitas a opção por votos em listas de candidatos nacionais, o que vai contra instituições políticas federais e regionais do interesse dos curdos autonomistas.
O aiatolá, de seu lado, tratou de assinar algumas promissórias como se fossem garantias. Aceitou enquadrar-se na perspectiva de um Iraque democrático e não submetido a uma teocracia islâmica do tipo vigente no Irã. Coerente com a sua estratégia, Sistani deixou Londres, onde se recuperava de uma cirurgia, para mediar um acordo entre as forças de ocupação e xiitas radicais. A hora no Iraque é de Sistani e dos xiitas que o seguiram na opção por eleições como meio de ir adiante  na direção do poder.
Há nisso um aprendizado de lições da história. No final da Primeira Guerra Mundial, Londres tomou três províncias (Bagdá, Mossul e Basra) do arruinado império Turco-Otomano e as juntou, à força, na criação de um Iraque que é um quebra-cabeças  étnico e religioso, formado por cerca de 60% de árabes xiitas, 20% de árabes sunitas e quase 20% de curdos. Em 1920, os xiitas, com a bandeira de grupo muçulmano majoritário, foram a vanguarda da rebelião contra os ocupantes britânicos. A opção pela rebeldia, há 85 anos, resultou em repressão violenta e esmagamento.
A Grã-Bretanha empregou, contra forças tribais, os primeiros bombardeios aéreos concentrados de que se tem notícia, chacinando aldeias. “Só por milagre não usamos gases venenosos”, escreveu no Observer, de Londres, entre estarrecido e revoltado, T. E. Lawrence, o célebre agente britânico. Foi o Lawrence da Arábia quem indicou como de confiança para governar o Iraque os sunitas da dinastia Hachemita. As eleições patrocinadas pelos britânicos, em 1923, depois de completada a “limpeza” dos rebeldes, se parecem com as de agora. Com uma inversão: no tempo do mandato britânico, os xiitas eram os rebeldes; agora, os rebeldes são os sunitas.
Os britânicos instalaram uma monarquia constitucional no Iraque; os americanos prometem democracia. Em ambos os casos, o argumento é a aplicação universal de “valores ocidentais”, a democracia na ponta das baionetas.
Em 1932, o Iraque transformou-se de mandato britânico em Estado-cliente, ou seja, uma entidade formalmente soberana, mas dependente da Grã-Bretanha. Surgia na nova “nação” – na realidade, várias “nações” agrupadas num só Estado – um Exército de conscritos. É mais um paralelo com o que ocorre hoje, quando Washington promove a criação de um Exército e uma Guarda Nacional.
O novo Estado-cliente durou pouco. Em 1958, militares iraquianos nacionalistas derrubaram a monarquia, iniciando o processo que conduziria ao poder o Partido Baath, com base social na população sunita do Iraque central. Saddam Hussein escalou o poder no interior do Partido Baath, até comandar um golpe palaciano, em 1979, e instalar uma ditadura assentada sobre o seu clã.
Há vestígios de contatos do jovem Saddam, quando ainda estudante no Egito, com a CIA. Já ditador, recebeu ajuda americana na guerra sangrenta contra o Irã, entre 1980 e 1988. Mas a sua nova aventura belicista, a invasão do Kuwait, em 1990, provocou a ruptura definitiva com Washington.
De certo modo, Bush filho completou a obra iniciada por seu pai, na Guerra do Golfo de 1991. “Flutuamos num mar de petróleo a caminho do triunfo”, disse Lorde Curzon, ministro do Exterior britânico, na época em que a Grã-Bretanha inventou o Iraque. A mesma sensação permeou a ocupação americana.
É sabido no que deu o mandato britânico. Não se sabe em que dará o protetorado militar americano. Há quem considere inevitável uma islamização da Constituição iraquiana.
O desfecho, no entanto, só a história nos dará.

Boletim Mundo n° 1 Ano 13

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