domingo, 1 de janeiro de 2012

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica censitariamente a população brasileira nas categorias “branco”, “preto”, “pardo”, “amarelo” e “indígena”.
Segundo os dados do último censo, os “pretos” representam cerca de 6% da população total e os “pardos”, cerca de 42%.
Nada disso tem significado racial. A espécie humana não se divide em raças e os geneticistas já demonstraram que mais de 80% da população brasileira tem significativa ancestralidade africana, o que significa que a maior parte dos que se declaram “brancos” também são, em alguma medida, “afrodescendentes”.
O contrário é, naturalmente, verdadeiro. Entre os “pretos”, há os que apresentam alguma ancestralidade européia ou indígena. Mais ainda entre os “pardos”, um rótulo de mau gosto que, entre outros significados, quer dizer “branco sujo”, aplicado pelo censo a todos os que, criativamente, inventam expressões para designar tons de pele intermediários entre o “branco” e o “preto”.
Toda essa complexa história de miscigenações não serve às finalidades da Secretaria da Igualdade Racial (Seppir), o órgão governamental engajado na elaboração de propostas de leis raciais. A Seppir, sobretudo, está em guerra contra a existência dos “pardos”, esses quase-brancos, quase pretos, quase-índios da geléia geral brasileira. Ela insiste em ignorar o censo e o princípio da auto classificação, reunindo “pretos” e “pardos” numa “raça negra”, que representaria 48% dos brasileiros.
Essa operação já produziu uma frase feita, segundo a qual o Brasil possui a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria. A Seppir vai mais longe e, para enfatizar uma suposta base biológica da sua “raça negra”, designa os “negros” como “afrodescendentes”.
O termo surgiu recentemente e é uma importação política. A sua origem encontra-se nos Estados Unidos, o berço das políticas de ação afirmativa. Foi lá que, a partir da década de 1970, por iniciativa da Fundação Ford e durante o governo do republicano Richard Nixon (1969-74), surgiram embrionariamente as cotas raciais nas universidades.
“Afrodescendente” não tem, como se observa, nenhum significado biológico. Não tem também um significado cultural preciso, pois os africanos que, na condição de escravos, cruzaram o Oceano Atlântico e se fixaram no Brasil são originários de muitas “Áfricas”. É que não há, em nenhum sentido, uma cultura africana, mas inúmeras. África é um singular que, como Ásia, Europa ou América, remete à pluralidade.
Antes de tudo, é preciso distinguir dois espaços macro-regionais africanos: África do Norte e África Subsaariana. A primeira é formada, integralmente, por cinco países, embora outros cinco possam adicionados, parcialmente, a esse conjunto. É uma África árabe- muçulmana, fruto da ocupação levada a cabo inicialmente pelo império árabe (séculos VII ao XIII) e, posteriormente, pelos turco-otomanos (séculos XIII ao XIX). A dupla herança formada pelo Islã e pela língua árabe aproximam, cultural e socialmente, a África do Norte do Oriente Médio. Essa África não estabeleceu relações profundas com o Brasil.
A África Subsaariana, muito extensa e variada, engloba mais de 40 Estados.
Identificada como a “África Negra” pelas potências imperiais do século XIX, apresenta-se como um mosaico humano e cultural e uma babel lingüística. Ela é um fruto da justaposição de dinâmicas etno-culturais autóctones, de heranças deixadas pelo processo de ocupação colonial europeu e da influência árabe-islâmica.
Há muitas “Áfricas” ao sul do Saara.
Muitos tentaram estabelecer o número exato de grupos étnicos do continente africano – e fracassaram. Não há concordância quanto ao número de etnias ou de línguas existentes no continente. Uma solução foi tentar agrupar a diversidade em grandes troncos ou ramos. Mas não há consenso nem sequer sobre uma classificação geral.
No continente africano existem pelo menos 1500 línguas.
Algumas delas possuem milhões de locutores; outras são faladas apenas por poucos milhares de indivíduos.
Do ponto de vista étnico, alguns especialistas enumeram mais de meia centena de etnias, enquanto outros identificam mais de um milhar delas. Entre as etnias africanas, algumas congregam milhões de membros; outras, apenas alguns milhares. Países como a Nigéria e a República Democrática do Congo são constituídos por centenas de grupos étnicos que, inclusive, se espalham por países vizinhos. A arbitrariedade das fronteiras traçadas pelo colonizador europeu adicionou complexidade e tensão, fomentando guerras étnicas. Mas uma África Subsaariana na qual as fronteiras étnicas representassem fronteiras políticas nacionais abrigaria certamente mais de 200 Estados.
Uma célebre e radical generalização divide a África Subsaariana em dois grandes ramos étnicos: sudaneses e bantos. Os primeiros aparecem com grande expressão na porção ocidental do continente, circundando a região do Golfo da Guiné. Os bantos estão presentes em extensas áreas do centro-sul e do leste africanos. Indivíduos desses dois grupos foram trazidos como escravos para o Brasil.
Do grupo sudanês, foram trazidos escravos provenientes de lugares onde se localizam, atualmente, países como Nigéria, Gana e Costa do Marfim. O Nordeste brasileiro, em especial o Recôncavo Baiano, recebeu a maior parte deles. Os bantos, bem mais numerosos, eram originários da Bacia do Congo, do planalto dos Grandes Lagos e, especialmente, das colônias portuguesas de Angola e Moçambique. Esses escravos foram levados tanto para o Nordeste (Pernambuco e Maranhão) quanto para o Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo).
A África está no Brasil, em todos os lugares.
De certo modo, somos todos “afrodescendentes”. Mas ninguém é apenas “afrodescendente”. Isso é o que a Seppir não quer entender.

Boletim Mundo n° 1 Ano 15

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