Adriana Maximiliano
Há 75 anos, ela foi a
primeira atleta do Brasil a disputar uma Olimpíada. Depois, foi pioneira no
nado borboleta, venceu provas e quebrou recordes mundiais. E quem disse que ela
parou?
Uma chuva fina deixou o verão carioca com cara de outono
londrino naquela terça-feira do último janeiro. Manhã perfeita para ficar
debaixo das cobertas. Mas não para Maria Emma Hulda Lenk-Zigler, 92 anos. Pouco
depois das 8h, ela já estava na piscina do Flamengo, na Gávea. Enquanto vários
nadadores se preparam para os jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, que
ocorrerão em julho, Maria Lenk mergulha em busca de outro objetivo. “A natação
é o que me mantém viva. Se eu passar um dia sem nadar, fico deprimida”, diz
ela, que deu suas primeiras braçadas na década de 1920, nas então limpas águas
do rio Tietê, em São Paulo.
Aos 17 anos, em 1932, Maria Lenk foi a primeira
sul-americana a participar dos Jogos Olímpicos. Até hoje, foi a única sul-americana
a bater recordes mundiais na natação. Como se não bastasse, ela fez parte da
primeira turma feminina formada em Educação Física no país, em 1938. Mas
precisou esconder do noivo sua paixão pela natação: “Os homens não gostavam de
atletas. Se ele soubesse que eu nadava, não casava”.
Hoje Maria Lenk precisa de duas bengalas para andar. Por
causa de uma queda em casa, ela fraturou as pernas e caminha mancando. Dentro
d’água, fica mais à vontade. Todas as manhãs, durante uma hora, essa paulistana
que adotou o Rio nos anos 30 percorre cerca de 2 quilômetros na piscina do
Flamengo. Ali, todo mundo reverencia Maria Lenk. “Hoje a senhora está
impossível!”, diz o nadador da raia ao lado, pelo menos meio século mais novo.
Maria Lenk vive entre Albuquerque, nos Estados Unidos, e o
Rio. Ainda compete – e continua vencendo. Na categoria de 90 a 94 anos, Lenk é
dona de três recordes mundiais do nado de peito, obtidos no fim de 2005: o dos
50 metros (1m25s91), o dos 100 (3m12s88) e o dos 200 (6m57s76). Entra século,
sai século e ela continua fazendo história.
História - Nos anos 20, eram raras as mulheres que
praticavam esportes. Por que a senhora começou a nadar?
Maria Lenk - Tive uma pneumonia dupla aos 10 anos e meu pai,
Paul Lenk, decidiu me ensinar a nadar para fortalecer o pulmão. Eu já tinha perdido
uma irmã gêmea, Hertra, aos 6 meses de idade, por fraqueza. Meu pai era alemão,
imigrou para o Brasil em 1912 e, como muitos na nossa comunidade, mantinha o
costume de fazer exercícios. Ele foi campeão de ginástica de aparelhos em São
Paulo e queria que a gente fizesse esporte também para ficar mais forte. Nosso
quintal parecia um ginásio, com barras fixas e argolas. Acabei virando
nadadora, assim como minha irmã caçula, Sieglinde. Já meu irmão, Ernesto, foi
campeão brasileiro de basquete.
Onde a senhora nadava?
Meu pai me levou para o rio Tietê. Ele prendia meu maiô num
anzol, ficava segurando a vara com uma corda do lado de fora do rio e dizia
como eu devia fazer, enquanto desajeitadamente eu batia pernas e braços e bebia
muita água. Mas não foi ele que inventou esse método. Todas as crianças daquela
época aprendiam a nadar assim, presas por uma vara nas margens do Tietê, já que
não existia piscina em São Paulo.
Então aquela provocação de torcida carioca – “Ê, ê, ê, praia
de paulista é o rio Tietê” – não faria o menor sentido naquela época, não é
mesmo?
Pois é, o Tietê tinha águas transparentes, era uma delícia
no verão. Ali, foram realizadas competições de remo, que já foi quase tão
popular quanto o futebol, e também natação e saltos. Clubes surgiram nas
margens do rio. O meu era o Clube Tietê, que tinha uma área delimitada no rio
para as crianças darem suas primeiras braçadas. Com o tempo, a natação ganhou
popularidade e os clubes resolveram criar áreas exclusivas para competições,
evitando que os nadadores fossem levados pela correnteza ou atropelados por
barcos do remo. As provas mais longas aconteciam no trecho do rio que
atravessava a cidade de São Paulo. A mais famosa era a Travessia de São Paulo a
Nado, que foi criada (em 1924) pelo jornalista Cásper Líbero, o mesmo que
criaria depois a Corrida de São Silvestre (em 1925). E o mais curioso é ver que
a São Silvestre ainda está aí, enquanto a travessia precisou ser cancelada
porque nadar no Tietê ficou impraticável (por causa da poluição, a Travessia de
São Paulo a Nado foi extinta em 1944).
A senhora participou das primeiras travessias?
Eu só comecei a participar da travessia nos anos 30, quando
ela tinha patrocínio do jornal A Gazeta e até rendia fotos no jornal. Como
atleta do Clube de Regatas Tietê, venci quatro anos seguidos, de 1932 a 1935,
até que me mudei de São Paulo e não fiz mais aquela prova. Quem ficou no meu
lugar no alto do pódio foi Sieglinde, minha irmã! No masculino, o vencedor da
travessia todos os anos era João Havelange (atual presidente honorário da Fifa
e um ano mais velho que Maria Lenk), que competia pelo Clube Espéria. Somos
amigos desde aqueles tempos.
Como era essa prova?
O percurso de cerca de 7 quilômetros ia da Vila Maria até o
Clube Espéria. A travessia acontecia sempre no último domingo do ano e milhares
de pessoas iam para as margens do rio assistir à prova. Acho que era o maior
evento esportivo da cidade. Mas nem tudo era perfeito. Eu contraí tifo por
causa do rio. Quando chovia, as águas ficavam barrentas e alguns animais mortos
por afogamento passavam boiando. A gente achava tudo normal (risos). Hoje, o
rio Tietê e São Paulo estão muito mudados, irreconhecíveis.
Os maiôs também...
Ah, hoje eu vejo os vestidos das meninas nas ruas e lembro
dos meus maiôs daquele tempo. Eram enormes! Sem falar que eram feitos de lã, o
que não ajudava muito nosso desempenho. Mas tinha gente que considerava aqueles
trajes uma indecência. Certa vez, fui convidada para inaugurar uma piscina em
Minas e os organizadores do evento me fizeram uma exigência: que usasse um
“maiô católico”. Como se o meu fosse um pecado!
A senhora sofreu preconceito por ser atleta?
Na comunidade alemã, nunca. Havia muito incentivo para a
prática de esportes e toda menina alemã ou de família alemã, como eu, fazia
ginástica, nadava, cuidava do corpo e da saúde. Mas fora da comunidade tinha
muito estranhamento. Quando fui morar em Amparo, interior de São Paulo, já
tinha ido a dois Jogos Olímpicos e era famosa, mas fui excomungada pelo bispo
local por causa do meu maiô.
Como foi isso?
Eu tinha acabado de me formar em Educação Física, mas não
consegui trabalho no Rio nem em São Paulo. Eu não tinha padrinho, sabe... Mudei
para Amparo, onde finalmente consegui uma vaga de professora. Ao chegar lá,
descobri que não havia piscina pública. Mas não desanimei e acabei convencendo
um clube local a reformar sua piscina e motivar as crianças da cidade a
aprenderem a nadar. A natação contagiou Amparo e encheu a piscina de gente de
todas as idades. O bispo não agüentou ver tanto maiô e calção e me acusou de
péssimo exemplo para a sociedade amparense. Uma pecadora. Acabei sendo
excomungada.
O fato de a senhora ser uma atleta olímpica não lhe garantia
respeito?
Que nada. E o bispo não estava sozinho. Quando eu voltei dos
Jogos Olímpicos de Los Angeles, recebi muitas críticas por não ter trazido
medalhas. A importância da minha participação só seria reconhecida anos depois.
Como a senhora se tornou a primeira sul-americana em Jogos
Olímpicos?
Eu me destaquei num campeonato interestadual que tinha
apenas duas meninas e fui convidada para participar dos Jogos de Los Angeles.
Nossa delegação tinha 82 atletas e eu era a caçula, com 17 anos. No fim das
contas, a viagem durou um mês. E eu fiquei todo esse tempo sem treinar. Não fez
diferença, porque não sabia mesmo o que era treinamento. Aprendi lá.
A senhora foi mal nas provas?
Eu participei das provas nos três estilos (100 metros
livres, 100 costas e 200 peito) e o meu melhor resultado foi um oitavo lugar
nos 200 metros nado de peito. Para quem só tinha participado de competições no
Tietê e um interestadual, não foi nada mal. Lá conheci grandes campeãs e vi
como elas treinavam. Nós, mulheres, ficamos todas juntas em um hotel de luxo.
Os homens ficaram na Vila Olímpica, a primeira da história dos Jogos.
Como foi a volta?
Não voltamos como heróis. O Brasil estava vivendo um período
difícil, as questões eram outras e eu nem pude ver meus pais em São Paulo (ela
desembarcou durante a Revolução Constitucionalista de 1932). As pessoas
perguntavam se tinha valido a pena tanto esforço já que não ganhamos uma
medalha sequer. Eu acreditava que sim. Voltei mais experiente, mais madura e
com muita vontade de treinar e representar bem o Brasil em outras
oportunidades.
Como nos Jogos Olímpicos de 1936.
Pois é. Para Berlim, na Alemanha, fomos de cargueiro, o
General Artigas. Éramos seis mulheres na delegação! Dessa vez, construíram um
tanque que servia de piscina no convés para que a gente pudesse treinar durante
a viagem. Como o tanque era pequeno e não permitia que déssemos mais de duas
braçadas, nosso técnico, Carlito (Carlos de Campos Sobrinho), teve uma idéia
genial: com uma corda, ele amarrava a gente na borda. Assim, eu podia nadar sem
sair do lugar. Mas as ondas fortes faziam com que eu fosse lançada contra as
paredes do tanque e boa parte da água era jogada para fora. Treinar ali era uma
aventura.
Mas deu resultado?
Eu não fui muito bem, não. Infelizmente engordei um bocado
por causa das seis refeições diárias do navio e não passei das provas
semifinais. Mas entrei para a história por ser a primeira mulher a nadar
borboleta, estilo que aprendi depois de ler uma revista alemã.
A senhora aprendeu a nadar borboleta lendo numa revista?
Exatamente (risos). É que, da mesma forma que meu pai
incentivava os exercícios, minha mãe insistia para que a gente aprendesse
alemão. Então, ela importava revistas alemãs para que eu e meus irmãos
pudéssemos praticar o idioma. E foi numa dessas revistas que fiquei sabendo que
o nadador John Higgins criara uma nova maneira de nadar peito. É que o
regulamento do nado de peito na época dizia que os braços tinham que ir
simultaneamente de frente para trás e de trás para frente, mas não dizia se era
por dentro ou por fora d’água. E esse campeão americano, Higgins, tirou
vantagem disso e levou os braços por fora d’água, dando origem ao nado
borboleta (o estilo só ganharia provas próprias nos Jogos Olímpicos de 1956).
Eu comecei a fazer a mesma coisa e, então, nos Jogos de Berlim, ele era o único
homem e eu a única mulher a nadar o que seria hoje o borboleta. Mas eu estava
pesada e não fui bem nas provas como era de se esperar. Pouco antes dos Jogos,
cheguei a bater um recorde mundial nadando borboleta, mas ele não foi
homologado.
O que houve?
Politicagem. A Confederação Brasileira de Desportos não quis
reconhecer a marca indicada pela Federação Brasileira de Natação. Mas, em 1939,
eu esqueceria essa mágoa ao bater dois recordes mundiais (em 11 de outubro,
Maria Lenk fez a melhor marca do mundo nos 400 metros nado peito, na piscina do
Botafogo, com o tempo de 6m15s80. Em 8 de novembro, na piscina do Fluminense,
bateu também o recorde mundial dos 200 metros peito, com o tempo de 2m56s).
Aquele foi seu auge como atleta?
Com certeza. Eu estava me preparando para os Jogos Olímpicos
de 1940 e poderia ter vencido se eles não tivessem sido cancelados. Mas a
Segunda Guerra acabou com esse sonho. Essa foi a maior decepção da minha vida.
Meu tempo nos 200 metros nado peito foi melhor até do que o recorde brasileiro
masculino (que era de Antonio Laviola, com 2m59s).
A senhora nadou borboleta para conquistar os recordes?
Eu nadava borboleta do início ao fim das provas. Como é um
estilo difícil, deixava todo mundo impressionado. Por causa dos recordes,
ganhei muitas homenagens: uma placa de bronze no meu clube, o Guanabara,
retrato na parede da Confederação Brasileira de Desportos e discurso do diretor
da Escola Nacional de Educação Física. Também tive uma recepção no Palácio
Guanabara para receber os cumprimentos do presidente, Getúlio Vargas. Mas nunca
me conformei com o cancelamento dos Jogos Olímpicos.
O que a senhora fez
depois disso?
Encerrei a carreira de atleta, escrevi livros, casei e tive
filhos.
A senhora tem três recordes mundiais master e ainda se
destaca na natação mundial. Como isso é possível?
Eu amo nadar. Depois de Maria Lenk, o Brasil só teve essas
campeãzinhas sul-americanas... Até hoje, nenhuma brasileira conseguiu bater de
novo um recorde mundial.Aventuras na História n° 043
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