domingo, 29 de janeiro de 2012

A revolução dos Aiatolás

Isabelle Somma

Há 25 anos, os iranianos tomados por um sentimento nacionalista e fortemente religioso, derrubaram o governo pró-Ocidente e levaram ao poder um grupo fundamentalista que alteraria o destino do Oriente Médio
Foi tudo muito rápido. Em janeiro, o último xá do Irã, um playboy com fama de dar as melhores festas do mundo, para qual eram convidados chefes de Estado, astros de Hollywood e pilotos de Fórmula 1, fugiu para o exterior. Em fevereiro, o líder da oposição, um religioso radical voltou do exílio, foi recebido em triunfo e assumiu o poder. Em abril, o país transformou-se, após um plebiscito, em uma república islâmica, adotando como base as leis fundamentadas no Alcorão. Depois disso, a história da região, uma das mais sensíveis em termos geopolíticos do planeta, jamais seria a mesma. A Revolução Islâmica ocorrida em 1979 no Irã levou ao poder um grupo de religiosos fundamentalistas com discursos e práticas antiamericanas e antiocidentais, que influenciou toda a região, acirrou antigas disputas com os vizinhos e gerou algumas das imagens que marcaram os anos 80 e 90. Hoje, 25 anos depois, quando o caldeirão  aquecido pelas maiores reservas de petróleo do mundo volta a ferver, alimentado por uma intrincada sucessão política e pela ocupação de dois de seus vizinhos – Iraque e Afeganistão –, os olhos (e a memória) do mundo se voltam para lá.
Mas, até 1979 e durante o século 20, o Irã não havia sido um problema para o Ocidente. Pelo contrário, os governos iranianos haviam, em diferentes graus, cooperado e se aproximado de americanos, alemães, britânicos e russos. No início do século, quando se viviam os últimos anos da dinastia Qajar (1779-1925), os britânicos exploravam a maior parte do petróleo iraniano e o exército czarista (depois soviético), deslocava-se com freqüência (e liberdade) pelo território do país (ainda chamado Pérsia). Enfraquecido, o xá Ahmed, soberano desse rincão pobre e dependente, não resistiu a um golpe de Estado em 1921 e o líder rebelde Reza Kahn foi proclamado xá da Pérsia pelo Majlis (Parlamento).
O novo governante tinha dois objetivos. Um deles era modernizar o país, tomando o Ocidente como modelo. Chegou a proibir que homens usassem turbantes e as mulheres, o véu. Mas também promoveu importantes reformas nos sistemas educacional e judiciário, além de construir hospitais e ferrovias. O mais importante, contudo, era livrar-se da dependência estrangeira. Primeiro, Reza Khan mudou o nome do país de Pérsia, palavra de origem grega, para Irã, como os próprios habitantes o designavam. Depois, tirou das mãos dos estrangeiros tudo o que pôde, como os serviços de telégrafos e a emissão de dinheiro. O que não podia tocar com tecnologia própria, como a aviação comercial, negociou contratos mais vantajosos.
Ao  mesmo tempo que tentava se afastar de soviéticos e ingleses, o xá se aproximou dos nazistas alemães, com quem tinha em comum o discurso nacionalista e anti-semita e de quem passou a importar tecnologia. Com a Segunda Guerra Mundial, o Irã foi invadido pelos soviéticos e britânicos e dividido em dois. Reza Khan foi afastado do poder e partiu para o exílio na África do Sul, onde morreu três anos depois. Em seu lugar, com o apoio dos aliados, assumiu seu filho Mohammed Reza (chamado de Reza Pahlevi), de apenas 20 anos.
Na década de 50, a ascensão do primeiro-ministro nacionalista, Muhammad Mossadeq, levou a uma crise sem precedentes, desencadeada, em 1953, quando ele decidiu estatizar as reservas de petróleo que estavam nas mãos dos ingleses. Mossadeq rompeu relações com a Grã-Bretanha, depois de descobrir que eles preparavam um golpe de Estado. O Parlamento apoiou o primeiro-ministro, concedendo-lhe poderes ilimitados. O xá, aliado dos britânicos, tentou demiti-lo, mas perdeu a queda-de-braço e foi obrigado a fugir do país.
Segundo o jornalista americano Stephen Kinzer, autor do recém-lançado All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror (“Todos os Homens do Xá: um Golpe Americano e os Caminhos do Terror no Oriente Médio”, inédito no Brasil), foi nesse momento que os americanos resolveram intervir. “Um influente membro da CIA, Kermit Roosevelt, neto do presidente Franklin Roosevelt, foi enviado ao Irã com ordens para organizar um novo golpe. Ele subornou a imprensa para que trabalhasse contra Mossadeq. Rapidamente, 80% dos jornais do país estavam sob seu controle”, afirma Kinzer. “Membros do Parlamento, líderes religiosos e militares também foram aliciados e o primeiro-ministro foi preso.” O xá retornou ao país, o petróleo voltou às mãos estrangeiras e o Irã teve de pagar indenizações durante dez anos. O episódio marcou o início de um duradouro processo de influência do governo americano no Irã.
Na década de 60, o governo de Reza Pahlevi tornou-se mais ditatorial. Diante das críticas, ele iniciou uma campanha para eliminar seus opositores. Criou uma polícia política, a Savak, que tinha como método corriqueiro de interrogatório a tortura. Um dos descontentes era um proeminente acadêmico xiita, conhecido como aiatolá Ruhollah Khomeini. Filho de um antigo preso político do tempo de Reza Khan, Khomeini foi duas vezes para a cadeia naquela época. Na primeira, depois de criticar publicamente um acordo em que os americanos se encarregariam de reformar o exército iraniano. Na segunda, acabou expulso do país e instalou-se por algum tempo no Iraque.
Enquanto o xá levava uma vida de playboy com fama internacional, o país sofria com uma grave crise econômica. A classe média, que havia sido beneficiada durante o governo de seu pai, ressentia-se de sua falta de participação política e da proximidade do governo com os Estados Unidos. O aumento da repressão na década de 70 reforçou a oposição ao governo, unindo comunistas e radicais religiosos.
O pontapé inicial da revolução foi uma manifestação pró-Khomeini realizada em janeiro de 1978 na cidade de Qum, um popular centro religioso. Tropas do xá reprimiram o protesto, matando 70 pessoas. Do exílio, Khomeini ordenou que após 40 dias fossem realizadas cerimônias em memória dos mortos, como é tradição no país. Esses eventos, que passaram a se repetir a cada quarentena, se transformaram em protestos contra o governo e o Ocidente. O xá pediu para que o Iraque, do então aliado Saddam Hussein, expulsasse Khomeini, que foi parar na França. O governo impôs a lei marcial, o que só piorou as coisas. Seguiu-se uma greve geral que paralisou a economia do Irã.
Em janeiro, Reza Pahlevi fugiu do país e duas semanas depois, Khomeini voltou a Teerã, após 14 anos de exílio. Ele indicou o líder do moderado Movimento de Libertação, Mehdi Barzagan, para formar o novo governo. Em seguida, o povo foi às urnas e decidiu, em plebiscito, o novo sistema de governo: uma República Islâmica.
Para Hamid Dabashi, especialista em islamismo da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, o resultado era esperado. “Desde o início do século 19, com a influência das conquistas coloniais e manobras de britânicos, franceses e russos pelo mundo todo, os povos dominados resistiram seja com nacionalismo anticolonialista, em conjunto com socialismo ou formas variadas de teologias de libertação. Na América Latina, por exemplo, isso ocorreu sob inspiração de ideais cristãos. O mesmo vale para o Islã, que vem sistematicamente se transformando de uma religião medieval para uma idéia singular de resistência contra o colonialismo.”
O país que surgiu desse movimento contra o imperialismo, no entanto, não teve vida fácil. O seqüestro da embaixada americana (leia quadro na página 37) e a guerra contra o Iraque (1980-1988), na qual morreram 200 mil iranianos, colaboraram para manter a instabilidade. E o apoio (até mesmo financeiro) às milícias xiitas no Líbano durante a guerra civil (1975-1990) provocou o isolamento do Irã perante a comunidade internacional.
Os primeiros anos do novo governo xiita foram de turbulência interna. Partidos radicais tentaram assumir o controle do país. Mais de 7 mil militantes da oposição foram assassinados, e seitas consideradas heréticas, como a Bahai, proibidas. Durante os anos da guerra, a economia manteve-se estagnada. Após o cessar-fogo com o Iraque, em 1988, e a morte de Khomeini, no ano seguinte, o país retomou as exportações.
Em 1997, os iranianos mostraram sua insatisfação com os rumos que a revolução vinha seguindo e elegerem um aiatolá reformista, Mohammad Khatami. Mas o momento atual ainda não sugere estabilidade. Para Kinzer, a revolução pode servir de exemplo para os atuais insatisfeitos. “Ela ensina aos iranianos uma amarga, mas muito importante lição. É melhor pressionar por reformas com seja lá quais estruturas existirem que começar a engrenagem de uma revolução sem saber onde é que ela vai parar.”
Saiba mais: Livros
All Fall Down: America´s Tragic Encounter with Iran, Gary Sick, Backinprint.com, 2001, O autor é especialista e a obra virou uma referência para estudiosos sobre o assunto.
The Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict, Dilip Hiro, Routledge, 1991, Um dos mais completos relatos sobre a guerra contra o Iraque.
A History of Modern Iran Since 1921, Ali Ansari, Longman, 2003, Obra de tom mais jornalístico, traz uma série de entrevistas com personagens-chave para entender o tema.
Site
www.jimmycarterlibrary/documents,  Um dos principais envolvidos no episódio dos reféns americanos, o presidente americano Jimmy Carter colocou na internet documentos históricos sobre sua participação no caso e outros aos quais teve acesso, como trechos de diários dos reféns.
Sinal divino
Quem são e o que querem os xiitas?
A revolução de 1979 chamou a atenção para o xiismo, vertente do islamismo seguida por menos de 20% dos muçulmanos do mundo. A palavra vem do árabe “shia” e refere-se aos partidários de Ali ibn Abi Talib, primo e genro de Maomé, que lutou e assumiu a sucessão do profeta, em 656, mas foi derrotado numa guera civil e assassinado em 661, num dos primeiros cismas da religião muçulmana. Alijados do poder, o xiismo apresentou-se como movimento contestatório dos primeiros califas, nos séculos que se seguiram. Os sucessos políticos foram raros e seus líderes eram perseguidos e eliminados. Somente no século 16, durante a dinastia safávida, o xiismo chegou ao poder. Na teologia xiita, existe o título de aiatolá, que só começou a ser empregado no século 20 e é usado pelos seguidores da corrente dos Doze Imãs para designar os juristas que têm autoridade para fazer julgamentos com base na lei islâmica. Segundo Mustafá Mamede Jarouche, do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo, a origem da palavra aiatolá também é árabe. “É um composto de ‘Áyat’ e ’Allah’. Áyat designa tanto o versículo corânico quanto um ‘milagre’ ou ‘sinal’. Assim, Ayatollah significa ‘sinal divino’.”
444 dias em Teerã
Um protesto de estudantes transformou-se num do mais longos seqüestros da história
Na manhã de 4 de novembro de 1979 (dez meses após a revolução que levou o aiatolá Khomeini ao poder), uma passeata de estudantes universitários parou em frente ao prédio da embaixada americana em Teerã. Eles protestavam contra a ida do exilado xá Reza Pahlevi para os Estados Unidos. Entre palavras de ordem, o clima esquentou e, de repente, o grupo invadiu os portões e 500 estudantes ocuparam o prédio, onde havia 90 pessoas. Seis delas fugiram pelos fundos, pulando o muro. Os remanescentes foram feitos reféns. Os iranianos exigiam a extradição do xá e a promessa de que os Estados Unidos deixariam de interferir no país. Em retaliação, o então presidente americano, Jimmy Carter, cancelou as importações de petróleo do Irã e ordenou o bloqueio de 8 bilhões de dólares de fundos do país depositados em bancos americanos. Mas a pressão econômica não foi suficiente para convencer os seqüestradores. E as autoridades iranianas não tinham a menor intenção de interferir. Pelo contrário, apoiavam as exigências. Dez dias depois, negros e mulheres foram libertados. Depois, mais um refém foi solto com problemas de saúde. Restaram 52. Em abril de 1980, uma tentativa de resgate foi arquitetada pelo governo americano. Um comando formado por oito helicópteros e 60 soldados entrou no espaço aéreo iraniano, mas antes que chegasse à capital, foi supreendido por uma tempestade de areia, no sudeste do país. Três aeronaves caíram, matando oito militares. A missão foi cancelada e os iranianos descobriam a tentativa pouco tempo depois. A vigilância foi redobrada. Os reféns tinham direito a apenas um banho e poucas horas de sol por semana e, quando saíam do confinamento, eram vendados. Mas, segundo um dos reféns, Robert C. Ode escreveu em seu diário, em setembro de 1980, a vida não era tão dura assim. “Todos os dias são iguais. Faço exercícios, estudo espanhol, escrevo cartas. Jogamos três ou quatro partidas de caça-palavras pela manhã. A tarde, leio.”Com a morte de Rehza Pahlevi, em julho, a crise parecia acabada. Mas o impasse permaneceu e, até hoje, é apontado como um dos motivos que derrotaram Carter, na tentiva de reeleição em 1980. No dia da posse de Ronald Reagan, em 20 de janeiro de 1981, o dinheiro iraniano retido foi desbloqueado e os reféns, libertados após 444 dias em cativeiro. Os detalhes das negociações permanecem um segredo de Estado.
Quem tem medo dos aiatolás?
Hoje, no Iraque,repetem-se as condições que levaram o xiismo ao poder
Ele era um ditador de um país do Oriente Médio rico em petróleo. Foi apoiado durante anos pelo Ocidente. Seu governo reprimia a oposição com métodos que incluíam torturas e assassinatos. Grande parte de seus opositores eram aiatolás. Essas referências não descrevem apenas o xá Reza Pahlevi, mas também o ex-líder do Iraque, Saddam Hussein. As coincidências entre os dois países podem não ter terminado com o fim dos dois governos, de forma sangrenta. Apesar de Saddam ter caído após a invasão do país por forças estrangeiras e não por uma revolta popular como o xá, o resultado final pode ser o mesmo: uma República Islâmica. Como os xiitas são mais de 60% da população iraquiana, é bem possível que uma eleição livre e democrática leve os líderes religiosos do país ao poder. “Os xiitas são maioria no Iraque, mas nunca alcançaram o poder. Naturalmente, acreditam que sua vez chegou”, afirma o jornalista Stephan Kinzer, veterano correspondente do jornal The New York Times. A idéia parece assustar o governo americano, que reluta em estipular uma data para as eleições. Pode demorar, mas ela deve ocorrer, já que levar democracia para o Iraque foi um dos motivos apresentados pela coalizão encabeçada pelos americanos para invadir o Iraque. “Um governo xiita não seria necessariamente ruim. É um erro pensar que todos os xiitas são fanáticos. Há um grande espectro entre eles e muitos são bastante moderados em relação ao convívio com o Ocidente”, diz Kinzer. Para ele, o mundo já pagou um preço muito alto pela falta de democracia no Oriente Médio. “Resta saber se o ocidente aprendeu a conviver com um governo democrático e xiita.”
Na tela do cinema
Durante a década de 90,os filmes ajudaram a revelar o Irã para o mundo
Nos últimos anos, o isolamento do Irã foi interrompido pelas lentes dos cineastas. E em grande estilo. Nomes como o de Abbas Kiarostami, Jafar Panahi e Mohsen Makhamalbaf passaram a figurar entre os preferidos e mais premiados cineastas nos festivais e mostras internacionais de cinema. Em 1997, Kiarostami venceu a Palma de Ouro em Cannes com seu O Gosto de Cereja. Em 2000, Jafar Panahi arrebatou o Leão de Ouro em Veneza com O Círculo. Além do talento dessa geração de cineastas, a boa safra é fruto do incentivo governamental. Em 1992, o então ministro da Cultura, o aiatolá Mohammad Khatami, atual presidente do Irã, criou a Fundação Farabi de Cinema e ajudou a aprovar uma lei que diminuiu de 15% para 0,5% os impostos sobre a produção de filmes. Mas, para conseguir os incentivos, o roteiro tem de passar pelo crivo dos aiatolás. Os filmes produzidos sem autorização podem simplesmente ser proibidos de ir para as telas ou a TV do Irã. Não foi esse o caso de Um Instante de Inocência, que fez enorme sucesso dentro e fora do país. Em 1976, um estudante de 17 anos esfaqueou um policial da guarda do xá para roubar sua arma. Vinte anos depois, eles se reencontraram, quando a vítima foi procurar o agressor, que se tornara um renomado cineasta. Do encontro, nasceu o filme, produzido em 1996, justamente pelo ex-studante, Mohsen Makhmalbaf. A história é uma das poucas menções do cinema iraniano sobre o período anterior à revolução de 1979, que se dedica mais a temas relacionados  à sociedade, bastante influenciada pela religião. O último grande sucesso internacional dessa turma foi A Caminho de Kandahar, de Makhmalbaf, que mostra a situação surreal em que o regime do Taliban mergulhou o vizinho Afeganistão.

Revista Aventuras na História n° 008

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