O “sonho americano”, de prosperidade e oportunidades, dissolve-se em aprofundamento das desigualdades sociais, baixos salários e trabalho precário. E isso já virou assunto político de primeira linha.
Os Estados Unidos estão se tornando uma sociedade de classes. A constatação, uma delas entre muitas outras de igual conteúdo, partiu da The Economist, publicação inglesa liberal – ou seja, conservadora em termos europeus.Na Europa, mesmo a direita aceitou a implantação de sistemas de bem-estar social que suprimiram a quase totalidade da pobreza sem traumas revolucionários. Embora acuados pelo mandamento maior da globalização, a competitividade selvagem, estes sistemas procuram meios de sobrevivência, há rachaduras, mas ainda não se pode falar em falência. Já nos Estados Unidos, alarga-se o fosso entre ricos e pobres, num cenário que apresenta semelhanças com o do Terceiro Mundo.
Foi o que disse a The Economist, em tom de repreensão.
A própria mídia americana tem tratado do assunto.
Mesmo George W. Bush, que entrou na Casa Branca disposto a acabar por completo com o “New Deal”, o já danificado contrato social americano dos anos 30, criado nos tempos duros de depressão e desemprego, se viu constrangido a admitir que o problema é serio. “Acabou o mito da mobilidade social”, escreveu um colunista do New York Times. Reportagem de primeira página do Los Angeles Times descreveu como a briga por espaços no mercado de trabalho mantém na ativa trabalhadores idosos, por necessidade, sem redes de proteção social, bloqueando o acesso dos mais jovens. Nada de mobilidade: sedimentação de classes.
No mesmo jornal, na seção de negócios, saiu pesquisa mostrando que os executivos das 100 maiores empresas da Califórnia embolsaram, num ano, US$ 1,1 bilhão, 20% mais do que no ano anterior. O contingente dos assalariados conseguiu, no mesmo período, minguados 2,9% a mais. O New York Times publicou uma série de reportagens a respeito intitulada “Class Matters” (“Classe social faz diferença”). Nelas, está escrito: “Não é nenhum segredo que só têm aumentado as diferenças entre pobres e ricos americanos. É pouco conhecida, no entanto, a extensão dos avanços dos mais ricos”.
Os números se encarregam de mostrar a diferença. Entre 1950 e 1970 os de cima, representando 0,01% da população, conseguiram ganhar US$ 162 a mais em relação a cada dólar adicional faturado por 90% dos americanos. Entre 1990 e 2002, os US$ 162 dispararam céu acima, indo a US$ 18 mil. Desfaz-se “sonho americano”: a oportunidade aberta a todos de ascender socialmente. Há uma sedimentação de classes e uma tendência à degradação das condições dos pobres. Vai para o armário de relíquias a idéia de “expansão de oportunidades” e de prosperidade amplamente repartida. O cenário é de salários baixos, ausência de aposentadorias, de férias e de seguro médico.
“Posso ter a aparência de classe média, mas não sou, meu barco está afundando rapidamente”: é a declaração de Mark McCellan reproduzida na “Class Matters”. Não se trata de um “João-ninguém”. McCellan exercia um cargo de gerente na Kaiser Aluminum. A política econômica de Bush “intensifica as dores”, segundo o autor das reportagens, David Kay Jonhston. “Os pobres são as novas celebridades dos Estados Unidos”, afirma com ironia o colunista David S. Broder, do Washington Post, depois que o próprio Bush decidiu não mais ignorar o assunto.
Foi num discurso a respeito das desgraças que a natureza e os homens impuseram a New Orleans. “Essa pobreza tem raízes na história de discriminação racial, que impediu o acesso de gerações de americanos às oportunidades que os Estados Unidos oferecem”, falou um Bush quase irreconhecível.
Broder lembrou, num ato de justiça, que não só os republicanos, do partido de Bush, têm responsabilidades nessa tragédia. Lyndon Johnson, que assumiu a presidência com a morte de John Kennedy, em 1963, lançou uma “guerra contra a pobreza”, o seu Programa da Grande Sociedade, mas acabou colocando mais dinheiro na Guerra do Vietnã. Bill Clinton (1993-2000) colocou na mesa, com farta publicidade, o seu “diálogo nacional sobre raças”.
Afogou-se numa torrente de palavras. Bush, afinal, falou sobre “renda não igualitária”. Aparentemente, tratou-se de outro gesto presidencial relacionado com o triunfo da oposição democrata nas eleições parlamentares de 2006, que transferiu à oposição o controle do Congresso.
Na agenda democrata está o aumento do salário mínimo, entre outras medidas de cunho social.
Um deputado democrata, Barney Frank, registrou que “eles”, o pessoal da Casa Branca, afinal reconhecem a “infelicidade dos eleitores com as desigualdades neste país”. Frank é presidente de comissão da Câmara dos Deputados. “Tentaram negar, mas as eleições já não permitem. Espero que parem de negá-lo”, bradou Frank em tom de guerra. O Congresso tem meios próprios de investigação, com selo bipartidário. É o caso do Congressional Budget Office, cujas conclusões não são questionadas pelos republicanos. Segundo seus pesquisadores e consultores, nos anos 70 os 20% mais ricos ficavam com 45,4% da renda nacional. Em 2004, já se apropriavam de 53,5%. Os do fundo do poço, inversamente, caíram de 5,8% para minguados 4,1%.
Sonho americano?
Boletim Mundo n° 2 Ano 15
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