domingo, 29 de janeiro de 2012

Revolução dos cravos: primavera em Lisboa

Lincoln Secco

Em abril de 1974, soldados liderados por um capitão do Exército deixaram os quartéis rumo à sede do governo. Saudados pela população, que os presentearam com cravos vermelhos e brancos, eles marcharam para derrubar uma ditadura que já durava mais de 40 anos.
Passavam 20 minutos da meia-noite de 25 de abril de 1974 quando os acordes de “Grândola, Vila Morena” começaram a tocar numa rádio de Lisboa. Os poucos ouvintes notívagos estranharam, afinal, aquela era uma música proibida, cujos versos foram censurados pelo governo: “Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto igualdade/ Grândola, Vila Morena/ Terra da fraternidade.” A canção, que havia se tornado um hino dos jovens e intelectuais contra a ditadura que já durava mais de 40 anos, naquela noite, era um sinal: a revolução começara. A poucos quilômetros de Lisboa, sob o comando do capitão Salgueiro Maia, as tropas do quartel de Santarém começaram a movimentar-se. O mesmo ocorria em vários pontos do país.
Fundamental em todo movimento de sublevação, naquela madrugada, a velocidade de marcha era um fator especialmente importante. Era preciso deslocar-se num ritmo maior que as notícias, pois os revolucionários deveriam tomar Lisboa antes que o governo descobrisse as operações. Às portas da capital, no entanto, a coluna de carros de combate parou abruptamente. Salgueiro Maia, que estava à retaguarda, gritou para saber o que tinha ocorrido. Por que parou? Ouviu algumas risadas, antes de lhe darem a resposta. O primeiro carro se havia detido diante de um sinal vermelho. O condutor do veículo, no cumprimento das leis de trânsito (e do bom senso dos dias comum, num dia incomum), havia atrasado em alguns minutos o, naquele momento, irrevogável curso da história. Contornado o problema, o comboio seguiu.
Amanhecia quando os militares revolucionários chegaram ao Terreiro do Paço, onde ficavam os ministérios. Não foram necessários combates – apenas alguns tiros para o alto foram disparados – ou escaramuças. As tropas mobilizadas ganhavam cada vez mais adesões e o povo tomou as ruas, apoiando o movimento. Alguns telefonemas, emissários e um ultimato. Em poucas horas o governo de Marcelo Caetano – que assumira o poder depois de Oliveira Salazar, o ditador que governou Portugal de 1933 até a morte, em 1970 – foi deposto. Ainda na manhã do dia 25, a cidade foi tomada por manifestações populares, cartazes coloridos e flores. Sem ninguém saber bem a razão, floristas de Lisboa distribuíam cravos, símbolos da cidade desde os tempos imemoriais, para os soldados que os exibiam, gloriosos, nas lapelas.
Mas uma revolução não nasce do dia para noite. E um governo que durou mais de 40 anos não acaba assim de repente. Quando o capitão Salgueiro Maia colocou seus homens na rua, expressava um sentimento comum a militares e civis de todo o país: pôr fim à ditadura e, sobretudo, terminar com a Guerra Colonial na África.
A questão do ultramar era um espinho na garganta do governo português desde os anos 50. No século 19, Portugal viveu o desejo e a ilusão de continuar sendo o grande império da época dos descobrimentos. Depois da independência do Brasil, em 1822, Portugal sonhava com o projeto de reviver na África os lucrativos negócios que tinham por aqui. Por uma série de razões, não funcionou. No entanto, nas complexas negociações da divisão dos territórios africanos com outras potências européias, mesmo sem poder econômico e militar comparável ao de Inglaterra e França, os portugueses mantiveram Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e outras possessões menores.
No século 20, o período do pós-guerra detonou uma série de movimentos de libertação nesses países. A presença portuguesa era garantida à custa de uma dispendiosa ocupação militar, que cada vez mais indispunha o governo com os setores da sociedade que não estavam mais dispostos a pagar por isso. Portugal tornava-se um império periférico, que cedia, cada vez mais, à exploração de suas colônias a empresas estrangeiras e vinculava-se economicamente ao mercado europeu. Em 1961, teve início a chamada Guerra no Ultramar. Tropas guerrilheiras em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau rebelaram- se contra o governo português, que obrigou o país a desviar ainda mais recursos do orçamento para manter o conflito que durou até 1974. A revolução lusa colocou um  ponto final no sonho colonial português, que fora moldado com as idéias e as práticas do século 19.
Pode parecer estranho fazer uma revolução para depor um governo cujo ditador havia morrido alguns anos. Mas foi o que ocorreu. Salazar tomou o poder em Portugal em 1933 e governou com mão de ferro. Na década de 30, ele não estava sozinho e, ao lado de Francisco Franco, da Espanha, de Benito Mussolini, da Itália, e Adolf Hitler, da Alemanha, integrou o clube dos ditadores que fizeram o auge do totalitarismo na Europa. Quando a Segunda Guerra explodiu, no entanto, o governo português tinha muitos interesses econômicos fora do Eixo, e, ao lado dos espanhóis, preferiu a neutralidade. Nos anos que se seguiram, o país mergulhou numa mórbida placidez. Salazar desestimulou a economia, preferindo incentivar o grosso da população a permanecer no campo. As elites do país viviam do que conseguiam tirar da África e qualquer crítica ao governo era punida pela Polícia Interna de Defesa do Estado, que prendia, torturava e matava os opositores.
Quando Salazar morreu, em 1970, a ditadura continuou com o professor de direito Marcelo Caetano que, na prática, já governava como ministro de Salazar, que, depois de um derrame, em 1968, estava impedido de exercer o cargo de presidente. Os anos de repressão e isolamento político haviam colocado no mesmo barco, o da oposição, um largo espectro de descontentes: socialistas, comunistas, liberais, ex-combatentes da guerra na África, exilados e desertores. Porém, somente quatro anos após a morte do grande ditador, a revolta estourou.
É por isso que, naquela madrugada fria de 25 de abril, o capitão Salgueiro Maia e seus homens sabiam muito bem o que iriam fazer em Lisboa. O governo tinha de cair a qualquer custo. E caiu com uma facilidade impressionante. Nos dias em que se seguiram ao exílio de Marcelo Caetano – primeiro na Ilha da Madeira e depois no Rio de Janeiro –, a felicidade parecia fácil de ser alcançada. Lisboa viu-se tomada por protestos de todo tipo, com murais inspirados na revolução cultural de Mao Zedong e mulheres pedindo liberdade sexual, entoando em conjunto uma das estrofes mais feministas da história: “Homens na cozinha!”
A troca de governo foi rápida. Tão rápida que para muitos permaneceu, naqueles primeiros dias, a sensação de que não havia governo algum. Como em qualquer revolução, a disputa pelo poder foi acirrada. No primeiro momento, assumiu o governo o general António Spínola, antigo aliado do governo de Caetano, mas já rompido com ele quando eclodiu o movimento. Nos anos de 1975 e 1976, uma  sucessão de governos provisórios, golpes e contragolpes culminou no afastamento de Spínola, na estatização dos bancos e outras medidas socialistas e radicais. Um alto membro do governo americano, assustado com a influência do Partido Comunista Português, chegou a lamentar a perda dos “irmãos lusos para os inimigos vermelhos da União Soviética”. Um exagero. Talvez a Revolução dos Cravos não tenha sido aquela em que os mencheviques  venceram, como afirmou um de seus líderes civis mais proeminentes, Mário Soares, do Partido Socialista, que depois assumiria a presidência do país, em alusão aos moderados que perderam a batalha para os bolcheviques de Lênin, em 1917. O fato é que a revolução, que tinha um discurso socialista, foi, pouco a pouco, caminhando para um regime social-democrata, mais preocupado em integrar Portugal à comunidade européia e ao capitalismo.
No entanto, naquele dia, 25 de abril de 1974, enquanto nascia o Portugal de hoje, com flores vermelhas na lapela, os soldados e a população, sem imaginar o que viria, mas confiantes no futuro, entoavam em conjunto a música proibida: “Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto igualdade/ Grândola, Vila Morena/ Terra da fraternidade”.
Saiba mais: Livro
A Revolução dos Cravos, Lincoln Secco, Alameda/Cátedra Jaime Cortesão, 312 páginas.
Virada para o centro
Por que a revolução que começou socialista parou no meio do caminho?
Passados 30 anos, sabemos quais foram os destinos pessoais e as escolhas dos militares e civis que participaram do movimento que pôs fim à ditadura salazarista. Mas uma pergunta permanece sem resposta. Em que momento, o golpe, que começou socialista, virou em direção ao centro? Tanto a Revolução Francesa (1789) quanto a Russa (1917) despertaram energias e sonhos em grande parte jamais realizados. Munidas de sentimentos nobres, suas práticas nem sempre foram consentâneas com seus propósitos. O chinês Mao Tsé-Tung, um herdeiro da velha tradição, resumiu a prática revolucionária ao afirmar que “fazer uma revolução não é como ir a um jantar, trata-se de um ato de violência inaudita”. Talvez por isso, Robespierre, líder radical da revolução francesa e conhecido como incorruptível, expressasse a virtude, a honestidade, mas jamais a clemência. O 25 de abril de 1974 derrubou um governo fascista quase pacificamente, graças ao apoio popular à ação armada. Nenhuma das divergências graves que surgiram no processo revolucionário desbordou para uma Guerra Civil aberta. Houve expulsões e prisões. Houve mais exilados que perseguidos. E não ocorreu o terrível paredón (a execução de inimigos políticos). Do ponto de vista estrito da técnica do golpe de Estado (no modelo maoísta ou castrista), essa pode ter sido a fraqueza da Revolução dos Cravos. Mas foi daí, também, que ela retirou sua legitimidade e admiração.

Revista Aventuras na História n° 008

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