sexta-feira, 1 de abril de 2011

ONDE ESTÃO OS “BLOGUEIROS” DE BAGDÁ?

Jorge de Almeida e Salam Pax
No início do desenvolvimento da Internet, poucos poderiam prever o quanto as novas tecnologias afetariam as formas tradicionais de escrita e comunicação.
Mas até mesmo a mais íntima de todas as formas literárias, o diário, adquiriu novo sentido após a expansão da rede eletrônica.
O hábito de escrever ao “querido diário” sempre foi uma atividade eminentemente privada, que evitava a todo custo o olhar curioso de quem porventura quisesse ler os sentimentos confiados ao caderno de anotações. Hoje isso mudou. A Internet reúne milhares de diários eletrônicos, nos quais o cotidiano e os pensamentos dos internautas estão acessíveis a qualquer navegante. Conhecidos como blogs, estes diários eletrônicos acabam formando, com seus chats e links, diversas comunidades de internautas.
A Guerra do Iraque acabou chamando a atenção para esse novo gênero de diário, especificamente por causa de um blog escrito em Bagdá por um jovem iraquiano, que assina com o sugestivo pseudônimo de “Salam Pax”. O blog surgiu de uma troca de mensagens entre este personagem e um amigo, chamado Raed, o que explica o nome do site, que pode ser encontrado em http://dear_raed.blogspot.com.
Em setembro de 2002, na primeira entrada do diário conservada em arquivo, Salam e Raed comentam a palavra mais usada em Bagdá naquele momento: “depois”.
A ameaça da guerra adiava todos os planos, e a notícia de eleições presidenciais gerou o seguinte comentário: “Não consigo decidir se choro ou rio, mas certamente é mais engraçado do que trágico”. De fato, Saddam Hussein foi eleito, em outubro, com a totalidade dos votos, o que diz bastante sobre a liberdade de expressão no país.
O blog continua em novembro e dezembro, com os dois jovens discutindo a própria vida e os problemas da cidade. Como é comum nesse novo tipo de diário, Salam também publica no blog comentários sobre as notícias que lê, pela Internet, acerca dos preparativos para a guerra. Quando o blog começa a chamar a atenção dos navegantes, o servidor não dá conta do enorme número de visitas, e o site só se mantém no ar porque consegue “espelhos” em diversos pontos da rede. Além disso, a autenticidade do relato começa a ser posta em dúvida por outros “blogueiros”. Afinal, como seria possível alguém escrever de maneira tão livre estando em Bagdá, onde toda comunicação era controlada?
De fato, esse é um dos grandes problemas dos blogs. Não é possível verificar a autenticidade das informações e nem mesmo a real identidade de quem os escreve. No caso de Salam e Raed, isso se complica ainda mais, pois eles evitavam, por óbvias razões de segurança, qualquer referência pessoal que pudesse criar problemas com “o pessoal do partido Baath”.
As únicas informações seguras sobre o autor foram dadas por ele próprio, em uma conversa privada, a um outro “blogueiro” francês: Salam teria 28 anos, seria arquiteto e teria morado com os pais fora do Iraque durante a adolescência.
Quando o “blogueiro” francês publicou a conversa privada, em seu site, foi alvo de inúmeras críticas, pois muitos temiam que a divulgação das informações colocasse em risco os dois jovens. O próprio Salam interveio nas discussões sobre a autenticidade de seus relatos: “Por favor, parem de me mandar e-mails perguntando se tudo isso é real. Se não acreditam, então parem de ler!”.
Sobrevivendo a vários ataques de hackers, os relatos de dezembro a fevereiro são marcados pelo medo e apreensão. Salam comenta a vida cotidiana, relata a beleza da cidade de Bagdá e ironiza os programas patrióticos que passam na TV iraquiana. Os dois amigos conseguem comprar uma antena de satélite, e passam a ver também as redes internacionais, como a Al-Jazeera e a BBC. O contato de Salam com os estrangeiros que viajavam ao Iraque como “escudos humanos” é tematizado no blog: “Fiquem em seus hotéis, comprem lembranças e ridicularizem os modos dos iraquianos.
Espero que consigam mandar cartões postais a seus amigos, contando sobre as comidas exóticas que vocês apreciaram em seus passeios por Bagdá, seus turistas!”.
A guerra se aproximava. Em 9 de março, Salam comenta as recomendações do partido para a proteção da cidade: “acabei de vedar as janelas de casa, na verdade é um exercício muito relaxante, se você esquecer por alguns momentos o porquê está fazendo isso”. Ele conta seus preparativos: estocou gasolina, mas tem medo que isso cause um incêndio; comprou alguns CDs, já que terá de ficar dias trancado em casa; preparou um “quarto de emergência”, junto com outros membros de sua grande família. No dia 17 de março, Salam relata a alta dos preços, as longas filas para comprar enlatados, remédios e gasolina, diante de uma guerra que já parece inevitável.
Quando os ataques começam, as entradas do diário escasseiam. Salam comenta a dificuldade em postar mensagens, ao mesmo tempo em que se esforça para contar em detalhes sua experiência cotidiana: “Hoje, neste terceiro dia da guerra, sofremos diversos ataques à luz do dia. Alguns ocorreram sem que as sirenes tenham tocado. Eles provavelmente desistiram de tocar as sirenes a tempo. Meu pai e meu irmão saíram para ver o que tinha acontecido na cidade, e me disseram que os tiros foram bastante precisos, mas quando os mísseis e as bombas explodem, acabam espalhando destroços por toda a vizinhança”.
Nesse mesmo dia, Salam coloca no ar um pedido desesperado de ajuda, pois seu amigo Raed desaparecera em Bagdá. O último relato do próprio Salam Pax foi feito em 24 de março. Desde então, e até o fechamento dessa matéria (16 de abril), não há mais notícias dos dois. Mesmo com a cidade ocupada pelos americanos e com o restabelecimento de alguns canais de comunicação com o exterior, o blog permanece calado, e seus leitores buscam na rede, em meio a diversos boatos, alguma informação sobre o destino desses dois blogueiros, que durante meses foram os olhos e ouvidos dos que viajavam pela rede até o coração de Bagdá.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3

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