Casamento gay, aborto, células-tronco, tradições religiosas, pena de morte, porte de armas. São os temas explosivos da guerra sem fim que opõem conservadores a liberais nos Estados Unidos.
Barack Obama venceu por causa de uma economia aos pedaços, mas a guerra cultural continua “e seremos nós os vencedores”, desabafou um conservador americano diante do resultado nas urnas. Embora tenha sido reação de um desconhecido, o registro jornalístico foi feito porque a explosão verbal aconteceu numa da seções eleitorais da Califórnia, onde os liberais tiveram de engolir o triunfo da chamada Proposta Número Oito, proibindo casamentos gays. Alguns de seus autores, como os do Protect Marriage, insistem em que não se trata de discriminação, mas de “tentativa de defender a definição tradicional de casamento”. A constatação, no entanto, é a de que está em curso uma guerra, no campo cultural. Isto ficou claro com a ampla mobilização religiosa, inclusive de igrejas afro-americanas, em favor da “Prop 8”.Há outros indicadores. Guerreiros. O argumento é o de que é preciso proteger “valores familiares”. Não estão em jogo só os casamentos gays, mas toda uma gama de “valores”, a partir de um conjunto de questões que continuam em pauta, com um e outro lado cavando trincheiras. O que aconteceu na Califórnia foi um golpe a mais nos liberais – e dado com punhos de aço. Não surpreendeu o voto favorável de grande maioria de eleitores brancos. Foi significante o apoio à proposta de um em cada dois negros. Além disso, 30 estados americanos já baniram esse tipo de casamento.
Mas a seqüência de embates vai em frente. Na Dakota do Sul, foi banido por 69% dos eleitores o direito de escolha em abortos. Proteção legal, só em casos de incesto, estupro ou risco à vida das gestantes.
No lado oposto da trincheira, Washington passou a permitir o suicídio em casos de doentes terminais e Michigan legalizou pesquisas com células-tronco.
O caso da “Prop 8”, na Califórnia, tornou-se emblemático porque coincidiu com a eleição de Obama, chamado de “socialista” por um dos mais ouvidos apresentadores de rádio dos Estados Unidos.
Obama, já empossado e com alto capital político, deu o troco. Acabou com restrições aos financiamentos federais de estudos com células-tronco, introduzidas por Bush com o argumento de que seria matança de vidas embrionárias. O New York Times, que contabiliza um bom número de defesa de causas liberais, saiu em defesa de Obama com editorial incisivo.
De acordo com o editorial, a medida “encerra um período obscuro, no qual objeções morais de conservadores religiosos constrangeram avanços de grande importância para as ciências médicas”. O Washington Post, por sua vez, considerou Bush o verdadeiro chefe da direita religiosa dos Estados Unidos, a tropa de choque com maior poder de fogo nessa guerra cultural.
Os tiroteios, em alguns momentos, se abrem num leque matizado. O New York Times não ficou totalmente satisfeito com a canetada de Obama, embora não hesite em defini-la como “instância luminosa”.
Dólares federais continuam bloqueados para alguns tipos de pesquisas. Cabe ao Congresso dar um jeito, pediu o jornal.
Em cada três brancos evangélicos, só um votou por Obama. Pat Buchanan, um dos “marechais” da direita religiosa, usou a Convenção Nacional do Partido Republicano para classificar Sarah Palin, a combativa vice de John McCain, como a “nossa Katyusha”. Katyusha é o célebre fuzil- metralhadora de fabricação russa muito usado por guerrilheiros. “Há uma guerra religiosa em nosso país e a disputa se trava visando à conquista da alma dos americanos”, disse Buchanan, para uma platéia de entusiastas republicanos. A “Bósnia” dessa guerra, ainda segundo Buchanan, “é o aborto”. Na Bósnia se trucidaram, entre si, sérvios, muçulmanos e bósnios.
Liberais, subversivos, imigrantes e infiéis de modo geral (negros escapam com seus evangelismos) são os alvos da “Katyusha” Palin. Há um livro, intitulado Culture warrior (“Guerreiro cultural”), de Bill O’Reilly, que se apresenta orgulhosamente como o personagem do título.
Está em curso, reitera Reilly, uma guerra entre tradicionalistas, como ele próprio, e forças de um progressismo secular que almeja mudar os Estados Unidos “dramaticamente”, tendo como exemplo – que horror! – a Europa Ocidental. Para O’Reilly, a BBC, de Londres, é de esquerda. Ele metralha o aborto, drogas, casamentos gays, não comemorar o Natal e assim por diante, nessa guerra radicalizada pela presença de um “negro liberal” na Casa Branca.
Em suas alucinações guerreiras, O’Reilly antevê uma Glória Hernandez sucedendo a Barack Obama.
Além de hispânica, mulher!
Os Estados Unidos seriam assaltados pelos de fala espanhola, ainda por cima mais dispostos à procriação.
Na seqüência – quem sabe? – um asiático, o primeiro de olhos espichados na Casa Branca. O jeito, talvez, na visão de O’ Reilly, seria adotar a linha de Ronald Reagan em relação à “contenção do comunismo” nas guerrilhas centro-americanas dos anos 80.
O grito do “guerreiro cultural” é “Não passarão!”
– ironicamente lançado nos anos 30, durante a Revolução Espanhola, por uma mulher republicana, logo anti- franquista, logo de esquerda.
Dois outros assuntos emergem nesse campo de batalha: a pena de morte e o porte de armas de fogo. Há uma campanha mundial, com origem na ONU, contra a pena de morte, proibida nos países da União Européia (UE), cujo way of life horroriza os guerreiros culturais dos Estados Unidos.
A pena de morte, por exemplo, é um dos dispositivos que dificultam a admissão da Turquia na UE. Em porte de armas de fogo, os liberais sofreram duro revés com decisão recente da Corte Suprema de ressuscitar velhíssimos dispositivos, datados da época do faroeste. Uma revisão só será possível se Obama conseguir alterar a composição do mais alto tribunal dos Estados Unidos, hoje com maioria conservadora.
Boletim Mundo n° 3 Ano 17
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