terça-feira, 17 de janeiro de 2012

DISCÓRDIA E COOPERAÇÃO NAS ÁGUAS DO INDOSTÃO

Nelson Bacic Olic

A fixação de povos nômades em regiões próximas de grandes rios remonta ao período Neolítico (6000-2500 a.C.). Nessas áreas surgiram as chamadas civilizações hidráulicas, cuja existência só pode ser entendida em função dos rios que as alimentavam. Entre as mais conhecidas estão aquelas que se ergueram ao longo do vale do rio Nilo e na Mesopotâmia, drenada pelos rios Tigre e Eufrates.
A civilização hindu, também se desenvolveu nas proximidades de importantes cursos fluviais como o Ganges, Indo e Bramaputra, os principais rios que drenam o Subcontinente Indiano, ou Indostão. Junto às margens e deltas desses rios ainda hoje são encontrados alguns dos maiores adensamentos de população rural, os “formigueiros humanos” da Ásia meridional. Tais áreas correspondem também a alguns dos principais bolsões de pobreza do mundo atual.
A base produtiva dessas regiões está assentada há séculos na agricultura, por meio de sistemas de cultivo intensivos que se caracterizam pela ampla utilização de mão-de-obra. A dinâmica climática dita o ritmo do trabalho agrícola. Durante o inverno existe pouca atividade mas, no verão, toda a força de trabalho disponível é utilizada nas culturas agrícolas.
O Indostão compreende basicamente três países – Índia, Paquistão e Bangladesh – que possuem uma população conjunta de aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas, um pouco mais de um quinto do total mundial. Ainda dominantemente rural, a população do Subcontinente Indiano apresenta alto crescimento vegetativo. Com quase 1,2 bilhão de habitantes, a Índia é o segundo país mais populoso do mundo.
Bangladesh e Paquistão possuem, cada um, mais de 150 milhões de habitantes.
Três grandes rios, o Ganges, o Indo e o Bramaputra, cortam a região e têm em comum o fato de serem rios internacionais – isto é, drenam o território de dois ou mais países. Cada um deles possui mais de 2.500 quilômetros de extensão e seus regimes são pluvio- nivais, visto suas nascentes localizarem-se no Himalaia, caso do Ganges, ou nos altos planaltos do Tibete chinês (Indo e Bramaputra). Na parte de jusante, esses rios recebem as diluvianas chuvas da monção de verão. A parcela de água renovável vinda de fora nos três países é bem diferente. Na Índia, esse índice é de 34%; no Paquistão, de 76% e, em Bangladesh, de 91%.
Por conta do traçado de fronteiras políticas surgido após a descolonização, e também por possuir uma superfície bem maior que a dos seus vizinhos, o território da Índia é cortado pelos três rios. Já o Paquistão tem no Indo seu principal curso fluvial, enquanto Bangladesh controla o curso inferior dos rios Ganges e Bramaputra.
As questões hidroconflitivas entre Índia e Paquistão concentram-se sobre a partilha das águas da bacia do Indo. Quando Índia e Paquistão se tornaram independentes, em 1947, a bacia fluvial foi dividida entre ambos. O Paquistão ficou com a maior parte dos canais e terras irrigadas que já eram utilizadas e a Índia teve a vantagem de controlar as águas do Indo que fluem rumo ao país vizinho.
O Indo atravessa um trecho da Cachemira indiana e alguns dos seus afluentes da margem esquerda têm parte considerável de seus cursos em território indiano. Nessa região, considerada como o maior perímetro irrigado do mundo, a questão da utilização conjunta das águas fluviais encontrou uma solução satisfatória, o que não se verificou em relação a outras questões geopolíticas nas quais os países vizinhos estão envolvidos. Em 1960, o Banco Mundial intermediou um tratado repartindo os recursos hídricos do Indo entre os dois países. Assim, afluentes da margem direita ficaram sob o controle da Índia, enquanto o próprio Indo e seus afluentes da margem esquerda ficaram para o uso do Paquistão.
Já a utilização das águas do Ganges e do Bramaputra gera tensões entre Índia e Bangladesh. O primeiro, um rio sagrado para o hinduísmo, corre quase integralmente no território da Índia. Em seu percurso, o Ganges afeta a vida de pelo menos meio bilhão de pessoas, que dependem dessas águas para sua subsistência.
A Índia não exerce soberania sobre o curso inferior dos dois rios que, após se juntarem, formam um grande delta. É sobre este delta que está parte considerável do território de Bangladesh.
Os vales do Ganges e do Bramaputra estão sujeitos a constantes inundações.
Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, é especialmente vulnerável às inundações, algumas delas catastróficas. Na grande cheia de 1988, que fez cerca de 300 mil vítimas, mais da metade do país ficou submerso. O controle das águas dos dois rios tem sido motivo de atritos, que incidem sobre a construção de barragens e a partilha das águas.
No caso do Ganges, as discórdias estão focadas na barragem indiana de Farakka, concluída em 1974 e cujo objetivo era reter a maior quantidade de água possível para o uso da Índia. Em 1997, depois de décadas de tentativas infrutíferas, chegou-se a um acordo para o uso compartilhado das águas. Pelo tratado, fica garantida a Bangladesh uma quantidade mínima de água durante o período mais crítico da monção de inverno, entre os meses de março e maio.
É surpreendente o fato de que o Subcontinente Indiano, uma região marcada por conflitos entre países e no interior de cada um deles, tenha encontrado soluções de uso compartilhado das águas, fonte essencial para a vida de mais de um bilhão de seres humanos.
Boletim Mundo n° 3 Ano 17

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