A China é contra qualquer forma de protecionismo e nós propomos a cooperação e a negociação para solucionar todas as questões concernentes ao comércio internacional”, declarou Yao Jian, o porta-voz do Ministério do Comércio chinês, em fevereiro. Yao prometeu apoio integral aos esforços da Organização Mundial de Comércio (OMC) para evitar a disseminação do protecionismo e pediu à OMC que conclame “todos os países membros a se comprometerem com a sua estratégia de livre comércio”. Na mesma entrevista coletiva, mirando nos Estados Unidos, cujo Congresso acabara de aprovar um pacote de estímulo fiscal que contém uma cláusula de incentivo à compra de produtos nacionais, o vice-ministro do Comércio Jiang Zengwei garantiu: “Nós não praticaremos o Buy China. Trataremos igualmente os produtos domésticos e estrangeiros.”
Na esfera comercial, o século XXI inicia-se com essa pequena aula de liberalismo econômico ministrada por uma ditadura de partido único, que ainda cultua Mao Tsetung, à maior potência mundial, uma nação que só cultua os deuses da liberdade econômica. O paradoxo, uma fina ironia da história, decorre tanto dos efeitos políticos do colapso financeiro nos Estados Unidos quanto dos interesses nacionais objetivos chineses.A China, uma “economia socialista de mercado”, na curiosa e internamente contraditória definição oficial, precisa conservar um ritmo acelerado de crescimento econômico, para assegurar um mínimo de estabilidade política interna. Mas o crescimento acelerado depende, crucialmente, da manutenção de mercados abertos e, em particular, do livre acesso de bens chineses aos consumidores americanos.
Na globalização, o comércio oscila mais que o PIB, tanto para cima quanto para baixo. No ciclo de expansão econômica mundial, entre 2000 e 2007, o PIB global cresceu 3%, enquanto o comércio cresceu 5,5%. A China é um caso à parte: no período, suas exportações aumentaram em espantosos 22,5% (contra 6% dos Estados Unidos e do Japão e 12% da União Européia) e suas importações em 18% (contra 7% dos Estados Unidos e do Japão e 12% da União Européia). Como resultado, em 2007, a China tornara-se o segundo exportador mundial, com 8,9% do total, atrás apenas da Alemanha (9,7%) e à frente dos Estados Unidos (8,5%), e o terceiro importador mundial, com 6,8% do total, atrás dos insaciáveis Estados Unidos (14,5%) e da Alemanha (7,6%).
A irresistível ascensão comercial da China revolucionou toda a matriz de intercâmbios globais. O comércio intra-regional asiático, que era relativamente pouco expressivo, passou a corresponder a quase metade do total dos intercâmbios da Ásia em 2007. É que a China transformou-se no grande elo das cadeias de produção e consumo que conectam a Ásia ao Ocidente e, em especial, ao mercado americano. Os imensos saldos positivos na balança comercial chinesa devem-se, sobretudo, aos intercâmbios bilaterais com a América do Norte e a Europa.
Mas o vasto intercâmbio da China com o restante da Ásia gera saldos negativos.
A China exporta produtos manufaturados finais para os Estados Unidos e a União Européia, seus dois principais clientes. As estruturas produtivas implantadas na China, que têm como estrato mais dinâmico e moderno as empresas estrangeiras, utilizam sobretudo bens de produção e componentes fabricados no Japão e nos Tigres Asiáticos. Por esse motivo, a Ásia é, de longe, a principal fonte das importações chinesas.
Isso significa que a China é a ponte vital entre as tecnologias elaboradas no Japão e nos Tigres Asiáticos e o mercado consumidor dos Estados Unidos. A parcela de maior conteúdo tecnológico e de maior valor das exportações chinesas é produzida por empresas japonesas, americanas, coreanas, européias, operando em território chinês, empregando a abundante mão-de-obra barata chinesa e sob as regras políticas e sociais estabelecidas pela ditadura do partido único. O pleno funcionamento desse sistema produtivo integrado à globalização assegurou as invejáveis taxas de expansão do PIB chinês registradas há quase três décadas. A China não pode admitir que uma descontrolada onda protecionista, deflagrada pela crise econômica global, destrua as engrenagens que a converteram em potências mundial.
A dinâmica do sistema produtivo da globalização assenta-se sobre o desequilíbrio estrutural entre o excesso de consumo no Ocidente, de um lado, e o excesso de produção (e, portanto, de poupança) na China. A expressão do desequilíbrio encontra-se na conta corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos e da China. A conta corrente é a diferença entre os ingressos e as saídas de capital das economias nacionais. A conta de capital dos Estados Unidos gera saldos positivos, em virtude dos lucros obtidos pelas empresas americanas que operam no exterior, mas tais saldos estão longe de cobrir os déficits comerciais.
O resultado são saldos negativos em conta corrente que atingiram mais de US$ 650 bilhões em 2008. Na China, pelo contrário, a adição dos saldos positivos na conta de capital aos amplos superávits comerciais resulta em saldos positivos em conta corrente que atingiram cerca de US$ 400 bilhões em 2008.
O déficit americano e o superávit chinês formam dois lados de uma mesma gangorra. No fim, a equação fecha apenas porque as imensas somas de capital em mãos da China são investidas nos mercados financeiros do Ocidente e, em particular, em títulos emitidos pelo Tesouro dos Estados Unidos. Por essa via, a China financia o déficit (e o consumo) americano, assegurando a continuidade de um sistema que promove o seu próprio crescimento.
Mas tudo se torna dramático se o dólar ingressa numa espiral de desvalorização. A perda de valor da moeda americana, que é a moeda do mundo, dissolve ativos chineses investidos no mercado financeiro ocidental. Os chineses tremem de pavor diante da perspectiva de que os formidáveis pacotes fiscais de Barack Obama se traduzam, mais adiante, por uma onda de inflação nos Estados Unidos. Não por acaso, já começam a sugerir nada menos que a substituição do dólar por alguma outra moeda mundial.
Boletim Mundo n° 3 Ano 17
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