Em 1990, fiel à sua interpretação original, Lewis escreveu um ensaio no qual cunhou a expressão “choque de civilizações”, que seria apropriada por Samuel Huntington e convertida em credo político dos neoconservadores americanos. Não por acaso, nos Estados Unidos, a chamada Doutrina Bush foi batizada, no ambiente acadêmico, como Doutrina Lewis.
O historiador opera com categorias fixas, que desafiam a história. Na sua visão, Islã e Ocidente colidem desde o século VII, quando foi erguido um Império Islâmico, sobre a base das conquistas de Maomé e dos quatro primeiros califas. Na sua perspectiva, Islã e Ocidente configuram entidades definidas pela cultura e a salvação do primeiro residiria na negação da sua “essência”, pela adoção dos valores do segundo. O Ocidente, sob os impactos da Reforma Protestante e do Iluminismo, adotou o individualismo e aprendeu o significado da liberdade. O Islã, isolado dessas revoluções mentais, seria uma relíquia, incapaz de se desprender da vida comunitária tradicional e do domínio da religião sobre as esferas da política e do direito.
“A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico” – a fórmula de Lewis distorce a compreensão tanto do Ocidente quanto do Islã. A doutrina do direito de resistir não emanou magicamente do Iluminismo, pois já estava contida no Cristianismo original. O Islã original também expressou a legitimidade da revolta, que se dirigia contra os senhores da guerra da península arábica. No Corão, está escrito que é obrigação do fiel “combater pela causa daqueles que, por serem fracos, são homens, mulheres e crianças maltratados (e oprimidos), e clamam a Nosso Deus que os resgatem dessa cidade dos opressores”.
O Islã de Lewis é uma caricatura despida de história e tensão. O orientalista ignora, propositalmente, os reformadores que, ao longo de séculos, contestaram os dogmas emanados de uma adesão literal aos textos religiosos. Na Pérsia, em 1906, uma revolução constitucionalista implantou um regime político baseado na liberdade, que foi destruído precisamente pela dinastia ocidentalizante dos Pahlevi. É essa tradição que inspira uma corrente de reformistas no Irã reinventado pela revolução de 1979.
O governo da elite religiosa instalado pela Revolução Iraniana, há três décadas, só na aparência representava uma restauração da tradição islâmica. No passado, durante séculos, os ulemás (sábios corânicos) imaginaram que deviam exercer uma influência sobre os dirigentes políticos, mas não pretenderam substituí-los no poder de Estado. Como explica Albert Hourani, “era perigoso ligar os interesses eternos do Islã ao destino de um governante transitório do mundo”.
Mas isso é exatamente o que acontece hoje, num Irã dilacerado pela aliança entre o Líder Supremo e um presidente demagogo e autoritário.
O ex-presidente reformista Mohammad Khatami alertou muitas vezes para o risco de sufocamento da liberdade pelo fundamentalismo religioso. O controle do parlamento e da própria presidência pelas instituições do poder teocrático envenena as relações políticas em toda a sociedade iraniana. As violências da Guarda Revolucionária e da “polícia de costumes” contra jovens, mulheres e dissidentes em geral exprimem o apodrecimento de um sistema de poder que resiste à modernidade. Mas a reação popular a esse sistema não representa uma ruptura com o Islã.
As manifestações oposicionistas que acompanharam o processo eleitoral iraniano evidenciam uma clara consciência do “direito de resistir a um mau governo”. A idéia de liberdade não é um monopólio do Ocidente.
Boletim Mundo n° 4 Ano 17
Nenhum comentário:
Postar um comentário