sexta-feira, 1 de abril de 2011

A DESCONHECIDA BACIA DO PARANAPANEMA

Paulo Zocchi
O desprestígio da pesquisa e o abandono do patrimônio no Brasil de hoje desgostam quem se preocupa em buscar no passado elementos essenciais para entender a realidade e agir sobre ela. Como jornalista, acompanhado pelo repórter fotográfico Marcelo Maragni, escrevi em 2002 o livro Paranapanema da nascente à foz, a pedido da editora  Horizonte Geográfico. Mal iniciadas as pesquisas, nossa primeira sensação foi de surpresa: apesar de ser um dos mais importantes cursos d’água do Sudeste brasileiro, o Paranapanema muito pouca atenção recebeu até hoje por parte dos estudiosos.
Uma única obra científica, com mais de cem anos, o esquadrinha com atenção, desde a foz do rio Itapetininga: é o relatório da expedição da Comissão Geográfica e Geológica de 1886, chefiada pelo engenheiro Teodoro Sampaio, com 25 pranchas de 30 cm X 50 cm. Hoje raríssima, a reprodução em fac-símile dessa obra está sendo lançada pela mesma editora .
A falta de pesquisas é chocante, sobretudo pela riqueza do material a ser estudado. Ponto referencial de divisa entre os mundos português e espanhol na América do Sul no início da colonização, o rio ainda mantém seus mistérios.
Um primeiro enigma é o nome. “Paraná”, em tupi-guarani, significa rio. “Panema” é um sufixo negativo, algo como “imprestável”, mas a quê se refere?
À falta de peixes, às dificuldades de navegação, à presença de malária? As hipóteses estão em aberto.
Outra incógnita é o local da nascente. Teodoro Sampaio entrou no rio cerca de 120 quilômetros abaixo de seu início. Até a década de 20, a Comissão Geográfica e Geológica subiu mais uns 70 quilômetros do rio, até o riacho Bacalhau. Ninguém, entretanto, pelo que levantamos, estudou sua parte mais alta e a discussão sobre a localização da principal nascente continua, apaixonadamente, entre mateiros, pescadores e autoridades locais. Mas cientistas e pesquisadores não participam da investigação.
Se falarmos de história, um bom assunto é o ciclo do ouro no alto Paranapanema. No início do século XVIII, garimpou-se na bacia do rio. O escoamento do ouro acontecia pelo alto da serra, passando pelo “registro” de Itapetininga. Ainda hoje existem vestígios bem conservados desta atividade: são os chamados “encanados”. Para extrair o ouro, os garimpeiros desviavam os cursos de água, construindo canais com pedras tiradas dos próprios leitos.
Muitos ainda estão lá, ocultos pelas matas em Capão Bonito e Ribeirão Grande. Esquecidos.
Pela mesma época, a descoberta do ouro nas Minas Gerais teve como conseqüência a criação do caminho dos tropeiros, aberto em 1732, unindo Viamão (RS) a Sorocaba (SP). Esse caminho foi o alicerce da expansão colonial portuguesa no atual Brasil meridional.
Falando com velhos tropeiros e até pescadores, localizamos o ponto em que centenas de milhares de mulas, cavalos e bovinos atravessaram o Paranapanema durante 250 anos, deixando uma cicatriz nos campos. De certa forma, as tropas completaram o trabalho dos bandeirantes, integrando ao Brasil uma larga porção de território ao sul.
Raposo Tavares foi o nome principal do bandeirismo que assolou a região. Foi, sobretudo, um grande caçador de escravos, subjugando os índios a ferro e fogo e destruindo grande número de missões dos jesuítas a serviço da coroa espanhola.
O Paranapanema funcionou, justamente, como limite norte da atividade jesuítica.
No início do século XVII, os padres agruparam dezenas de milhares de índios em reduções no território do Guairá, que corresponde ao centro, norte e oeste do atual Paraná. As duas principais missões, Santo Inácio e Nossa Senhora de Loreto, ficavam na margem esquerda do rio, em frente ao atual Pontal do Paranapanema. Suas ruínas hoje são ignoradas até pelos moradores próximos.
As missões e as cidades existentes (Ciudad Real de Guairá, Vila Rica do Espírito Santo e Santiago de Jerez) foram destruídas a partir de 1628 pelos “portugueses de São Paulo”, com o reduzido contingente de sobreviventes fugindo  pelo rio Paraná em direção à atual Argentina. Anos depois, Raposo Tavares acabou com as chamadas missões do Tape (no atual Rio Grande do Sul), despovoando um extenso território e dispersando o gado  cuja livre reprodução por mais de cem anos deu origem a um imenso rebanho, ponto de partida para o tropeirismo.
Se grande parte da história da colonização do Paranapanema está à espera de quem a conte, os estudos de arqueologia começaram há cerca de trinta anos. Impulsionados pela Associação Projeto Paranapanema, revelam aos poucos as características e particularidades dos oito milênios de vida humana no vale.
Até 2 mil anos atrás, o território abrigava caçadores-coletores chamados de umbus. Deixaram restos de fogueiras e pedras lascadas. Subitamente desapareceram, expulsos, mortos ou absorvidos pelos guaranis que, concluindo longa migração desde a Amazônia ocidental, chegaram pelo oeste e se espalharam. Semi-nômades, os guaranis trouxeram a agricultura e a cerâmica. Em diversos sítios arqueológicos escavados recentemente, os restos das habitações guaranis aparecem próximos à superfície, com os vestígios dos umbus surgindo mais abaixo. Ocorre agora uma redescoberta deste passado longínquo, expostos sobretudo nos museus em Piraju e Iepê.
Nosso trabalho jornalístico, que agora chega ao público, é uma pequena contribuição para ordenar fragmentos de uma história e expor a grandeza de um rio e sua gente, apontando fontes, colhendo depoimentos, capturando imagens. O papel dos estudiosos, porém, continua a ser insubstituível.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3

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