sexta-feira, 1 de abril de 2011

GEOPOLÍTICA DE WASHINGTON SEMEIA O “CHOQUE ENTRE CIVILIZAÇÕES”

Newton Carlos
Um intelectual paquistanês, em sentido oposto ao discurso de Bush de imposição pelas armas de um “futuro brilhante” para o Iraque, disse que nos últimos setecentos anos, sempre que derrotados, os árabes não abraçaram a “modernidade”. Pelo contrário, caíram no fundamentalismo mais radical. Em conseqüência, o próprio islamismo sofreu um longo processo de “degradação” .
Esse foi o tema de três artigos publicados entre janeiro e março de 1999 no Dawn, o mais respeitado semanário do Paquistão. Escrevendo para um público muçulmano Eqbal Ahmad, já morto, analisou o que chamou de raízes da direita religiosa. Criticou a deturpação do Islã cometida por “absolutistas” e a redução da ordem islâmica “a um código penal, destituída de seu humanismo, sua estética, suas buscas intelectuais e sua devoção espiritual”. O resultado “é a afirmação absoluta de um aspecto da religião, em geral fora de seu contexto e com desprezo pelos demais aspectos”. Os que fazem isso, segundo Ahmad, “estão preocupados com o poder e não com a alma”.
O agravante, completou outro respeitado orientalista, Edward W. Said, cidadão americano e professor emérito da universidade de Colúmbia, “é o fato de que distorções e fanatismos semelhantes ocorrem no universo dos discursos judaico e cristão”. O governo Bush tem uma ala “fundamentalista” aparentemente dominante. O próprio Bush se identifica a tal ponto com a direita religiosa que o jornal Washington Post constatou que é ele, presidente dos Estados Unidos, o seu chefe real. Não faltam, entre expoentes dessa direita, que pululam nos partidos religiosos de Israel, afirmações de que Maomé foi “pedófilo possuído pelo diabo”.
O fundamentalismo se agarra aos “mandamentos religiosos básicos”. O Islã, fundado pelo profeta Maomé (570-632) tem por base os “Cinco Pilares da Fé”: testemunho da unidade de Alá, cinco rezas diárias, jejum no mês do Ramadã, peregrinação à Meca e caridade.
A repressão, opressão e derrotas sofridas pelos árabes, aí incluídos os palestinos, resultaram em pressões para que a jihad, a guerra santa, seja incluída como um sexto pilar do Islã. Um especialista no assunto, Arif Jamal, diz que a jihad pode tornar-se “bomba termonuclear”.
O significado da palavra é “combate sagrado”.
A jihad, na visão de Maomé, deveria derrotar os “infiéis” e estabelecer um Estado islâmico em Meca, depois Medina e a península arábica. O essencial permanece, com geografia ampliada: Estados islâmicos por toda a parte. Mas a jihad como é conhecida hoje, em seu formato de guerrilha santa, com recurso inclusive ao terrorismo, bombas-humanas e outras formas de luta explica Jamal – começou com a resistência à ocupação soviética do Afeganistão, nos anos 80, organizada e financiada pela CIA.
Antes um “conceito adormecido”, já que os árabes e muçulmanos estavam engajados em lutas nacionalistas, a jihad tornou-se luta armada e é assim que os fundamentalistas querem consagrá-la como sexto pilar do Islã. Osama Bin Laden entrou em cena no Afeganistão dos anos 80. Há testemunhos de instrutores americanos despachando seus milicianos islâmicos, a partir de bases no Paquistão, exclamando em voz alta “em frente, Alá está com vocês”.
Israel também procurou usar o fundamentalismo islâmico em seu proveito. Ajudou o Hamas, partido fundamentalista, a instalar-se nos territórios palestinos ocupados como contraponto à OLP laica de Yasser Arafat. As cartas se embaralhavam segundo os interesses do momento. Washington jogaria com o laicismo árabe, utilizando o regime de Saddam Hussein contra o Irã fundamentalista e revolucionário dos aiatolás, na Guerra Irã-Iraque (1980-88).
Um ponto de inflexão foi a Guerra dos Seis Dias, de 1967. Israel venceu, com golpes letais, e mesmo os israelenses chegaram a considerar o triunfo um milagre.
O egípcio Gamal Abdel Nasser, herói do nacionalismo árabe, preparou-se durante dez anos para a “batalha do destino”. Iria jogar Israel no mar.
Não jogou. Pelo contrário, Israel não só sobreviveu triunfante, como engoliu a parte oriental de Jerusalém, a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, as Colinas de Golã e a península do Sinai. O triunfo espetacular, quando a própria sobrevivência parecia em xeque, virou a cabeça de boa parte dos israelenses e a idéia até então remota de incorporar as terras ancestrais de Israel ganhou tons dominantes num imaginário agora sem limites. Israel derrotou, numa só tacada, Egito, Síria e Jordânia e com isso se fincavam as primeiras estacas do “Grande Israel”.
A partir daí, o nacionalismo árabe iniciou a jornada para o precipício, juntamente com Nasser. O fundamentalismo islâmico acabou assumindo a vanguarda da luta armada, enquanto a OLP terminaria caindo na impotência e na degradação, com lances de corrupção e violações dos direitos humanos. Diante do fracasso dos Acordos de Oslo, que prometiam a paz e o Estado Palestino, pode completar sua desmoralização assumindo a forma de governo autônomo fantoche. Quanto ao nacionalismo árabe e ao pan-arabismo, pareciam sobreviver, embora de modo tênue, por meio do partido Baath, no poder na Síria e Iraque.
Mas Saddam Hussein, acossado pelos Estados Unidos, foi abrindo mão do secularismo e por meio de discursos, símbolos e slogans tratou de coligar o nacionalismo ao islamismo. “Deus é grande”, foi inscrito na bandeira do Iraque. Há duas décadas, idas regulares a mesquitas podiam resultar em prisão. Nos últimos dez anos, mais de cem mesquitas surgiram em Bagdá. “O partido Baath tornou-se um partido islâmico”, diz o sheik Mustafá Abbas, a cargo de orações numa das muitas mesquitas que foram dominando a paisagem da capital iraquiana. Wamid Nadhumi, professor de ciência política da Universidade de Bagdá, garante que essa transformação reflete a falência do nacionalismo árabe em seu último reduto. “Agora, até o presidente reza cinco vezes por dia”, completou Nadhumi.
A “conversão” política de Saddam Hussein procurou colocar o Iraque no contexto do “choque entre civilizações”. Samuel Huntington, acadêmico americano, lançou a expressão no quadro da polêmica sobre o “fim da História”, que acompanhou o encerramento da Guerra Fria. Discordando dos que enxergaram na queda do Muro de Berlim o triunfo definitivo do Ocidente e do liberalismo, Huntington desenhou um cenário pessimista, pontilhado de guerras futuras e dominado pelos signos do conflito entre culturas e do ódio religioso.
“A idéia que proponho é que a fonte fundamental de conflitos neste novo mundo não será de natureza sobretudo ideológica e nem econômica”, escreveu Huntington. Serão culturais “as grandes divisões entre a humanidade e a fonte predominante de conflito”. Na época em que o livro saiu, em artigos na revista Foreign Affairs, Huntington teve de se desdobrar na defesa da visão de um mundo que teria ultrapassado os padrões de guerra conhecidos. Foi até acusado de “imaginar” fronteiras religiosas e, de certa maneira, alentar os que identificam um “diabo islâmico”. A partir daí, elaborou o que viria a ser a pedra angular do seu “choque entre civilizações”: o Ocidente não pode impor seus padrões como se fosse a única condição civilizatória possível.
Huntington estava entre os acadêmicos que se juntaram em Harvard para discutir o fenômeno, registrado em pesquisas de opinião, de que pelos menos dois terços da população mundial  chineses, russos, indianos, árabes e africanos – encaram os Estados Unidos como a grande ameaça externa às suas sociedades. Não se trata simplesmente de temor diante da formidável máquina militar americana, escreveu Huntington na Foreign Affairs. Os Estados Unidos, segundo ele, são vistos como “potência intervencionista, unilateral, hipócrita, com dois pesos e duas medidas, empenhada em impor imperialismo financeiro e colonialismo intelectual”.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3

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