quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

30 ANOS DA LEI DA ANISTIA: HÁ MOTIVOS PARA COMEMORAR?

Glenda Mezarobba

Lei da Anistia promoveu a conciliação política na transição do encerramento da ditadura militar, mas não puniu torturadores e não assegurou o direito à verdade.
Há três décadas, no 28 de agosto, entrou em vigor a Lei 6.683, a Lei da Anistia.
Encaminhada ao Congresso Nacional pelo general João Baptista Figueiredo, o último presidente do ciclo militar inaugurado em 1964. A legislação inseria-se em um conjunto de estratagemas armados pelo general Golbery do Couto e Silva, o arquiteto da abertura política, para, entre outras coisas, acabar com o bipartidarismo.
A anistia começou a ser reivindicada no país a partir das primeiras punições arbitrárias, logo após o golpe de Estado, em 1964, e ganhou força – e as ruas – nos últimos dois anos da década de 1970. Junto com ela, os movimentos da sociedade civil exigiam a apuração dos crimes cometidos pelos agentes das forças de segurança, a revelação da verdade, a volta do Estado de Direito e da democracia, o respeito aos direitos humanos.
A lei representou um marco no processo de abertura do país. Mas não atendeu às principais reivindicações de perseguidos políticos e familiares das vítimas.
A anistia foi promulgada nos termos definidos pela ditadura, com o objetivo principal de garantir impunidade aos violadores de direitos humanos – ainda que a tortura e outros graves crimes não constem do texto da lei. Não foi “ampla, geral e irrestrita” como exigiam, por exemplo, presos políticos que fizeram greve de fome, mostrou-se mais eficaz para integrantes do aparato de repressão do que para os perseguidos políticos e revelou-se incapaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o golpe. A anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime, que haviam sido cassados, banidos, exilados ou estavam encarcerados. A legislação, que continha a idéia de apaziguamento, permitiu que certo impasse fosse superado e, dessa forma, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática.
Embora a lei previsse a hipótese de retorno ou reversão ao serviço ativo de servidores civis e militares afastados pelo arbítrio, na prática não foi exatamente o que aconteceu. A essa pendência, de caráter mais trabalhista, permaneceram relacionadas várias outras reivindicações de perseguidos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos. Olhando-se retrospectivamente, tem-se claro, hoje, que no Brasil a anistia singularmente iniciou um processo de acerto de contas do Estado com as vítimas daquele período. Desde então, e norteado por legislação federal, tal processo vem se desenvolvendo de maneira assimétrica, ao privilegiar somente uma das quatro obrigações que os Estados têm ao lidar com graves violações em massa de direitos humanos, na passagem para a democracia: o dever de pagar reparações.
O segundo momento desse processo pode ser localizado em 1995, com a entrada em vigor da Lei 9.140 (Lei dos Desaparecidos), quando o Estado reconheceu sua responsabilidade  pelas mais graves violações de direitos humanos cometidas no período e, em alguma medida, procedeu ao resgate moral de vítimas do arbítrio. Sem abandonar o caráter de conciliação atribuído à legislação de anistia, avançou na busca por justiça, explicitada no pagamento de indenizações, ainda que de valores simbólicos, aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. O mesmo caráter de harmonização foi mantido com a sanção da Lei 10.559 e a instalação da Comissão da Anistia, em 2001, que ampliou a dimensão da anistia com a possibilidade de o Estado proceder à reparação econômica de ex-perseguidos políticos que a Lei da Anistia não conseguiu reabilitar.
Permanecem ainda não cumpridos os deveres de justiça (como se sabe, nenhum torturador jamais foi processado e condenado, no país) e de reforma das instituições, sobretudo o sistema de segurança, que não apenas mantém em seus quadros agentes ligados à repressão como há anos assiste à disseminação de práticas violentas.
O dever da verdade tem sido parcialmente contemplado, com a abertura de alguns arquivos, a recente instalação de espaços de memória e a publicação oficial, em 2007, do livro Direito à memória e à verdade, sobre as vítimas fatais da ditadura militar. Continua desconhecido, no entanto, o conteúdo dos arquivos das Forças Armadas. E segue ignorado o paradeiro de desaparecidos políticos.
Passados 30 anos da aprovação da Lei da Anistia, parece evidente que o processo de acerto de contas iniciado com tal legislação segue em desenvolvimento. Da mesma forma, muita coisa mudou desde então, inclusive com a expansão das fronteiras legais da anistia. Mas até agora não foram ultrapassados dois limites impostos em 1979: o que tem impossibilitado que se avance na revelação da verdade, sequer enunciado na primeira lei, mas parte integrante do acordo que envolveu a transição nacional; e o que trata dos chamados crimes conexos e desde a ditadura vem sendo usado como uma espécie de “mantra da impunidade”, ao garantir a interpretação da lei nos termos pensados pelos militares.
Entretanto, pela primeira vez, em três décadas, existe uma possibilidade real de isso mudar. Ainda neste semestre, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve apreciar uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, referente à anistia, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Isso significa que caberá ao STF decidir se a “lei do perdão e do esquecimento” se aplica mesmo aos crimes cometidos pelos agentes da repressão. No Direito Internacional já está bem estabelecido que um Estado pode conceder anistia para indivíduos que violaram suas leis, mas nunca quando estes indivíduos agiram em nome do próprio Estado. A Organização dos Estados Americanos (OEA), que reconhece a validade de leis de anistia promulgadas por instituições eleitas democraticamente, não admite como legítimas as chamadas auto-anistias sancionadas por regimes autoritários, como foi o caso do Brasil. Segundo essa interpretação, agentes da repressão que torturaram, mataram e desapareceram com os corpos de suas vítimas estariam excluídos de leis de anistia e deveriam responder criminalmente pela violência cometida.

Boletim Mundo n°4 Ano 17

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