Em função das dimensões do setor petrolífero saudita, a monarquia desempenha um papel singular e crítico na definição dos preços internacionais do petróleo. (...) Riad quer manter preços elevados pelo maior tempo possível. Mas os preços não podem ser tão altos que contenham a demanda ou estimulem fontes concorrentes de energia. (...) Impedir os preços do petróleo de subir demais requer capacidade ociosa suficiente para usar no caso de emergências. (...) A capacidade ociosa saudita é o equivalente energético das armas nucleares uma poderosa dissuasão contra os que tentam desafiar a liderança e os objetivos sauditas.
Também é o pilar das relações americano-sauditas. Os Estados Unidos confiam nessa capacidade como o alicerce da sua política petrolífera. Esse arranjo funcionou com perfeição enquanto a proteção americana garantia que Riad não “chantagearia” .
(Edward L. Morse e James Richard, “The Battle for Energy Dominance”, Foreign Affairs, March/April 2002, p. 18-20)
O Iraque entrou na alça de mira de George Bush há mais de um ano. Em janeiro de 2002, quando bombas estadunidenses ainda caíam sobre o Afeganistão, o discurso sobre o Estado da União de Bush definiu os contornos da segunda fase da “guerra ao terror”. O foco, agora, passavam a ser Estados suspeitos de desenvolverem programas de armas de destruição em massa: Iraque, Irã e Coréia do Norte na linguagem pueril de Bush, integrantes do “eixo do mal”. Alguns meses depois, a Doutrina Bush adquiriu forma definitiva, com a proclamação de seu suposto direito de promover “ataques preventivos” contra esses Estados.
“Não permitiremos que os regimes mais perigosos do mundo nos ameacem com as armas mais destrutivas”, explicou Bush. As referências ao Irã e à Coréia do Norte jamais encobriram o alvo principal: o Iraque de Saddam Hussein. A decisão de atacar o Iraque e substituir a ditadura de Hussein por um protetorado informal dos Estados Unidos já estava tomada. A expulsão dos inspetores da ONU pelo regime de Bagdá, ocorrida em 1998, servia como luva para os propósitos de Washington.
Sob pressão da opinião pública e da comunidade internacional, os Estados Unidos procuraram agir com a cobertura do Conselho de Segurança (CS) da ONU.
Uma resolução do CS exigindo que Bagdá admitisse a retomada do regime de inspeções foi aceita por Saddam. A equipe de inspetores procurou, sem sucesso, as “armas fumegantes” do Iraque e não encontrou sequer indícios convincentes de programas de produção de arsenais químicos, biológicos ou nucleares. Enquanto isso, há três meses, a Coréia do Norte anunciava impunemente a ruptura dos acordos que congelaram o seu programa nuclear. Assim, a campanha de propaganda de Washington, destinada a legitimar o ataque contra o Iraque, revelou-se farsa .
A desmoralização dos argumentos de Washington repercutiu sobre a opinião pública, especialmente na Europa, provocando manifestações impressionantes contra a “guerra de Bush”. Confrontado com a derrota iminente nas eleições alemãs, o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder prometeu ao eleitorado que o país ficaria fora da guerra e ganhou um novo mandato. França e Alemanha uniram-se e desafiaram Bush e o britânico Tony Blair, ameaçando bloquear as decisões militares da OTAN, abrindo a maior crise na história da Aliança Atlântica.
França e Rússia anunciaram a disposição de exercer o direito de veto no CS.
Nada disso foi capaz de deter os Estados Unidos. Claro: Bush escolheu o Iraque pois o Golfo Pérsico concentra as reservas estratégicas de petróleo do planeta. O Iraque controla cerca de 10% menos, apenas, que a Arábia Saudita. A transformação do país em protetorado informal dos Estados Unidos conferirá à hiper-potência uma posição invejável na geopolítica contemporânea do petróleo . O petróleo é uma explicação correta, mas insuficiente, para a decisão de Bush. Em 1991, George Bush pai tinha o caminho livre para marchar até Bagdá, mas preferiu interromper a ofensiva e conviver com o regime de Hussein. Sob Bill Clinton, Washington manteve o Iraque sob embargo permanente e bombardeios eventuais, mas nunca acenou com uma guerra total.
A novidade é a “guerra ao terror” e suas repercussões no equilíbrio estratégico do Golfo Pérsico. O verdadeiro perigo, do ponto de vista dos Estados Unidos, reside na instabilidade crescente da Arábia Saudita. Esse é o motivo da pressa de Bush.
Crise da monarquia saudita
A bandeira da Arábia Saudita exibe, sobre o fundo verde, uma larga inscrição em árabe com os dizeres “Alá é o único Deus e Maomé é seu profeta”. Sob a inscrição, aparece um sabre horizontal. Ela representa a aliança entre a pena (a sabedoria religiosa) e a espada (o guerreiro da fé). Essa aliança originou o Estado saudita, o único no mundo produzido pela jihad (a “guerra santa”).
No século XVIII, o clã guerreiro dos Al-Saud, baseado na Arábia central, firmou uma aliança com a seita islâmica puritana dos Wahabitas. Os Wahabitas conclamaram a jihad e recrutaram os ikhwan (“irmãos”), guerreiros fanáticos que serviram como linha de frente da cavalaria dos Al-Saud.
Numa noite enluarada de 1902, Abdul Aziz ibn Saud, à frente de quarenta guerreiros, tomou Riad e fundou a Arábia Saudita. Era o início de uma guerra de trinta anos pela unificação geopolítica da península, cujo ponto alto foi a tomada das cidades santas de Meca e Medina, em 1925.
Mas os fanáticos ikhwan recusaram-se a abandonar o expansionismo jihadista e, ignorando um tratado de fronteiras firmado por ibn Saud, invadiram cidades xiitas do sul do Iraque. Os britânicos, que governavam o Iraque, responderam com um bombardeio aéreo. Diante da contestação ao seu poder, ibn Saud ordenou um massacre contra os ikhwan, que foram dizimados sob o fogo de metralhadoras, em Sabila, em 1929.
A aliança entre a espada e a pena continua a sustentar o Estado saudita. Os Al-Saud – cerca de 25 mil, entre os quais 5 mil príncipes – têm o trono. O monarca exerce o poder de modo absoluto, mas não pode mudar a sharia (lei corânica) – que funciona como legislação nacional ou interferir sobre os costumes religiosos. A seita Wahabita controla as esferas da religião, da educação e das comunicações.
Osama Bin Laden é um ikhwan contemporâneo.
Ele surgiu como liderança combatendo a ocupação soviética do Afeganistão, na década de 80. Foi financiado pela CIA e por milionários sauditas. Depois da retirada soviética, voltou para a Arábia Saudita, mas rompeu com a monarquia em 1991, em virtude da aliança com os infiéis estadunidenses durante a Guerra do Golfo. A ruptura foi negociada: Bin Laden comprometeu-se a não agir na Arábia Saudita; a monarquia, a ignorar as conexões entre a sua organização terrorista e a seita Wahabita.
O ikhwan estabeleceu-se, com a sua Al-Qaeda, no Afeganistão, sob a proteção do Taleban. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram financiados por sauditas, através de algumas das inúmeras organizações islâmicas internacionais de caridade. Dos dezenove terroristas envolvidos nos atentados, quinze eram de origem saudita. Entre os republicanos de linha dura que cercam Bush, a monarquia saudita chegou a ser apontada como um câncer a ser extirpado.
Sob pressão da Casa Branca, começa a ceder o material que sustenta a aliança entre os Al-Saud e os Wahabitas. A família reinante só evitaria a cisão interna se voltasse as costas para Washington, engajando-se abertamente no caminho da jihad. Colhido entre as exigências contraditórias dos Estados Unidos e dos Wahabitas, o Estado saudita pende sobre o abismo. A eventual dissolução do Estado fundado por ibn Saud lançaria o Golfo Pérsico no desconhecido, ameaçando os fluxos de petróleo que irrigam a economia mundial. É por isso que Bush avança sobre Bagdá: a campanha do Iraque é o primeiro passo para a submissão direta de toda a região do Golfo Pérsico.
UMA GEOPOLÍTICA CONTEMPORÂNEA DO PETRÓLEO
Os preços do barril de petróleo conheceram dois “choques” acentuados, em 1973 – com a Guerra do Yom Kippur, entre Israel e os países árabes – e 1979 – com a Revolução Iraniana. Em 1981, quando o barril atingia a sua mais elevada cotação histórica, o Golfo Pérsico concentrava quase 54% das reservas mundiais comprovadas. A Arábia Saudita, isoladamente, abrigava um quarto das reservas mundiais, mas o Iraque detinha apenas cerca de 5%.
Os preços recordistas, a instabilidade política no Oriente Médio e a insegurança gerada pelo controle da OPEP sobre o mercado mundial do petróleo estimularam a prospecção de reservas fora do Golfo Pérsico. Mas, embora as reservas mundiais comprovadas tenham crescido em cerca de 60%, a dependência estrutural em relação ao Golfo Pérsico aumentou. Atualmente, o Golfo Pérsico concentra quase 64% das reservas mundiais. A participação da Arábia Saudita não sofreu mudança significativa. Mas a participação do Iraque dobrou, atingindo 10,5% do total .
A distribuição da produção de petróleo não se confunde com a das reservas, pois depende das políticas nacionais e, no caso dos integrantes da OPEP, dos acordos de cotas firmados no interior do cartel. Em conjunto, os países do Golfo Pérsico respondiam por cerca de 37% da produção mundial em 1973 e, atualmente, respondem por 30%. O contraste entre a distribuição das reservas e a participação na produção revela que, provavelmente, o Golfo Pérsico continuará extraindo vastas quantidades de petróleo quando as reservas do resto do mundo se aproximarem do ponto de esgotamento.
O esgotamento das reservas do resto do mundo é, ainda, uma perspectiva distante. Contudo, o problema principal não está na disponibilidade física de petróleo, mas no preço de extração. Os campos de petróleo do Golfo Pérsico são pouco profundos, assegurando baixos custos de produção. No resto do mundo, as reservas próximas à superfície já são escassas e devem se esgotar em poucas décadas.
Quando isso acontecer, a dependência mundial em relação a alguns poucos países do Golfo Pérsico se evidenciará de modo crítico. Esses países são, pela ordem das reservas, Arábia Saudita, Iraque, Irã, Emirados Árabes Unidos e Kuwait.
O consumo mundial de petróleo atingiu cerca de 3,57 bilhões de toneladas no ano 2000. Desse total, pouco mais de 2 bilhões de toneladas – ou quase 57% – são constituídas por petróleo importado, o que revela a importância extraordinária do comércio internacional para o consumo desse produto. As importações mundiais de petróleo apresentam perfil de distribuição tão desigual quanto as reservas. Os Estados Unidos, isoladamente, concentram um quarto das importações mundiais – mais que o dobro do segundo importador, que é o Japão.
Ou seja: os Estados Unidos estão para as importações mundiais de petróleo como a Arábia Saudita está para as reservas comprovadas.
O maior importador de petróleo é, simultaneamente, o segundo maior produtor – atrás, apenas, da Arábia Saudita. Os Estados Unidos consomem nada menos que 865 milhões de toneladas anuais, ou um quarto do consumo global. O petróleo importado assegura quase 60% do consumo americano.
A sede insaciável da superpotência por petróleo não reflete apenas o tamanho da economia americana, mas sobretudo o elevado consumo energético per capita, que atinge cerca de duas vezes o de outras potências econômicas como o Japão, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha. Não é casual, portanto, que a administração Bush tenha retirado os Estados Unidos do Protocolo de Kyoto, que se destina a limitar as emissões de “gases de estufa”.
A economia e a sociedade americanas estão estruturadas pelo consumo intensivo de energia. Esse traço distintivo se manifesta nos padrões de consumo. Um exemplo: o sucesso estrondoso dos utilitários esportivos beberrões de gasolina, que são responsáveis por nada menos que 50% das vendas de automóveis no país.
Mas o fundamento do consumo intensivo de energia são as políticas públicas que sustentam – às custas de subsídios indiretos e quase nenhuma tributação – preços artificialmente baixos de eletricidade e derivados de petróleo. No caso dos combustíveis para veículos automotores, os preços praticados nos Estados Unidos contrastam não só com os de outros países desenvolvidos, mas até mesmo com os de países subdesenvolvidos como a Coréia do Sul, o México e a Índia .
O controle geopolítico sobre as fontes estratégicas de suprimento de petróleo é uma prioridade absoluta para os Estados Unidos.
É, sob a perspectiva de Washington, algo tão importante quanto a capacidade de desenvolver tecnologias de ponta em setores como a informática, a biotecnologia e a indústria aeroespacial. É por isso que os grandes “reservatórios de petróleo” do Golfo Pérsico como a Arábia Saudita e o Iraque – constituem o foco principal da política externa da administração Bush.
O QUE A CORÉIA TEM QUE O IRAQUE NÃO TEM?
Enquanto os inspetores da ONU procuravam, com lupas, algum indício de armas de destruição em massa no país de Saddam Hussein, o regime norte-coreano anunciava a reativação da central nuclear de Yongbion, que poderia fornecer material para ogivas nucleares, e declarava-se disposto a prosseguir a construção de mísseis capazes de atingir o Japão e, eventualmente, a costa oeste dos Estados Unidos.
O desafio coreano serviu para despir George Bush. O chefe guerreiro do deserto, um tanto perplexo, “explicou” que, no caso da Coréia do Norte, o caminho a seguir é o da diplomacia. Mas, afinal, o que a Coréia tem que o Iraque não tem, além de arsenais de armas de destruição em massa?
A Coréia do Norte tem um vizinho poderoso a China que não admite uma “guerra americana” no seu quintal. Tem, também, nos seus arredores, potências econômicas aliadas de Washington – o Japão e a Coréia do Sul – que tremem diante dos cenários de mísseis voando sobre suas cidades e de fluxos incontroláveis de refugiados deixando o teatro de guerra.
Mais importante ainda é o que a Coréia do Norte não tem: petróleo. Isso, claro, é o que está em jogo na guerra de Bush.
Boletim Mundo Ano 11 n° 1
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