sexta-feira, 1 de abril de 2011

A CONSTRUÇÃO DO OUTRO

Elaine Senise Barbosa
Existem três grandes religiões monoteístas no mundo. O judaísmo é a mais antiga de todas e serviu de matriz para o cristianismo e o islamismo. Maomé dizia-se o último profeta de uma linhagem que inclui Abraão e Jesus, todos eles mensageiros da palavra de Deus. Para Maomé, esse parentesco religioso deveria ser respeitado e tanto judeus quanto cristãos, tolerados enquanto comunidades.
Em sua expansão, o Islã salvou da destruição a filosofia e a ciência greco-helenística. Conservou e aprimorou os livros e saberes dos povos que subjugou. Foi mestre da Europa cristã quando essa começou a romper o imobilismo feudal, ensinando-lhe parte de sua própria história; não por acaso, os muçulmanos achavam os europeus bastante “bárbaros”.
Por que então o Ocidente cristão, com uma história que mais se aproxima do que se afasta do islamismo, criou essa visão do Islã como a sua antítese?
Por que temos a impressão que os jornais e TVs, ao falarem sobre a guerra e o “fundamentalismo islâmico”, referem-se a um lugar estranho, incompreensível?
Essa visão distorcida do Islã foi construída durante o longo processo através do qual os europeus expandiram seu poder sobre o planeta. No primeiro capítulo dessa história estão as Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, quando a sociedade feudal, tendo atingido o limite da sua expansão pela Europa, tentou conquistar novas terras no Oriente Médio e Egito.
A ideologia que justificava o direito cristão de eliminar muçulmanos e judeus, tomando-lhes as terras, os bens e as vidas baseava-se na superioridade religiosa do cristianismo, enquanto aqueles eram classificados de infiéis ou hereges pois, apesar de acreditarem em um único Deus, não estavam subordinados à autoridade da Igreja de Roma. A expulsão dos cristãos das terras orientais, que conquistaram durante algumas décadas, criou uma visão repleta de ressentimentos e desconfianças de ambas as partes.
Num capítulo paralelo ao das Cruzadas insere-se a Reconquista da península Ibérica (séculos XI a XV), isto é, o processo de expulsão dos muçulmanos e judeus daquelas terras, que eles haviam ocupado desde o século VIII. A Cruzada Ibérica atingiu plenamente seus objetivos resultando em decretos de expulsão de todos os mouros e judeus que recusassem a conversão ao catolicismo no século XVI. As origens  dos Estados português e espanhol encontram-se nesse período e nele podemos observar como o poder dos reis, suportado pela Igreja, ampliou-se e fortaleceu-se à medida que a população moura foi sendo discriminada. A princípio os novos senhores impunham apenas o pagamento de tributos regulares mas, aos poucos, mouros e judeus foram expulsos do campo, obrigados a residir fora dos muros das cidades, proibidos de exercer certas profissões, e obrigados a usarem sinais costurados às roupas de modo a melhor identificá-los, facilitando a própria discriminação. Foi no século XIII que a Igreja instituiu o uso da estrela de Davi e da lua crescente para judeus e muçulmanos.
Simultaneamente, os cristãos, em boa parte recém-chegados do norte da Europa e atraídos pelas guerras de conquista, estabeleciam a sua identidade por oposição aos excluídos, e apoiavam os reis que lhes concediam os direitos retirados dos primeiros. A Reconquista Ibérica é talvez exemplo mais claro de como a identidade da Europa foi construída na Baixa Idade Média como sinônimo de cristianismo, por oposição aos não-cristãos. É significativo, no plano simbólico, o fato de Roma ter sido escolhida, muitos séculos depois, para sediar a conferência que criou a Comunidade Européia, em 1957.
Durante a Idade Moderna, enquanto a Europa voltou-se para a América e o Atlântico tornou-se o principal eixo de comunicação ocidental, a intensidade das relações entre cristãos e muçulmanos diminuiu, e os atritos também. Mas, no século XIX, com a independência da América e a industrialização na Europa, a necessidade de subordinar novos mercados levou os ocidentais à colonização da Ásia e África, continentes até então pouco integrados ao circuito das trocas mundiais.
A ideologia do imperialismo já não se baseava mais na religião mas no Positivismo, na crença absoluta na capacidade da razão humana em desvendar e dominar o mundo a partir de critérios científicos. No final do século XIX, a superioridade tecnológica da Europa e dos Estados Unidos e os benefícios materiais decorrentes converteram-se em critérios para avaliar o desenvolvimento das sociedades. E esses critérios eram tanto mais valorizados à medida que o contato com as culturas afro-asiáticas não apresentava traços similares e, portanto, reforçavam a idéia da superioridade ocidental e o empreendimento da “missão civilizadora” que o homem branco realizaria junto aos “incivilizados”.
Nessa época ocorreu o reencontro entre cristãos e muçulmanos e, desta vez, os aspectos culturais foram ressaltados para marcar as diferenças. O Islã não conhecia a separação entre religião e Estado. No Ocidente tal separação teve como seus principais marcos a Reforma Protestante – que instituiu o contato direto entre o indivíduo e Deus, sem intermediação da Igreja  e do Iluminismo – que estabeleceu o princípio do Estado laico.
Nas sociedades muçulmanas as leis continuavam a ser pautadas pela sharia, a lei religiosa, o que consistia em obstáculo para a liberdade individual e a livre-iniciativa, valores máximos da sociedade burguesa.
O Islã árabe era visto como um mundo exótico  o mundo dos haréns, mulheres sensuais cobertas de véus, consumo de alucinógenos capazes de provocar reações irracionais, intrigas palacianas, caravanas de escravos, mercados repletos de sons e cheiros. E essa foi a imagem transportada para as páginas da literatura e da pintura ocidentais, para as discussões das universidades e daí para o grande público, como se aqueles aspectos particulares fossem o comum, generalizando o excepcional e escondendo a normalidade.
O estranhamento que separa o Ocidente do Islã não é um acaso – é fruto de um milênio de história.
Será preciso um outro  milênio para desfazê-lo?
Boletim  Mudo Ano 11 n° 3

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