É tempo de parar de fingir que os europeus e os americanos compartilham uma visão comum do mundo ou mesmo que ocupam o mesmo mundo. Sobre a questão crucial do poder – a eficácia do poder, a moralidade do poder, a desejabilidade do poder as perspectivas americanas e européias são divergentes. A Europa está virando as costas para o poder ou, dito de modo um pouco diferente, está se movendo para além do poder, em direção a um mundo auto-suficiente de leis e normas, negociação transnacional e cooperação (...). Os Estados Unidos, enquanto isso, permanecem de olhos postos na história, exercendo o poder no mundo hobbesiano e anárquico onde as leis e normas internacionais não são confiáveis e a verdadeira segurança e a defesa e promoção de uma ordem liberal ainda dependem da posse e uso da força militar. (...) Americanos são de Marte e europeus, de Vênus (...).
(Robert Kagan, “Power and Weakness”, Policy Review, junho de 2002)
A segunda Guerra do Golfo moveu violentamente o tabuleiro da política internacional. Os Estados Unidos, sob a inspiração da Doutrina Bush, implantaram um protetorado militar no Iraque e iniciaram o re-ordenamento geopolítico de todo o Oriente Médio.
A administração Bush colocou a política externa sob o controle dos neoconservadores republicanos, engajando-se a fundo numa estratégia neo-imperial. A hiper-potência afirma globalmente a sua condição de “Nova Roma”, exercendo o poder à margem das instituições multilaterais e desprezando os conselhos para que busque o consenso com seus aliados tradicionais.
A dinâmica do sistema internacional distingue-se claramente daquela que predominou durante a Guerra Fria, quando a bipolaridade de poder limitava as ações das duas superpotências rivais. Agora, a hiper-potência projeta o seu poder sobre o mundo inteiro e sente-se capaz de impor mudanças de regime pelo exercício da força militar. Mas a tendência cada vez maior ao desequilíbrio de poder provoca a reação das outras potências.
Pela primeira vez na história, o Conselho de Segurança (CS) da ONU conheceu uma confrontação diplomática entre os Estados Unidos, apoiado pela Grã-Bretanha, de um lado, e França, Rússia e China, do outro. O impasse sobre a resolução esboçada por Washington que autorizaria a invasão do Iraque redundou numa profunda ruptura dos Estados Unidos com a legalidade internacional. Depois da derrubada do regime de Saddam Hussein, o padrão de impasse se reproduz na questão da formação de um novo regime em Bagdá: Washington conduz a instalação de um protetorado militar, enfeitado por um governo fantoche nativo; Paris, Moscou e Pequim solicitam um “papel central” da ONU na reinvenção do Estado iraquiano.
França, Rússia e China não se opuseram à invasão do Iraque porque suas empresas perderiam contratos milionários firmados com o regime de Saddam Hussein como sugeriram analistas superficiais. No plano dos interesses imediatos das suas empresas, a atitude lógica consistiria em reconhecer o caráter inevitável da invasão e participar dela, a fim de repartir uma parte do butim. Mas o comportamento dos Estados não pode ser compreendido pelas lentes estreitas da contabilidade empresarial. O acordo entre franceses, russos e chineses revela uma tendência estrutural do atual sistema de Estados: as potências reúnem-se para tentar limitar o poder e a influência desproporcionais da única hiper-potência.
A crise da ONU decorre dessa tendência.
No sistema da Guerra Fria, o mecanismo do veto servia para proteger os interesses vitais das superpotências contra a ingerência internacional, ao mesmo tempo que protegia a ONU da colisão entre as superpotências. Ao usar o veto, Washington e Moscou “neutralizavam” a ONU, conservando o CS como quadro de negociação.
Agora, tudo isso mudou. Do ponto de vista das potências, o CS funciona como armadilha para a hiper-potência, pois o direito de veto confere a todos os membros permanentes um poder formal similar ao de Washington. Pelo mesmo motivo, do ponto de vista dos Estados Unidos, o CS funciona como um estorvo, uma teia liliputiana que tolhe os seus movimentos.
Mas o vírus da crise contamina outras instituições internacionais e, com particular intensidade, a Aliança Atlântica. Liderando a “frente de rejeição” européia à invasão do Iraque, França e Alemanha produziram um abalo sísmico sem precedentes nos alicerces da OTAN. Nos Estados Unidos, os neoconservadores classificaram a atitude franco-alemã como “traição” à aliança que protegeu a Europa Ocidental contra a União Soviética. Donald Rumsfeld, o chefe do Pentágono, estigmatizou as duas potências continentais como a “Velha Europa”, por oposição a uma “Nova Europa” fiel à liderança americana: Grã-Bretanha, Espanha, Itália e os novos integrantes da OTAN do leste europeu. O acadêmico Robert Kagan acusou os europeus de voltarem às costas para as realidades do poder e, por essa via, profetizou o aprofundamento da cisão entre os dois lados do Atlântico.
A crise da OTAN reflete não só as divergências entre Estados Unidos e Europa mas também as divergências no interior da União Européia (UE). O Tratado de Maastricht, de 1991, comprometeu a UE a definir uma política externa comum. O episódio da invasão do Iraque evidenciou, dolorosamente, que essa meta está muito mais distante hoje do que quando foi firmado o tratado. A “Velha Europa de Rumsfeld é o núcleo geopolítico e o motor diplomático da UE. Esse núcleo franco-alemão reafirmou dramaticamente a sua comunidade de destino ao desafiar a “Nova Roma”. Mas a Grã-Bretanha também reafirmou, com igual dramaticidade, a sua “parceria privilegiada” com os Estados Unidos. Ao romper com franceses e alemães, o primeiro ministro britânico Tony Blair certamente se lembrou das palavras dirigidas por Winston Churchill a Charles De Gaulle durante a Segunda Guerra Mundial: “Se tivermos que optar entre a Europa e o mar aberto, sempre escolheremos o mar aberto”.
A chave da evolução do sistema internacional encontra-se na política externa da “Nova Roma”. Os atentados de 11 de setembro de 2001 conferiram aos neoconservadores uma influência inédita, que cresceu com a operação no Afeganistão e atingiu o zênite com a invasão do Iraque.
Mas o controle neoconservador ainda sofre contestações. O mais notório contestador no interior da administração Bush, o secretário de Estado Colin Powell, perdeu a batalha mais importante contra Rumsfeld e talvez tenha perdido a guerra. Entretanto, Tony Blair ocupou o seu lugar. Até a deflagração da invasão do Iraque, o britânico tentou, até o limite de suas forças, construir uma ponte entre a “Nova Roma” e a ONU e entregou-se, sem sucesso, à missão de reconciliar Washington com a “Velha Europa”. Depois da queda de Bagdá, retomou a mesma missão, que sintetiza a atual política externa de Londres.
Os neoconservadores querem que a ONU desempenhe o papel de mera agência humanitária no Iraque, enquanto Blair tenta articular um compromisso entre Washington e os europeus. Os neoconservadores querem avançar no rumo da reforma da monarquia saudita e do disciplinamento do Irã e da Síria.
Aliados do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, só admitem um tratado de paz baseado na submissão completa dos palestinos. Blair, por outro lado, tenta focar a política de Washington na inauguração de um novo processo de paz na Palestina. Atrás da disputa que envolve a hiper-potência e as potências, a “rua árabe” entra em movimento e, em todo o mundo muçulmano, multidões voltam-se contra a “Nova Roma” e os governos árabes e muçulmanos que obedecem ao seu comando.
O ORIENTE MÉDIO SEM SADDAM
Após 21 dias de guerra, a imagem da enorme estátua de S addam Hussein sendo derrubada numa praça central de Bagdá simbolizou a eliminação de um regime ditatorial que estava no poder há mais de duas décadas. A ocupação do I raque e a sua transformação em protetorado militar americano trarão profundas mudanças e indagações quanto ao futuro político do Oriente Médio.
A Arábia Saudita perde. O país foi, ao longo de mais de meio século, um aliado prefer encial dos Estados Unidos no Golfo Pérsico
e tornou-se parceiro crucial na política global do petróleo . Todavia, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, as relações entre Washington e a monarquia saudita esfriaram. Osama Bin Laden, como quinze dos dezenove extremistas que cometeram os atentados, é saudita. A seita islâmica Wahabita, componente do núcleo de poder do Estado saudita, é a principal fonte de financiamento de B in Laden.
Sob a senha da “democracia no mundo árabe ”, Washington prepara-se para exercer forte pressão pela reforma da monarquia saudita. A finalidade consiste em forçar a dinastia dos Al- Saud a enfrentar e derrotar os fundamentalistas . O previsível choque entre os dois componentes da monarquia promete tempos de turbulência na Arábia S audita.
A Jordânia, um reino criado pelo imperialismo britânico logo após a Primeira Guerra Mundial, após a desintegração do Império Otomano, tem uma posição geográfica peculiar: quase inteiramente desértica, espreme-se entre Israel e o Iraque. A Jordânia participou de três guerras contra Israel mas, hoje, mantém r elações diplomáticas normais com o Estado judaico. Cerca de metade dos jordanianos tem origem palestina. O regime pró-ocidental mantém-se numa espécie de “corda bamba ” política, pois a maioria da população é anti-israelense e repudiou a invasão americana do I raque.
As tensões internas tendem a se agravar , em função das pressões de Washington por uma ativa cooperação do regime. A estabilidade do reino depende, em grande par te, da evolução incerta da “ questão palestina”.
O Irã, uma república teocrática, é o único país do mundo islâmico governado por muçulmanos xiitas. Durante a invasão do Iraque, os iranianos mantiveram posição semelhante à que tinha adotado na primeira Guerra do Golfo, em 1991. De um lado, demonstraram claramente sua oposição à ação anglo-americana e, de outr o, não levantaram um só dedo em defesa do regime iraquiano . Os iranianos não esqueceram o sangrento conflito que sustentaram contra o Iraque durante a década de 80.
Mas o Irã tem for te influência sobre a política iraquiana. N o Iraque, há quase 60% de xiitas, que têm como principal liderança o Conselho da Revolução Islâmica, baseado em Teerã. Essa corrente política decidiu boicotar a formação do governo provisório iraquiano e exige a retirada das forças de ocupação americanas. A estabilidade do protetorado americano no Iraque depende, em par te, da postura que será adotada pelo I rã. Por isso, Washington deve pressionar para que o regime de Teerã contenha o ímpeto do Conselho da Revolução Islâmica.
A Síria é uma espécie de feudo da família Assad, no poder há várias décadas. As preocupações geopolíticas do país estiveram quase sempre ligadas às tensões e conflitos com Israel. Por outro lado, o governo sírio se “especializou” em interferir nas questões internas do Líbano, onde mantém tropas que sustentam um “tratado de amizade ”. O regime sírio, junto com o iraniano, financia o grupo extremista libanês Hezbollah (Par tido de Deus), que mantém um conflito de baixa intensidade com Israel. A população síria manifestou-se nas ruas contra a invasão do Iraque.
Tudo isso gerou especulações de que a Síria seria o próximo alvo dos Estados Unidos. Mas um ataque à Síria não está nos planos de Washington. As declarações belicosas de George Bush e do chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, logo após a queda de Bagdá não eram o pr elúdio de um ataque militar . Elas tinham a finalidade de “ enquadrar ” o regime de Damasco, evitando que desse guarida a altos funcionários iraquianos e tentando cortar as fontes de financiamento do H ezbollah. Assim como o Irã, a Síria estará sujeita a pressões crescentes dos Estados Unidos.
A Turquia definiu a sua posição diante da derrubada de Saddam Hussein em função da questão curda. A maior par te dos curdos da Turquia concentra-se no sudeste do país, junto à fronteira com o Iraque. O governo de Ancara teme, sobretudo, que os curdos do norte do Iraque obtenham autonomia política na era pós-Saddam e, controlando um dos maiores pólos petrolíferos do país, estimulem as reivindicações de autonomia ou independência entre os curdos da Turquia.
No início da invasão, a Turquia chegou a deslocar tropas para o extremo norte do Iraque, a fim de criar uma zona-tampão na fronteira. Washington, temendo um conflito entre as forças tur -cas e os combatentes irregulares curdos do Iraque exigiu a retirada das tropas. Ancara optou pelo recuo, a fim de evitar uma maior deterioração nas r elações com Washington, já abaladas pela recusa turca em permitir a passagem de forças terrestres americanas pelo seu território .
Washington provavelmente tentará r estabelecer a plena cooperação da Turquia com os Estados Unidos. A Turquia, pilar da OTAN no Mediterrâneo oriental, é o único aliado de Israel no Oriente Médio e um peão importante demais na política mundial dos Estados Unidos. A tarefa não será simples, em virtude da “questão curda” e do repúdio da população turca à invasão do Iraque.
Os neoconservadores, que controlam a política externa da administração Bush, declaram o objetivo de democratizar o Iraque e transformá-lo em trampolim para espalhar a democracia no Oriente Médio. Um Iraque democrático provavelmente seria governado pelos xiitas e ofereceria autonomia para os curdos – dois desenvolvimentos intoleráveis para Washington. A difusão da democracia no Oriente Médio implicaria mudar virtualmente todos os regimes da região . Mais provavelmente, o discurso sobre a democracia destina-se apenas a forçar uma reforma na monarquia saudita e manter o Irã e a Síria sob pressão contínua.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3