Nós dizemos que ninguém deve pagar o preço prévio que nós pagamos. Pobreza, indigência, risco de desestruturação política. É um preço tão alto que não vai servir de precedente nem para outros países nem para nós mesmos no futuro.”
Essas foram as palavras do ministro da Economia da Argentina, Roberto Lavagna, ao anunciar, no dia 12 de janeiro, o plano de reestruturação da dívida externa do país. A revista Veja “transcreveu” a seu modo a declaração do ministro na sua edição de 19 de janeiro: “O calote argentino não deve servir de precedente ou exemplo a país algum no mundo”.
Não é um engano ou uma síntese, mas uma falsificação com nítida finalidade política. Lavagna não se refere à moratória (o “calote”, na linguagem da Veja) mas à proposta de reestruturação da dívida. Lavagna relaciona as condições singulares dessa proposta ao desastre social, econômico e político que atingiu a Argentina. Veja corta essa parte da “citação”, que concentra uma interpretação da história recente da Argentina e contradiz toda a versão fabricada pela revista .
O título da matéria sintetiza a versão ideológica: “Um mau negócio chamado calote”. O desprezo pela história escancara-se na foto de soldados argentinos presos pelos britânicos na Guerra das Malvinas, que é acompanhada pela legenda: “embriaguez nacionalista levou ao calote e ao vexame das Malvinas”.
A Guerra das Malvinas, em 1982, foi iniciada pelo ditador Leopoldo Galtieri. Imaginando que a aventura externa uniria o país em torno do combalido regime militar argentino, Galtieri ordenou a invasão das ilhas Malvinas (Falkland, para os britânicos). O arquipélago constituía zona de litígio histórico entre os dois países e simbolizava um nacionalismo antiimperialista que toca em nervos profundos da sociedade argentina.
A “embriaguez nacionalista” rendeu frutos no momento inicial mas a rápida derrota militar inverteu o cenário.
Sob uma onda incontrolável de manifestações populares, os generais abandonaram o palco e, em 1983, a Argentina realizou eleições democráticas. Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR), assumiu a presidência A moratória da dívida externa, declarada em dezembro de 2001 pelo presidente interino Adolfo Rodríguez Saá, nada tem a ver como uma suposta “embriaguez nacionalista”.
Ela foi uma decisão compulsória, decorrente da incapacidade de pagamento dos juros e do serviço da dívida, adotada em meio à ruína das instituições políticas do país. Atrás dela, havia uma década de experimentos ultra liberais, conduzidos sempre com o selo e o aplauso entusiasmado do FMI, que empurraram a Argentina para o precipício. É essa história que a narrativa fraudulenta de Veja oculta.
A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA
O peronista Carlos Menem foi eleito presidente em 1989. Sob os efeitos da hiperinflação e da turbulência política, o governo Alfonsín terminava em baderna e a posse de Menem era antecipada. Em 1991, o ministro da Economia Domingo Cavallo implantava um ousado plano econômico destinado a cortar pela raiz a hiperinflação.O Plano Cavallo eliminou a soberania monetária argentina.
Uma nova moeda, o austral (depois substituído pelo novo peso) ancorava o seu valor numa paridade fixa com o dólar. O sistema era garantido por lei. O Banco Central argentino assegurava o seu funcionamento por meio da regulação da quantidade de dinheiro em circulação.
O peso lastreava-se nas reservas em dólar do país e podia ser convertido por quantidade igual de dólares. Só podiam ser emitidos pesos se aumentassem as reservas em dólar. A redução das reservas impunha a retirada de pesos de circulação.
Sob a estabilidade de preços proporcionada pelo Plano Cavallo, o governo Menem entregou-se a uma orgia ultra liberal de privatizações, que substituiu monopólios públicos por monopólios privados internacionais, e de desregulamentação da economia e do mercado de trabalho.
O baile macabro gerou fortunas financeiras e aprofundou as desigualdades sociais.
A estabilidade artificial de preços assentava-se sobre uma crescente apreciação oculta do câmbio. Os produtos argentinos, com preços amarrados ao dólar, perdiam competitividade externa. A indústria argentina, esmagada sob a paridade fixa, desmanchava-se a olhos vistos. Os sintomas da doença apareciam nos saldos negativos da balança comercial e na redução dos investimentos externos.
O remédio usado para atrair capitais externos – a elevação dos juros de papéis de dívida emitidos pelo governo – envenenava aos poucos o paciente.
No fundo, a Argentina trocou a hiperinflação por uma recessão estrutural. Em 1999, os juros astronômicos atraíam avalanches de investidores especulativos que adquiriam papéis emitidos pelo governo. Enquanto a ciranda financeira rodava, a economia andava em marcha-ré . Nas eleições presidenciais, os peronistas eram batidos pela UCR de Fernando De La Rúa.
O novo presidente, contudo, sob o encantamento do mercado financeiro, engajou-se na continuidade da política econômica de seu antecessor.
O ano da verdade foi 2001. Enquanto evidenciava-se a incapacidade argentina de honrar os vencimentos da dívida, os investidores retiravam-se do país. A fuga de capitais transformava a recessão em depressão. Em 21 de dezembro, depois de uma greve geral nacional e de uma sangrenta repressão contra as manifestações populares, De La Rúa renunciou à presidência. A moratória foi declarada dias depois.
A fraude de Veja joga na lata de lixo da história toda a década do Plano Cavallo. Na narrativa da revista, a história começa com a moratória de dezembro de 2001. A finalidade do artefato ideológico é ocultar a trajetória política e as opções econômicas que culminaram na suspensão
forçada dos pagamentos, atribuindo o desastre à moratória. Coisa de imprensa marrom.
Peões de teclado
A mídia nunca é neutra. O ponto de vista do jornal, revista ou emissora aparece nos editoriais e, também, na seleção e edição das notícias. A chefia das redações, que conta com a confiança da direção da empresa de mídia, supervisiona a edição e interfere diretamente no noticiário de temas especialmente relevantes para a empresa de mídia.Mas, nesse panorama geral, Veja é um caso singular.
Na maior revista semanal brasileira, o controle da chefia de redação sobre os textos publicados é muito mais extenso e direto que nos outros órgãos. Com exceção apenas das colunas de colaboradores, todos os textos são revistos e muitas vezes reescritos pela chefia de redação. A regra vale tanto para os textos não assinados quanto para os assinados. Os repórteres exercem unicamente a função de “peões de teclado”.
A ditadura totalitária da chefia de redação faz de Veja um artefato ideológico incomparável, pois a revista não comporta visões dissonantes ou mesmo contrapontos eventuais. O petardo ideológico dirigido contra a moratória argentina, por exemplo, é assinado pela repórter Lucila Soares. Ignore isso: ela não tem nenhum controle sobre o que sai publicado abaixo do seu nome.
Boletim Mundo n° 1 Ano 13
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