sexta-feira, 1 de abril de 2011

CARACAS A QUENTE

Gilberto Maringoni
Quem chega a Caracas pela primeira vez tem a impressão de estar numa espécie de Rio de Janeiro sem praia. Na verdade, a cidade está à beira do mar do Caribe, mas ele não domina a paisagem. A semelhança está nos maciços montanhosos, que cercam toda a área urbana, coalhados de “ranchos”, ou favelas, onde moram mais da metade dos 4 milhões de habitantes da capital venezuelana. Quente e úmida quase o ano todo, a cidade espelha em seu centro a marca do caos e da ocupação indisciplinada, típicos do terceiro mundo.
A malha urbana central é a justaposição desordenada de duas cidades erigidas em épocas diferentes.
Há um traçado estreito de ruas e quarteirões, com raízes no século XIX, apinhado de veículos e vendedores ambulantes, situado entre as regiões do Palácio de Miraflores, sede do governo federal, da Assembléia Nacional e das praças Bolívar e Venezuela. E há a teia das grandes avenidas, com passagens de nível, que cortam a área, numa inconfundível marca da prosperidade dos anos em que o petróleo passou a ser a mola mestra da economia nacional. As duas tramas se adaptaram entre si e o que se vê é a desordem comum à maioria das grandes cidades latino-americanas. “Mas é um caos mais apertadinho”, lembra Pedro Ávila, balconista de um restaurante próximo ao Metrô Capitólio.
Ele se refere às acanhadas vias da região, nas quais o trânsito parece permanentemente engarrafado. A visão lembra a de uma volta no tempo: Romi-Isettas, busetas (ônibus urbanos adaptados em carrocerias de caminhões), Chevrolets, Dodges e outras “banheiras” dos anos 70 dividem o espaço com poucos exemplares dos últimos modelos do automobilismo internacional.
O contraste exacerbado entre Pajeros, Cherokees, Audis e BMWs com o restante da frota, detonada e batendo lata, espelha a concentração de renda da sociedade venezuelana. A prosperidade trazida pelo petróleo o país é o quarto produtor mundial e o óleo representa 70% da pauta de exportações – chegou a apenas um quinto da população.
Na Venezuela, como em quase toda a América Latina, convivem abismos sociais acentuados. Estive lá há alguns meses, realizando uma matéria sobre as conseqüências do frustrado golpe de Estado, em abril do ano passado. Salta à vista que a divisão política que marca a Venezuela tem um claro corte social. Parece coisa de manual, mas a voz corrente é a de que “os pobres estão com Chávez; os ricos, com a oposição”.
Quem for a uma manifestação de protesto, como a que assisti no Parque Del Este, exuberante área verde próxima ao centro, notará a diferença, a começar pelos carros luxuosos que estacionam nas proximidades.
“Chávez precisa sair! Ele dividiu o país entre ricos e pobres”, brada Cecília Gómez, uma estudante de 30 anos, morena, usando óculos escuros, jeans apertados e camiseta preta. Como ela, a maioria ali usa suas boas roupas de fim de semana: tênis com etiquetas, bermudas bem passadas e um detalhe em preto, a cor do protesto.
São, em grande parte, brancos e mais altos que a média da população. Miami, a duas horas e meia de vôo, é local para se passar um feriado prolongado.
Três dias depois, vou à praça Venezuela, numa manifestação pró-Chávez. Aqui estão os desdentados e esfarrapados, os índios e mestiços. “La malta”, brinca Henry Nava, 48 anos, um simpático líder comunitário da periferia de Caracas. Após a manifestação, ele me leva para comer arepa, uma espécie de acarajé, na qual cabe qualquer tipo de recheio, e me pergunta sobre o Brasil e um assunto que o fascina, “las chicas de su país”.
Os morros de Caracas, como os do Rio de Janeiro, são um mundo à parte. É daqui que vem o apoio maciço ao governo. As promessas de uma vida melhor ainda não viraram realidade, mas Chávez é quase unanimidade.
Estive em Luís Hurtado, um bairro localizado na zona oeste, a 15 quilômetros do centro, no alto de um cerro.
“Se fossem ricos que morassem aqui, se chamariam colinas; como somos pobres, são cerros, o equivalente aos morros no Brasil”, brinca Nava. Por conta da altitude, o clima é bem mais frio que o do centro da metrópole.
Mas a temperatura da capital anda mais quente desde que se acentuaram os embates entre chavistas e oposição. As largas avenidas são o palco preferencial para as manifestações públicas que tomaram conta do cotidiano da cidade, há pelo menos um ano e meio. A estação de metrô de Altamira, bairro de alta classe média, tem sido palco constante de protestos oposicionistas.
A estação em si é um monumento à prosperidade petrolífera. Com seus jardins e fontes em vários níveis, escadarias de mármore e uma bela praça na superfície, rodeada por edifícios de alto padrão, é quase um símbolo da minoria abastada.
Mas o verdadeiro palco da oposição não é a rua.
É a mídia. “Que se vá!” parece ser um bordão de programas de auditório. Nas manchetes dos jornais, nos talk-shows, nos telejornais e até mesmo nos programas humorísticos, os ataques ao governo dão o tom. Há quatro redes de televisão privadas, todas na oposição.
Os jornais seguem pela mesma toada. Todos sintetizados no “Que se vá!”, expressão que possui uma série de sinônimos. Pode significar o referendo popular, a limitação de poderes pela Assembléia Nacional ou a redução de mandato. Ou mesmo uma nova quartelada, como a de 11 de abril de 2002. O alvo é óbvio: Chávez.
Boletim Mundo Ano 11 n° 2

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