sexta-feira, 1 de abril de 2011

MISÉRIA E TURBULÊNCIA ATESTAM FALÊNCIA DOS MODELOS LIBERAIS

Newton Carlos
De Buenos Aires a Caracas, um rastro de convulsão política assinala o esgotamento das ilusões criadas pelo liberalismo econômico.
Depois de uma lua de mel política de seis meses, que ele diz ter sido melhor que a do casamento, o presidente Gonzalo Sanchez de Losada, da Bolívia, se viu sitiado em palácio por uma explosão de violência com 33 mortos e mais de 200 feridos. “Foi o nosso 11 de setembro”, desabafou, comparando o impacto emocional provocado nos bolivianos (ou sobretudo nele e os seus) com o sofrido pelos americanos diante dos atentados terroristas.
Policiais rebelados e estudantes irados funcionaram como tropa de choque, tendo um pano de fundo familiar. Insatisfação salarial, tarifaço, orçamento sem recursos de investimentos, mais “ajustes estruturais”, etc. O imposto de 12% com incidência em salários de trabalhadores da classe média, considerado por Losada vital à estabilização da economia, foi o estopim da crise e acabou suspenso na marra. “A culpa é do FMI”, sentenciou o presidente Eduardo Dualde, da Argentina, país onde foram particularmente trágicos os estragos feitos por políticas econômicas de “liberalização” com a mesma matriz.
O FMI tornou-se sinônimo de tensões sociais a caminho de insubordinações e rupturas. De desemprego, falta de rede de proteção social e outras mazelas.
No ano passado mais 7 milhões de latino-americanos ficaram abaixo da linha de pobreza. A proporção de paupérrimos subiu para 44% da população ou um total de 222 milhões de pessoas. A constatação está em documento da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Na mesma época em que a Cepal expôs números da tragédia, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizou um seminário em Montevidéu no qual seu presidente, Enrique Iglesias, pediu “profunda revisão da experiência neoliberal”.
Os governos da região, segundo Iglesias, deviam ter “mais liberdade de escolha”. Também os processos de privatizações, “eivados de corrupção”, precisam ser revistos.
Especialistas avisam que instabilidade política e turbulência financeira se combinam de modo perigoso na América Latina. Nos últimos quatro anos, em quatro dos dez países sul-americanos, presidentes não puderam terminar seus mandatos.
No documento da Cepal sobre os “anos perdidos”, o caso da Argentina é apresentado como “particularmente dramático”. Há uma longa história. As ditaduras, os “estados de segurança nacional”, não se limitaram a reprimir a “ameaça comunista”. Patrocinaram equipes econômicas com manuais padronizados de combate ao “nacional-populismo”. Com o golpe de 1976, contra estertores do velho peronismo, pela primeira vez foi montado um projeto anti-peronista “consistente”.
O ministro da Economia, Martinez de Hoz, era de família oligarca, com profundas raízes no campo conservador. Sua equipe contraiu salários e escancarou a economia. Além de acumular uma dívida externa de US$ 43 bilhões, “Joe y sus muchachos”, segundo o Centro de Pesquisas Sociais, produziram “fratura na evolução da sociedade argentina”. Modo acadêmico de falar da ampliação da pobreza. A dívida externa e a difusão da pobreza encostaram contra a parede o primeiro governo da redemocratização, o de Raul Alfonsin, e desde então a situação só se agravou.
Com alguma relutância, Alfonsin, o primeiro a usar a expressão “democracias pobres”, acabou se encaixando nos modelos do FMI e sequer teve fôlego para completar o mandato. Naufragou na hiperinflação e num transbordamento social parecido com o de agora.
Saques, violência em manifestações de rua angústias populares, muita raiva. Menem, o sucessor de Alfonsin, assumiu em 1989 dizendo que “a dor, a violência, o analfabetismo e a marginalidade golpeiam às portas de nove milhões de argentinos”, quase um terço da população. Convocou para o “nascimento de novos tempos, novas oportunidades, talvez as últimas”.
No primeiro quinquênio da “era Menem”, a pobreza duplicou na Argentina. No final dos dez anos, além de muita corrupção, de cada 1.750 pessoas que empobreciam, mil migravam da classe média para baixo, num colapso que continua. Hoje, 53 milhões de argentinos vivem em condições catalogadas como de pobreza. O “novos pobres”, egressos da classe média, constituem 80% dos bolsões de miséria. O desemprego bate recorde histórico, atingindo 23% da população ativa.
No Equador, as eleições de outubro do ano passado se realizaram com o governo em fim de mandato implorando para que o FMI injetasse mais US$ 240 milhões na economia. O ex-presidente Gustavo Noboa se desdobrava em manifestações de estranheza. Fizera tudo que o FMI mandara e, mesmo assim, não conseguia os dólares que precisava para honrar compromissos de uma dívida de curto prazo de um bilhão.
A dolarização da economia, realizada com a benção do FMI, se via diante da hostilidade da maioria do eleitorado. “Ela não resolveu o problema da inflação, não melhorou os salários e afetou negativamente a competitividade nas exportações”, afirma o economista Alberto Acosta, com coluna muito lida no jornal Hoy.
A dolarização deveria impulsionar o desenvolvimento da produção petrolífera, a jóia da coroa. Entre 70% e 80% da população continuam pobres.
Na Venezuela, o fato é que 30 anos de exploração de petróleo não contribuíram em nada para a melhoria de vida da população. Neste ano, o país tem de cobrir com US$ 2 bilhões os serviços de uma dívida total de US$ 12 bilhões – o equivalente a 80% do PIB.
Hugo Chávez, militar com passado golpista, foi eleito com um discurso anti-FMI, de mudança do “modelo”, e cargas contra uma elite corrupta e impopular. O presidente, com sua “revolução bolivariana”, sobreviveu  milagrosamente a um golpe de Estado, desarmou uma greve geral que parecia interminável, mas ainda não conseguiu superar a grave crise econômica venezuelana. Um rastilho de pólvora que vem de duas décadas atrás, quando Caracas se levantou contra um tarifaço no estilo FMI.
O grande paradoxo venezuelano sempre foi o abismo entre a opulência do Estado, regado a petróleo, saqueado por uns poucos, e a miséria da grande maioria.
Caracas é caso único no mundo. A massa de excluídos das favelas ao seu redor é maior do que a população da cidade propriamente dita. Os favelados da capital constituem o grosso do contingente chavista, que pode entrar em erosão se as promessas de mudança não se concretizam.
CONTRATOS SAGRADOS
No começo da campanha eleitoral no Brasil o PSDB encomendou pesquisa de opinião pública. As constatações resultaram num choque: 61% disseram que o país “está no caminho errado” e contingente ainda maior, de 64%, já havia decidido votar em qualquer candidato de oposição.
O que entender por “caminho errado”? O eleitorado não se fixava em equações sofisticadas, mas em dados da economia real. Na última década, o crescimento médio foi de 1,7%. Os anos 80, a chamada “década perdida”, tiveram números melhores. O desemprego ficou em torno de 7%. Nas metrópoles, no entanto, em torno dos 17%. A taxa de investimentos não passou dos 18%. O salário só perdeu pontos na participação na renda nacional: concentraram-se a renda e a riqueza.
Depois dos desgastes da liberalização  o tal “caminho errado”  o velho desenvolvimentismo voltou a ter encantos. Mas, em 1999, o governo FHC, assinou contrato de três anos com o FMI e o Banco de Compensações Internacionais (BIS) em troca de um empréstimo de 40 bilhões de dólares. Aquele contrato diz que metas fiscais e monetárias têm de ser definidas e controladas a cada três meses e o respeito aos contratos tornou-se tabu, a regra maior, mesmo que tenham sido obras de um governo derrotado nas urnas.
Boletim Mundo Ano 11 n° 2

Nenhum comentário:

Postar um comentário