A notícia caiu como uma daquelas bombas que atingiram o coração de Bagdá. No dia 31 de março, a rede de televisão NBC e a empresa National Geographic, que edita a revista de mesmo nome, resolveram demitir o veterano correspondente de guerra Peter Arnett. A razão: Arnett teria feito declarações inaceitáveis, durante uma entrevista concedida à emissora de televisão iraquiana. Arnett disse aos iraquianos que tinha fracassado o plano inicial de invasão do Iraque, e que o número de mortos civis iria estimular manifestações pacifistas em todo o mundo.
Como explicar a desproporção entre o “crime” e o castigo, ainda mais em um país que se vangloria de preservar a total e absoluta liberdade de expressão e comunicação? A resposta remete a uma árdua discussão sobre o papel dos meios de comunicação no mundo contemporâneo e mais especificamente sobre a função do correspondente de guerra.
A televisão adquiriu um enorme poder de transformar quase tudo em show, espetáculo, diversão. Assim, por exemplo, nos vários episódios de invasões e guerras civis ao longo dos anos 90 (Somália, Haiti e Bósnia, apenas para citar alguns), as câmaras de TV chegaram aos locais de combate antes dos soldados.
Em nossas casas, vemos tudo pela televisão, e temos a impressão de estar testemunhando “a” verdade dos fatos, e não apenas “uma” verdade, isto é, uma simples versão que alguém filmou, editou e veiculou. O imenso poder adquirido pela televisão foi evidenciado durante a primeira Guerra do Golfo, em janeiro de 1991, quando o mundo acompanhou a cobertura da guerra feita pela rede planetária CNN, em tempo real, ao vivo e em cores, 24 horas por dia.
O âncora da CNN, por coincidência, era Peter Arnett. À época, a rede mostrou ao mundo um espetáculo de vídeo game: “armas cirúrgicas” que, supostamente, não matariam nenhum civil, atravessavam os céus noturnos de Bagdá. Sabe-se, hoje, que pelo menos 200 mil morreram ou foram gravemente feridos na “guerra sem sangue”.
Como foi possível à CNN falsificar as imagens e os cenários de uma guerra transmitida ao vivo? E mais: se a televisão adquiriu a capacidade de falsificar uma guerra, o que mais ela pode fazer? O processo é complexo, mas é possível identificar seus dois pilares básicos.
O primeiro, é a construção de uma narrativa que cria e identifica o Bem e o Mal, o Santo e o Pecador.
Assim, no caso da segunda Guerra do Golfo (que não foi guerra, mas um massacre das forças iraquianas pelos Estados Unidos), toda a vez que alguém falava em Saddam Hussein, logo acrescentava o termo “ditador”.
Até aí, tudo bem. Só que ninguém fazia questão de lembrar que George Bush é, possivelmente, fraudador de urnas e, certamente, fanático religioso protestante envolvido até o pescoço em escândalos de corrupção.
O segundo pilar é a figura do correspondente.
Com o passar do tempo, os telespectadores se acostumam a identificar nele uma fonte conhecida de informação, alguém que apresenta explicações em um cenário desconhecido e muito complexo, uma espécie de vizinho honesto e confiável. As emissoras, por sua vez, escolhem os correspondentes mais adequados a esse papel. Eles são “produzidos” como artistas em um show.
Sedução é a palavra chave.
É isso, finalmente, que explica o “crime” de Peter Arnett. Ao dizer algo que não estava de acordo com o consenso formado em torno do Bem e do Mal, ao dizer algo que não estava no roteiro da telenovela criada pelos meios de comunicação, Arnett cometeu uma imperdoável traição.
Gramática da mídia
Na primeira Guerra do Golfo, em 1991, a CNN teve um virtual monopólio de cobertura.
A novidade da segunda Guerra do Golfo foi o surgimento de uma rede global de TV árabe a Al-Jazeera. Essa rede, baseada no Catar, representou o jornalismo independente, fazendo contraponto às americanas CNN e Fox e à britânica BBC.
O contraponto se manifestou no texto: onde a CNN e a BBC diziam “forças da coalizão” (e a Fox, cara de pau, dizia “nós”), a Al- Jazeera dizia “forças lideradas pelos Estados Unidos”. Mas a gramática das imagens refletiu ainda melhor a diferença. CNN, Fox e BBC geravam a esmagadora maioria das suas imagens a partir das unidades militares invasoras e os espectadores ocidentais assistiam aos disparos de obuses, bombas e mísseis contra um “inimigo” invisível.
A Al-Jazeera gerou quase todas as suas imagens a partir de correspondentes nas cidades iraquianas. Os espectadores árabes assistiram o impacto do fogo, proveniente de lugares invisíveis, sobre as vítimas civis.
Jornalistas na cama do Exército, como as prostitutas
Reproduzimos, em seguida, trechos de um artigo escrito pelo jornalista israelense Uri Avnery, sobre o papel dos jornalistas na cobertura da invasão do Iraque.
Na Idade Média, os exércitos eram acompanhados por grandes quantidades de prostitutas. Na Guerra do Iraque, os exércitos dos Estados Unidos e Grã-Bretanha são acompanhados por grandes quantidades de jornalistas. Criei o termo “prenstituição” para denotar os jornalistas que transformam os meios de comunicação em prostitutas. Os médicos estão comprometidos pelo juramento de Hipócrates a salvar vidas na medida do possível. Os jornalistas estão forçados pela honra profissional a dizer a verdade, da maneira como a vêem.
Nunca tantos jornalistas traíam tanto o seu dever como na cobertura da guerra. O pecado original deles foi aceitar o acordo de participar de unidades do exército. O termo americano embedded soa como sendo posto na cama (in bed) – e a isso corresponde na prática. Um jornalista que aceita a cama de uma unidade do exército se torna um escravo voluntário. É agregado aos subordinados ao comandante, é levado para os lugares que interessam ao comandante, vê e escuta aquilo que o comandante deseja. É pior do que ser um porta-voz oficial do exército, por fingir ser um repórter independente. O problema não é você só ver uma fração pequena do grande mosaico da guerra, mas sim transmitir uma visão falsa daquela pequena fração.
Boletim Mundo Ano 11 n° 3
Nenhum comentário:
Postar um comentário