A Ceca representou uma resposta direta à reconstituição de um exército alemão, no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A Alemanha, fragmentada em quatro zonas de ocupação pela Conferência de Potsdam (1945), dividiu-se em 1949 em dois Estados: a República Federal da Alemanha (RFA), alinhada aos Estados Unidos, e a República Democrática Alemã (RDA), subordinada à União Soviética. Na hora da bipartição, Washington decidiu criar a OTAN, a aliança militar destinada a conter a União Soviética, na moldura da Guerra Fria. A RFA se integrava à aliança e, revigorada pelos recursos do Plano Marshall, estava destinada a funcionar como escudo avançado da Europa Ocidental face ao bloco soviético.
O espectro de uma Alemanha reconstruída atemorizava especialmente os franceses, avivando a memória de três guerras – a Franco-Prussiana, de 1870-71, a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a tão recente Segunda Guerra Mundial (1939-45). Do ponto de vista de Paris, o cenário ideal era a anulação geopolítica e militar permanente da Alemanha, mas isso já havia se tornado impossível. Diante do fato consumado, o genial diplomata francês Jean Monnet, ofereceu uma solução: a nação alemã ressurgiria convertida em parceira da França, numa aliança voltada para a construção da unidade européia.
No passado recente, a rivalidade franco-alemã concentrava-se na disputa pela faixa de fronteiras da Alsácia, da Lorena e do Ruhr, onde ficavam as jazidas de carvão mineral que abasteciam a siderurgia. A solução de Monnet foi colocar as usinas de aço e as fontes do carvão sob uma autoridade comum, supranacional. A Ceca, essa autoridade, devia transformar os recursos da indústria mais estratégica da época no pilar da cooperação entre franceses e alemães. A indústria que produzia o aço, do qual se faziam as armas, se convertia no motivo de uma aliança duradoura e no alicerce da Europa anti-soviética.
A RFA incorporou-se à OTAN mas, no início, não foi autorizada a reconstituir o seu exército. As coisas mudaram com a Guerra da Coréia (1950-53), que engajou as forças americanas no primeiro conflito militar da Guerra Fria. O embate coreano recolocou sobre a mesa o tema do rearmamento alemão, no qual insistia desde setembro de 1950 o secretário de Estado americano Dean Acheson. Monnet reagiu com mais uma proposta surpreendente, oferecendo planos para a criação de uma Comunidade Européia de Defesa (CED).
A CED, inspirada na Ceca, colocaria as forças militares da Europa Ocidental sob uma autoridade comum. O projeto discriminava a RFA, que não teria um exército nacional e cujas tropas seriam integradas às forças européias. Mesmo assim, o projeto da CED passou no parlamento da RFA. Paradoxalmente, contudo, foi rejeitado em 1954 pela Assembléia Nacional francesa que, para enorme decepção de Monnet, preferiu reafirmar o conceito tradicional de soberania nacional.
Um ano depois da morte da CED, começou o rearmamento da RFA. Simultaneamente, a União Soviética criava o Pacto de Varsóvia, sua própria aliança militar, no interior da qual nasceria um exército da RDA. Esses eventos deflagraram as negociações que conduziriam ao Tratado de Roma.
Mais uma vez por iniciativa de Monnet, a Europa Ocidental avançava no rumo da fusão de soberanias. O projeto, elaborado pela comissão dirigente da Ceca, desenhava os contornos de dois acordos paralelos: a Comunidade Européia de Energia Atômica (Euratom) e o Mercado Comum Europeu (MCE). A Euratom seria uma autoridade comum para o desenvolvimento do uso pacífico da energia nuclear. O MCE, um grande mercado unificado de bens, serviços, capitais e mão-de-obra. A CEE reuniria, sob um mesmo quadro, as duas novas comunidades e a já estabelecida Ceca.
Os documentos assinados no centro político do antigo Império Romano não eram tratados tradicionais entre Estados. Pela primeira vez na história, Estados concordavam em abrir mão de uma parte de suas soberanias, inventando o conceito de soberanias compartilhadas. Atrás da novidade política e jurídica, escondiam-se as sombras das guerras devastadoras que deviam ser conjuradas para sempre.
Boletim Mundo n° 2 Ano 15
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