quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

COMEÇOU A SEGUNDA REVOLUÇÃO IRANIANA

(...) O ISLÃ, COMO TODAS AS GRANDES RELIGIÕES PIEDOSAS, TEM O POTENCIAL DE RESPONDER AOS DILEMAS E PERPLEXIDADES DOS SERES HUMANOS, EM DIFERENTES CIRCUNSTÂNCIAS E ÉPOCAS. MAS A TRAGÉDIA EMERGE ONDE UMA INTERPRETAÇÃO HUMANA DA RELIGIÃO APRESENTA-SE COMO A TOTALIDADE DA RELIGIÃO E QUANDO, INDIFERENTE ÀS MUDANÇAS QUE OCORREM NA VIDA, AS VELHAS VESTIMENTAS MUITO ESTREITAS PARA O CORPO DAS ALMAS E VIDAS DAS PESSOAS SÃO IMPOSTAS A ELAS COMO UM EDITO SAGRADO. (...) SÃO NUMEROSOS OS EXEMPLOS AO LONGO DA HISTÓRIA DO CONFRONTO ENTRE O QUE SE ASSUME SER A RELIGIÃO E O PENSAMENTO, QUE TEM UMA NATURAL INCLINAÇÃO PARA A LIBERDADE E CRESCE NUM AMBIENTE LIVRE.
(MOHAMMAD KHATAMI, CONFERÊNCIA PERANTE A SOCIEDADE ISLÂMICA DA AMÉRICA DO NORTE, CHICAGO, 2 DE SETEMBRO DE 2006)

Quando mais de um milhão de manifestantes tomaram as ruas de Teerã, a 15 de junho, três décadas depois da Revolução Iraniana de 1979, ficou claro que uma época se encerrava e  uma outra se iniciava. A República Islâmica instalada no antigo Império Persa pode não desabar nos próximos meses, ou até anos, mas os componentes republicano e teocrático do Estado iraniano separaram-se irreversivelmente – e a harmonia não será restaurada.
Tudo começou com um processo eleitoral pouco inspirador. Sob a persuasiva influência do Líder Supremo, o aiatolá Ali Khamenei, o ex-presidente reformista Mohammad Khatami desistiu de concorrer, dando lugar ao pragmático e apagado Hossein Mousavi. Nada indicava que o candidato oposicionista seria capaz de desafiar seriamente a prevista reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, o radical populista patrocinado discretamente por Khamenei.
Mas, aos poucos, os comícios de Mousavi encheram-se de jovens e mulheres, não só na capital como nas cidades do interior, e se converteram em focos cada vez maiores de contestação do autoritarismo do regime e dos abusos da Guarda Revolucionária e da “polícia de costumes”.
O oposicionista ganhou o suporte de Khatami e dos assessores do antigo presidente, bem como de um outro ex-presidente, Hashemi Rafsanjani, que chefia a Assembléia de Especialistas, o órgão encarregado de escolher o Líder Supremo.
Nas ruas e nas instituições de Estado, uma cisão irreparável se desenhava.
Na hora da apuração, todos esperavam um resultado dividido mas, com velocidade surpreendente, um comitê eleitoral controlado por partidários de Ahmadinejad anunciou a reeleição do presidente por larga margem. Segundo os resultados oficiais, ele teria conquistado 24 milhões de votos, contra 13 milhões de Mousavi. O oposicionista denunciou, de imediato, uma fraude eleitoral de proporções quase inconcebíveis. De fato, uma fraude “normal” não poderia inverter a direção de mais de 15% dos votos.
A acusação do oposicionista é de que o regime promoveu uma “mágica”. No lugar da totalização dos votos, o comitê simplesmente teria lançado resultados finais arbitrários. Uma série de indícios inconclusivos sustentam a acusação.
Mousavi teria perdido em todos os lugares, inclusive em sua região natal, por margem similar de votos. Mehdi Karroubi, um terceiro candidato, também oposicionista, teria conseguido meros 330 mil votos, contra mais de 5 milhões quando concorreu em 2005. Os partidários de Mousavi viram cortados os serviços de telefonia e mensagens de texto com os quais acompanhariam as apurações.
Logo, a revolta popular adquiriu dinâmica própria, escapando ao controle das lideranças políticas e ameaçando a ordem autoritária dos clérigos. Os distúrbios espalharam-se como um rastilho de pólvora, para além dos limites da capital. Mas a polícia e a Guarda Revolucionária reagiram violentamente, obedecendo ao comando de Khamenei. “Ouvi disparos repetidamente enquanto as pessoas entoavam Allahu Akbar (Deus é grande) na região de Niavaran”, testemunhou um habitante de Teerã no 15 de junho, enquanto helicópteros da polícia sobrevoavam a capital, milicianos alvejavam manifestantes e jornalistas enganavam a censura transmitindo fotos via Twitter. A imprensa estrangeira foi proibida de cobrir os protestos, altas lideranças oposicionistas receberam ordens de prisão e, dias depois, as manifestações perderam intensidade. Contudo, nada será como antes.
O Irã almejou ser Ocidente entre 1925 e 1979, durante a dinastia Pahlevi. Num ponto intermediário dessa trajetória, em 1953, um complô tramado nos Estados Unidos derrubou o primeiro-ministro nacionalista Mohammed Mossadegh, que contestava o controle ocidental sobre as reservas petrolíferas do país. Então, o xá (imperador) Reza Pahlevi alinhou-se com Washington e consolidou um regime autocrático apoiado no serviço secreto. A Revolução Iraniana de 1979 não foi unicamente, como diz a lenda, um movimento de reação contra o Ocidente e o cosmopolitismo moderno. O levante popular que derrubou o xá e destruiu a monarquia teve um componente desse tipo, personificado pela liderança carismática do aiatolá Ruhollah Khomeini. Mas teve um outro componente, nacionalista e democrático, que reivindicava a restauração da Constituição de 1906, expressão do projeto histórico de conciliação entre o Islã e as liberdades políticas numa Pérsia em busca do seu lugar na modernidade.
República Islâmica – os dois termos do nome do Estado instaurado em 1979 exprimiam o equilíbrio entre os  componentes republicano e teocrático da Revolução.
Mas, na cena política iraniana, o equilíbrio durou apenas pouco mais de um ano, até a deposição parlamentar de Bani Sadr, o primeiro presidente do novo Irã.
Depois, o componente teocrático tornou-se hegemônico, sufocando os anseios democráticos originais.
Contudo, nada é simples no Irã. As instituições políticas do país continuam a refletir, de modo enviesado, a aliança que fez a Revolução. O poder de Estado, derivado da vontade divina, concentra-se no Líder Supremo, que é assessorado pelo Conselho de Guardiães.
Uma Assembléia de Especialistas, constituída por juristas islâmicos eleitos a partir de uma lista elaborada pelo Conselho de Guardiães, tem a prerrogativa de escolher o Líder Supremo. Por outro lado, o poder de governo, derivado da vontade popular, concentra-se no presidente e no parlamento. A soberania do povo, porém, é limitada pela prerrogativa do Conselho de Guardiães de vetar candidaturas.
A segunda Revolução Iraniana, deflagrada no 15 de junho, é uma revolução na revolução. Uma larga parcela da população urbana reivindica a soberania popular integral.
A força do movimento escava um golfo entre a elite religiosa, separando os conservadores dos reformistas. A repressão violenta ameaça esmagar o componente republicano do Estado, destruindo a harmonia instável que perdurou por três décadas. O Irã está diante de uma encruzilhada: não pode seguir sendo uma república e uma teocracia.
A crise aberta na eleição presidencial tende a se prolongar.
Mas não se fechará sem um desenlace decisivo.

Boletim Mundo n° 4 Ano 17

Nenhum comentário:

Postar um comentário