sexta-feira, 1 de abril de 2011

A POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES

Os perigos do “Brasil negro”
Jayme Brener
É fundamental a adoção de políticas compensatórias como instrumento de redução de desigualdades sociais no Brasil. Acontece que, à ausência de critérios nacionais, a instituição de cotas para negros, principalmente, transformou-se em instrumento de demagogia eleitoreira, que nada colabora com a luta pela igualdade de oportunidades e, de quebra, corre o risco de “queimar” de vez a idéia de iniciativas compensatórias.
O caso extremo aconteceu no Rio de Janeiro, onde o ex-governador Anthony Garotinho fez aprovar lei garantindo aos negros 40% das vagas na Universidade Estadual (UERJ). Como outra lei assegurava 50% das vagas a alunos de escolas públicas, a superposição fez com que, para haver o preenchimento das vagas destinadas a negros, se recorresse à lista geral de aprovados.
Resultados: só 36,7% dos aprovados não conseguiram suas vagas via sistema de quotas.
Aconteceu o que era de se esperar. Candidatos loiros se disseram negros e houve aprovados com notas baixíssimas, em detrimento dos melhores colocados. As políticas compensatórias saíram chamuscadas. Além disso, coloca-se um problema de ordem muito prática, que decreto algum poderá resolver: quem diz que atirar ao mercado  profissionais não necessariamente qualificados ajuda a promover qualquer tipo de igualdade?
Agora, em São Paulo, um deputado estadual está propondo reserva de 20% para estudantes negros nas universidades públicas; outro quer 30% e um terceiro, 35%. Todos, na verdade, sonham mesmo é com os votos dos beneficiários, a partir de critérios arbitrários.
Como pano de fundo dessa correria às cotas há uma singela “maquiagem” de dados. O importante Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos) aboliu, em suas pesquisas, a categoria “pardos”, incorporando-a ao universo dos negros, como reivindicavam  havia décadas  os movimentos de consciência negra.
De uma penada e sem consulta a ninguém, milhões de filhos de pais brancos e negros se transformaram em negros. Assim, os negros superaram 40% da PEA, alimentando a tese da urgência do sistema de cotas.
É de se perguntar: por que um estudante negro pobre deve ter privilégios negados ao filho de um migrante nordestino, seu vizinho? Há quem diga: “trata-se de corrigir uma injustiça histórica”. Só se for cometendo outra injustiça porque, a se acreditar nesse direito hereditário, dezenas de milhões de caboclos, com ancestrais indígenas, poderiam reivindicar lá suas cotazinhas.
Ou que tal os filhos dos imigrantes japoneses, trancafiados em campos de concentração do interior de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial? Sem contar que a adoção da cor da pele como critério para a concessão de benefícios, num momento em que o próprio conceito de raça está sob o fogo da ciência, abre precedente perigoso.
O discurso demagógico e a adoção relativamente fácil das cotas (quem tem coragem de criticá-las em período eleitoral?) mascaram o verdadeiro problema. O Brasil necessita urgentemente de ações e investimentos públicos (e até privados) capazes de garantir aos milhões de excluídos  negros, brancos, seja lá o que forem – oportunidades de acesso à educação e ao mercado de trabalho.
A idéia fundamental, em síntese, é garantir oportunidades iguais para todos. Trata-se, fundamentalmente, do princípio básico que constitui a própria essência da República, jamais levada às últimas conseqüências no Brasil.
Tirando a máscara do racismo
Sueli Carneiro
É penoso enfrentar os descaminhos que o debate das cotas trilha no Brasil, seja por ignorância ou má-fé. Internacionalmente as cotas são um entre os muitos instrumentos que compõem as chamadas ações afirmativas.
Tais políticas emergem da consciência que uma dada sociedade adquire sobre os processos de exclusão, discriminação ou injustiças históricas praticadas contra um determinado grupo social e que impedem que ele possa desfrutar igualitariamente das oportunidades sociais. Portanto elas visam assegurar a realização do princípio de igualdade, a partir do reconhecimento da persistência de mecanismos discricionários que conspiram contra a consolidação da democracia e da igualdade de direitos. Ideologias como racismo, sexismo são, entre outras, geradoras e reprodutoras de desigualdades. Disto decorre que, para a efetivação do princípio da igualdade, os que historicamente receberam tratamento desvantajoso devem ser alvo de políticas específicas que assegurem a eqüalização de suas condições para uma competição social justa.
Esse tipo de consciência tem levado diferentes países a adotar políticas de ação afirmativas para enfrentar os dispositivos renitentes de exclusão de gênero, raça/etnia, orientação sexual entre outros. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 25 países haviam adotado alguma medida de combate à discriminação sexual e racial ou instituído algum tipo de política de discriminação positiva nas relações de trabalho. Em outros países essas medidas foram tomadas para democratizar o acesso à educação para os grupos discriminados.
No Brasil, cotas vêm sendo adotadas para ampliar a inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho, para aumentar a representação política das mulheres e, no entanto, nunca provocaram a reação negativa que a proposta de cotas para negros provoca nesse momento na sociedade.
Por que será?
As desigualdades raciais adquiriram no Brasil dimensões escabrosas que configuram dois países racialmente apartados. É uma realidade estatística suficientemente demonstrada em pesquisas realizadas por centros de excelência, e é uma realidade empírica perceptível nos bolsões de pobreza e miséria do país que concentram, de maneira desproporcional, população negra.
Expressa-se também na concentração absolutamente majoritária de brancos nas instâncias de prestígio e poder da sociedade, como é o caso das universidades, fato demonstrado pelo Censo Étnico realizado pela USP, que constata extraordinário déficit censitário de estudantes negros.
O pior do racismo é a sua capacidade de naturalizar um mundo racialmente hierarquizado, tornando “natural” que a brancura seja o paradigma da hegemonia cultural, política e econômica e a negritude ou, como diz Muniz Sodré na obra Claros e Escuros  Identidade, povo e mídia no Brasil, seja “uma espécie de símbolo ontológico das classes econômica e politicamente subalternas”. E que uma realidade assim organizada seja, para a maioria, a ordem natural das coisas, sem que nada precise ser feito para alterá-la.
Como já afirmamos em outro artigo, publicado no Correio Braziliense, “o melhor das cotas é a sua capacidade de tirar as máscaras do racismo, da discriminação racial e explicitar a verdadeira natureza dessa ideologia: a manutenção de privilégios raciais e sociais”. O rolo compressor que se mobiliza nesse momento para impedir a sua implantação revela que “graças às cotas, o racismo brasileiro vê-se obrigado a abandonar a sua hipócrita cordialidade”.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3

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