sexta-feira, 1 de abril de 2011

WASHINGTON PROJETA “PROTETORADO COMERCIAL” NAS AMÉRICAS

Não se poderia duvidar de que os americanos do Norte da América estão destinados a satisfazer um dia às necessidades dos americanos do Sul. A natureza os colocou perto destes. Ela lhes forneceu assim grandes facilidades para conhecer e apreciar suas carências, para estabelecer com esses povos relações permanentes e apoderar-se gradativamente de seu mercado. (...) Os americanos dos Estados Unidos se encontram diante dos povos da América do Sul precisamente na mesma situação que seus pais, os ingleses, diante dos italianos, espanhóis, portugueses e de todos esses povos da Europa que, sendo menos evoluídos em centralização e indústria, recebem de suas mãos a maior parte dos objetos de consumo.
(Alexis de Tocqueville, A democracia na América, 1840)
No papel, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) é uma boa idéia.
Os 800 milhões de habitantes de 34 países que ocupam um território de 40 milhões de km2, somando um PIB de cerca de US$ 13 trilhões, formariam a maior zona de livre comércio do planeta. Em tese, isso significaria um enorme estímulo à troca de produtos, bens e serviços, à pesquisa científica, ao intercâmbio cultural, ao trânsito de pessoas entre os países. Uma maravilha. Mas papel, todos sabemos, aceita tudo.
Na prática, a Alca, se implementada, será bem diferente da tese. Basta dar uma olhada um pouco mais cuidadosa no discurso feito no início de março pelo secretário de Comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, ao Congresso de seu país.
Nele, Zoellick diz, claramente, que Washington pretende “usar de todos os meios legais e necessários” para “conquistar o máximo de vantagens para os americanos”.
Afirmou também que Bush, “restaurando a liderança americana na área de comércio, fará pressões agressivas para assegurar os benefícios da abertura comercial para famílias, fazendeiros, empresas, operários e consumidores” de seu país. A Alca, diz Zoellick, pretende realizar o “cumprimento de uma visão americana que data do século XIX”.
A retórica retumbante de Zoellick sobre a “liderança” dos Estados Unidos não consegue ocultar o fato de que o volume total de comércio realizado pelos Estados Unidos em 2002 recuou para US$ 2,9 trilhões, caindo 4% em relação ao ano anterior. Em 2001, já havia sido registrada uma queda de 9%. Para além do “triunfalismo”, o discurso é muito preocupante por, no mínimo, quatro motivos principais.
Primeiro: a “visão americana que data do século XIX” é a Doutrina Monroe, de 1823, bastante conhecida pelo aforismo “a América para os americanos”, e que, no quadro da ideologia do Destino Manifesto, serviu de pilar doutrinário à expansão imperial dos Estados Unidos rumo ao Pacífico e ao Caribe.
Segundo: os Estados Unidos são a maior potência econômica do planeta. Seu PIB, algo em torno de US$ 11 trilhões, representa cerca de 80% do PIB total das Américas. Suas corporações transnacionais dispõem de extraordinárias vantagens de escala na concorrência com as empresas dos países latino-americanos.
Terceiro: a condição de hiper-potência dos Estados Unidos lhes permite desafiar abertamente as organizações multilaterais, como a ONU e a Organização Mundial de Comércio (OMC).
Quarto: apesar da retórica liberal e do nível médio baixo das tarifas de importação, os Estados Unidos praticam políticas comerciais fortemente protecionistas e unilateralistas. Em 2002, quando o Congresso concedeu ao presidente George Bush poderes para realizar negociações e celebrar acordos comerciais sem a prévia aprovação do Legislativo, condicionou tais poderes ao respeito a mais de quinhentas ressalvas julgadas necessárias para a “proteção dos interesses americanos”.
As negociações sobre a Alca, que ingressam em etapa decisiva, permanecem em grande parte fora do debate público nos países da América Latina. Os Estados Unidos, jogando todo o peso do seu aparato diplomático e comercial, mobilizaram cerca de 9 mil pessoas  de políticos do mais alto escalão até técnicos de nível médio para trabalhar na produção do acordo. A experiência do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) permite suspeitar que, por trás das propostas públicas sobre a Alca, se abriguem compromissos sigilosos conhecidos apenas pelos governos e pelas corporações transnacionais do continente .
A proposta oficial, apresentada por Washington, prevê uma Alca cortada na exata medida do interesse do governo e das corporações dos Estados Unidos. O capítulo sobre agricultura, por exemplo, não inclui a eliminação ou redução dos bilionários subsídios agrícolas que beneficiam os fazendeiros americanos. Para Washington, a discussão sobre produtos agrícolas deve ser realizada apenas no âmbito da OMC, onde o impasse entre Estados Unidos e União Européia parece impedir qualquer compromisso de redução substancial de subsídios.
Entre 1990 e 1997, o total anual de subsídios agrícolas nos Estados Unidos ficou um pouco abaixo de US$ 10 bilhões.
No ano 2000, sob o impacto das eleições presidenciais e de um volumoso superávit fiscal, os agricultores americanos receberam mais de US$ 30 bilhões em subsídios o equivalente à cerca de 60% da renda líquida gerada por todo o setor agrícola do país!
Nos termos dos Estados Unidos, a implantação da Alca pouco alteraria o panorama atual da concorrência agrícola entre produtores brasileiros e americanos, que é profundamente distorcida pelo arsenal de subsídios concedidos por Washington.
Atualmente, os 15 principais produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos são taxados em 46%, enquanto os 15 principais produtos exportados pelos Estados Unidos ao Brasil enfrentam alíquota de 14%. Das 130 maiores tarifas americanas, cem incidem sobre o setor agrícola, atingindo precisamente produtos de destaque na pauta de exportações brasileira: suco de laranja, açúcar, álcool combustível, fumo, laticínios e cacau. A proposta de Washington para a Alca não toca no fundo dessa relação desigual: segundo seus termos, o açúcar e o suco de laranja só teriam entrada livre no mercado americano em 2015.
Washington sabe que o Brasil, país mais industrializado da América do Sul, é o entrave principal para a sua proposta  mas também é o mercado mais promissor . Por isso, a sua estratégia consiste em isolar o Mercosul no quadro das negociações hemisféricas.
Essa estratégia se manifesta no cronograma regionalmente diferenciado oferecido pelos Estados Unidos. Já em 2005, os pequenos países do Caribe teriam tarifa zero para 91% de suas exportações de produtos industriais e de consumo. Por outro lado, os países do Cone Sul só teriam tarifa zero para 58% desses produtos. Na mesma linha, no momento da entrada em vigor da área de livre comércio teriam isenção tarifária 85% das importações agrícolas provenientes do Caribe, 64% do Mercado Comum Centro Americano (MCCA), 68% da Comunidade Andina de Nações (CAN) e 50% do Mercosul.
Finalmente, a proposta americana para o item de serviços impede acordos preferenciais entre parceiros de blocos sub-regionais.
Na prática, a regra implica a dissolução de blocos como o Mercosul e a CAN.
FIAT QUESTUS, ET PEREAT MUNDUS
A proposta de Washington para a Alca pretende incluir, ao pé da letra, o capítulo 11 do Nafta. Trata-se do MAI (Acordo Multilateral de Investimentos), que concede direitos privilegiados aos investimentos feitos pelas corporações transnacionais, restringindo a capacidade de intervenção dos Estados. Além disso, estabelece que sempre que houver conflitos entre os interesses das corporações e as eventuais leis e medidas aprovadas pelos Estados nacionais, os conflitos deverão ser resolvidos por arbitragem internacional, passando por cima, desta maneira, da legislação estabelecida em cada país.
Eis alguns casos práticos, entre os quinze já verificados no âmbito do Nafta. Eles traduzem bem o título dado : “Haja o lucro, e pereça o mundo!”
1. A Ethyl Corp., uma companhia americana sediada no Estado da Virgínia, que exigiu do Canadá uma indenização de US$ 11 milhões porque o governo canadense denunciou que o seu produto era prejudicial à saúde. Se fosse proibida de continuar produzindo a substância, a companhia exigia uma indenização de US$ 250 milhões. Mas como o governo canadense cedeu, e não proibiu, a companhia se contentou em cobrar os US$ 11 milhões, como “advertência”.
2. A S.D. Myers contra o governo do Canadá, exigindo a indenização de US$ 20 milhões, porque ficou proibida de fabricar, por dois anos, produtos contendo um tóxico prejudicial à saúde.
3. A demanda, ainda em andamento, da Methanex Corp. A companhia canadense, com sede em Vancouver, exige do governo americano a quantia de US$ 970 milhões, alegando estar tendo prejuízo com a polêmica levantada pelo estado da Califórnia, o qual alega que o produto químico da Methanex contamina os mananciais de água, trazendo um grave risco para o meio ambiente.
4. O caso da Metalchad contra o governo do México. É uma companhia americana que comprou os direitos de tratamento do esgoto no município de Guadalcazar, no México.
O município constatou que a empresa tinha contaminado os mananciais de água e negou a licença para o seu funcionamento. A companhia pediu uma indenização de US$ 90 milhões, que representam uma soma maior do que os ganhos anuais de todos os habitantes do município. A decisão do tribunal especial determinou que o governo mexicano pagasse à companhia a quantia de US$ 16,7 milhões.
DUAS POLÍTICAS COMERCIAIS
A corrente de comércio dos Estados Unidos é, de longe, a maior do mundo. A soma das exportações com as importações atinge quase US$ 1,9 trilhão. Contudo, ao contrário do que ocorre com as outras grandes potências comerciais (Alemanha, China e Japão), o intercâmbio externo dos Estados Unidos exibe profundo desequilíbrio, gerando imensos saldos negativos na balança comercial. Recentemente, o saldo negativo americano ultrapassou os US$ 420 bilhões – um valor que equivale, grosseiramente, ao PIB da Argentina!
Saldos comerciais negativos caracterizaram a Grã-Bretanha imperial do século XIX. Naquela época, a maior potência econômica do mundo podia se dar ao luxo de realizar importações muito superiores às exportações em função das rendas obtidas através das remessas de lucros dos investimentos no exterior e dos fretes da marinha mercante.
Os Estados Unidos repetem, até certo ponto, a trajetória da Grã-Bretanha imperial. O desequilíbrio estrutural na conta de comércio é compensado pelas remessas de lucros das filiais de corporações transnacionais e pelos investimentos externos nos Estados Unidos. Os saldos comerciais americanos tornaram-se negativos em meados da década de 70, refletindo a reconstrução econômica na Europa e no Japão e a difusão da indústria na América Latina e Ásia oriental.
Nas três últimas décadas, a economia dos Estados Unidos experimentou transformações radicais, associadas à revolução tecno-científica.
O desenvolvimento das indústrias de alta tecnologia e a transferência da força de trabalho para o setor de serviços foram acompanhados pela redução da competitividade externa das indústrias tradicionais. A tendência à expansão dos saldos comerciais negativos, que se acentuou desde meados da década de 90, é um sinal característico dessas transformações .
A política comercial dos Estados Unidos combina, paradoxalmente, o princípio do livre comércio com a prática do protecionismo. A abertura comercial multilateral, através da redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, interessa aos setores econômicos nos quais a hiper-potência beneficia-se de vantagens comparativas: os bens de alta tecnologia e os serviços. Assim, Washington pressiona insistentemente, no quadro da OMC, pela liberalização comercial nesses setores e pela conclusão de acordos agressivos de direitos de patentes e propriedade intelectual.
Simultaneamente, a política de comércio dos Estados Unidos reage à redução da competitividade externa dos setores industriais tradicionais através da adoção de medidas protecionistas seletivas. A política protecionista responde a demandas internas, que constituem grupos de pressão no Congresso, e legitima-se pela defesa dos empregos dos trabalhadores das indústrias tradicionais. O arsenal protecionista organiza-se em torno de instrumentos legislativos como a Super 301, que permite impor tarifas excepcionais e cotas de importação em setores selecionados ou contra parceiros comerciais específicos.
Para se ter uma idéia da complexidade da política comercial de Washington, basta dizer que ela abrange cerca de 10 mil linhas tarifárias diferentes. A alíquota média é inferior a 5%, uma das menores do mundo. Mas há 130 tarifas superiores a 35%, que é a maior tarifa de importação cobrada no Brasil. Essas “exceções” cobrem os principais setores industriais e agrícolas que apresentam desvantagens competitivas.
A corrente de comércio dos Estados Unidos com as Américas do Sul e Central não passa de cerca de 7% do intercâmbio global da hiperpotência. Mas é falso extrair desse dado a conclusão de que a Alca é mero detalhe na política comercial de Washington.
A corrente de comércio multi-direcional da hiper-potência realiza saldos negativos com quase todas as macrorregiões do mundo. Contudo, 90% do déficit na balança comercial são fruto do intercâmbio com quatro conjuntos de países: Bacia do Pacífico, Nafta, Europa Ocidental e OPEP.
Mais de 60% do déficit resultam do comércio com os cinco maiores parceiros: Canadá, México, Japão, China e Alemanha .
As Américas do Sul e Central representam a única macrorregião com a qual os Estados Unidos mantêm balança comercial equilibrada.
E, no interior dessa macrorregião, se encontram os importantes mercados do Cone Sul, que apresentam significativo potencial de crescimento. O Brasil, em especial, é visto como um mercado de dimensões continentais a ser conquistado.
No cenário da globalização, o Brasil ocupa uma posição geograficamente periférica, distante dos pólos hegemônicos de poder. Essa posição condicionou a inserção brasileira no comércio mundial. O México e o Canadá concentram seu intercâmbio com os Estados Unidos. O Brasil, ao contrário, é um global trader – isto é, um parceiro global com correntes de comércio distribuídas de modo equilibrado por vários blocos econômicos .
Tradicionalmente, a política comercial brasileira organizou-se em torno da proteção ao setor industrial, por meio de elevadas tarifas de importação. O favorecimento às empresas, nacionais ou estrangeiras, instaladas no país destinava-se a estimular a industrialização por substituição de importações. Na década de 90, o Brasil realizou forte abertura comercial. O comércio exterior cresceu substancialmente, porém as importações aumentaram mais rápido que as exportações. Os desequilíbrios na balança comercial geraram a crise externa que provocou a desvalorização do real, a partir de 1998.
A política de comércio do Brasil está direcionada para duas finalidades: o aumento estrutural das exportações e o reforço do caráter multi-direcional do intercâmbio externo.
Para ampliar as exportações, o país luta na OMC contra o arsenal protecionista dos Estados Unidos e os subsídios agrícolas de europeus e americanos. Para consolidar a sua condição de global trader, procura desenvolver o comércio no Mercosul e América do Sul e estabelecer novas parcerias com os chamados “países-continentais”, como China, Rússia e Índia.
A Alca ativou o debate sobre a política comercial nacional. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), defendendo o bloco hemisférico, divulgou um estudo segundo o qual, mesmo nas condições restritivas da proposta de Washington, as exportações agrícolas brasileiras para os Estados Unidos experimentariam crescimento em torno de US$ 7 bilhões ou US$ 8 bilhões antes do final do prazo de implementação completa da Alca, em 2015. Os empresários das indústrias têxteis e de calçados, na mesma linha, declaram que conseguiriam sólidos avanços no mercado dos Estados Unidos, deslocando produtores americanos menos competitivos e concorrentes asiáticos.
O jogo da Alca é, sem dúvida, favorável para os setores industriais tradicionais do Brasil, que são bastante competitivos e se aproveitariam de qualquer redução de barreiras ao ingresso no mercado americano. Mas a economia nacional abrange um conjunto de setores cruciais que poderiam ser devastados pela concorrência dos Estados Unidos. As grandes indústrias americanas de bens de produção e de bens de consumo duráveis dispõem de capitais e escala incomparavelmente maiores aos das concorrentes brasileiras.
Outros setores, ainda em estágio relativamente incipiente no Brasil, como o de serviços e o de alta tecnologia, poderiam ser reduzidos a um punhado de empresas especializadas orbitando em torno das filiais de conglomerados transnacionais.
Boletim Mundo Ano 11 n° 2

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