Jeanne Callegari
A imagem conhecida do herói lembra a de Jesus, mas pode não
ter nada a ver com a figura real do inconfidente. Afinal, por que o vestiram de
santo?Quando você ouve falar em Tiradentes, que imagem vem a sua mente? Provavelmente a de um sujeito com barba e cabelos longos e rosto sereno. Trocando a corda pela cruz, é o próprio Jesus. A imagem de mártir está tão colada ao mito de Tiradentes que é difícil imaginar um sem o outro. Só que nem sempre foi assim. A figura de santo surgiu um século após a morte do inconfidente. E pode ter pouco a ver com ele.
No episódio conhecido como Inconfidência Mineira, os rebeldes que conspiravam contra a Coroa portuguesa foram delatados, presos e julgados, em 1792. A maioria, formada por homens bem-nascidos, foi extraditada para outras colônias portuguesas. Apenas um, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, de origem humilde, foi enforcado e esquartejado. Por quase um século, mal se falou na Inconfidência e em Tiradentes. Ambos eram considerados apenas maus exemplos punidos com rigor.
No fim do século 19, com o país já independente, a situação começou a mudar. Intelectuais queriam instaurar uma república. E começaram a buscar na história brasileira alguém que pudesse representar os novos ideais.
Começou, assim, o culto a Tiradentes. Logo que a República foi proclamada, decretou-se o primeiro feriado: o Dia de Tiradentes, em 21 de abril, data da morte dele. Nesse dia, o Apostolado Positivista, associação brasileira dos afiliados ao positivismo, a corrente filosófica criada pelo francês Augusto Comte, distribuiu folhetos com a imagem do mártir desenhada por Décio Villares (artista responsável pelo desenho da bandeira nacional). Os cabelos e barba longos, a expressão ausente, as roupas, tudo lembrava Cristo. Nascia a imagem conhecida até hoje de Tiradentes. “Ela é fundamental para o estabelecimento do mito”, diz a historiadora da arte Maria Alice Milliet, autora de Tiradentes: o Corpo do Herói. Depois dessa, vieram muitas.
Ninguém sabe ao certo qual a aparência correta de Tiradentes. Como há poucos dados históricos, o terreno para a especulação é grande. Mas por que não retratar outros aspectos do herói, como o lado militar? Para Maria Alice, vestiram-no de santo por algumas razões. Em primeiro lugar, havia a tradição profundamente religiosa da sociedade brasileira. Em segundo, a influência do positivismo entre os republicanos, doutrina que preferia transições lentas a rupturas bruscas. Aliás, como foram, sempre, as transições brasileiras: a Independência e a República foram proclamadas sem sangrentas batalhas. “Retratar o herói armado, exaltar o rebelde ou o militar iria contra essa índole pacífica.”
A imagem serviu bem ao propósito. Mesmo muito depois da proclamação da República, os artistas continuaram preferindo o santo. O governo brasileiro usou o mito para fortalecer a identidade nacional muitas vezes, de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas a Itamar Franco – este, por exemplo, falava na TV com um busto do alferes ao fundo.
O mito imita a arte
A litografia que Décio Villares fez de Tiradentes consagrou
a imagem cristã do líder inconfidente.
1. Barba, cabelo e bigode
A barba e o cabelo compridos lembram a imagem de Jesus. É
provável que, na época, o cabelo fosse cortado antes da execução. Mas não há
registros que comprovem isso.
2. Traços gregos
Os traços do militar, que aparenta uns 40 anos, são nobres,
retos, gregos – também como os de Jesus, que, apesar da região em que nasceu, é
retratado com os olhos azuis.
3. Com a corda no pescoço
A corda está entrelaçada no pescoço de Tiradentes, mas está
frouxa, não ameaça enforcar. É fina e delicada, bem diferente da que realmente
foi usada para a execução.
4. Coroa de café
A palma simboliza o martírio. E, assim como Jesus,
Tiradentes tem coroa: a sua não é de espinhos, mas de folhas e grãos de café,
mais adequada aos trópicos.
5. Os pais do mito
No canto esquerdo, a informação de quem mandou imprimir os
folhetos no primeiro feriado popular da República: Edição do Apostolado
Positivista do Brasil, 1890. Já as inscrições no laço (1792 – Libertas quae
sera tamen e Ordem e Progresso – 1889) representam o pretenso parentesco
histórico da Inconfidência Mineira com a proclamação da República.
Outras faces
Muitos outros artistas pintaram Tiradentes, ajudando a
formar e a popularizar a cara do mito.
Prisão de Tiradentes
Pintado em 1914 por Antônio Parreiras, é o único quadro que
mostra Tiradentes valente. Não à toa, foi encomendado pelo governo do Rio
Grande do Sul, estado mais belicoso. Armado, enfrenta os policiais que querem
prendê-lo.
Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”
De José Wasth Rodrigues (1940), retrata o herói antes da
prisão, vestido com a roupa de militar, sem a barba e os cabelos compridos. Na
criação do mito, o lado militar seria deixado de lado em favor do aspecto de
mártir.
Tiradentes Esquartejado
Um dos quadros mais conhecidos do herói mineiro, feito em
1893 por Pedro Américo, mostra o tronco esquartejado, a cabeça e a perna
esquerda. Apesar da crueza, ele ainda é tratado com certo distanciamento, como
o corpo sem feridas.
Painel Tiradentes
No imenso painel que fez para retratar a Inconfidência,
Candido Portinari, partidário do comunismo, retrata o mineiro em vários
momentos, da juventude na cavalaria ao homem barbado e grisalho – parecido com
o comunista Luís Carlos Prestes.
Aventuras na História n° 044
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