terça-feira, 17 de janeiro de 2012

GOVERNO DEFINE A ESTRATÉGIA DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA

Regina Araújo

Há cem anos, o advento do fordismo assinalou o início do período glorioso de Detroit e do capitalismo americano. Hoje, falidas, as “Três Grandes” se submetem ao planejamento elaborado por Barack Obama.
Um filme genialmente dirigido e estrelado por Clint Eastwood, Gran Torino (2008), retrata com rara sensibilidade a agonia da Velha América. Nele, Eastwood interpreta Walt Kowalski, um sujeito mal humorado, resmungão e racista que teima em não reconhecer as mudanças no mundo. Veterano da Guerra da Coréia (1950-53), ostenta a bandeira dos Estados Unidos na fachada de sua casa e pragueja contra vizinhos de origem asiática.
Ex-funcionário da Ford, vocifera contra os filhos que “traíram” a pátria e se renderam à eficiência dos carros japoneses. O Gran Torino que dá título ao filme é um Ford modelo 1972, enorme e beberrão, que o protagonista dirige com orgulho. O tipo de carro que ninguém mais quer, e  que ajudou a condenar a indústria automobilística americana à bancarrota atual.
Coincidência ou não, Gran Torino estreou no mercado americano 100 anos depois que o pioneiro Henry Ford lançou seu primeiro Modelo T, o carro robusto e relativamente barato que inaugurou a moderna era dos automóveis. Pouco depois, em 1913, os carros da Ford Motors Company passaram a ser produzidos em série, de forma a atender um mercado de consumo que crescia exponencialmente.
Utilizando as então recentes conquistas no campo da eletricidade, Ford inventou um sistema de trabalho fabril revolucionário: a linha de montagem. Neste sistema, os trabalhadores permanecem em seus postos, realizando tarefas simples e repetitivas, enquanto uma esteira elétrica move as peças sempre na mesma velocidade, imprimindo um ritmo constante à produção.
A engrenagem padronizada ampliou de maneira vertiginosa o volume e reduziu os custos de produção. Por causa dela, a Ford se transformou em líder absoluta do mercado americano. As dezenas de fábricas de automóveis que existiam nos Estados Unidos em 1917, excetuando a Ford, empregavam juntas  70 mil operários e produziam 280 mil unidades. A Ford, empregando 13 mil funcionários, produziu 310 mil unidades naquele ano. Uma tecnologia superior propiciava ganhos extraordinários de eficiência, que se convertiam em lucros.
Na década de 20, a maior parte das fábricas concorrentes já havia encerrado suas atividades. As duas grandes que sobreviveram, General Motors e Chrysler, adotaram o sistema produtivo conhecido como fordismo, que se espalharia para o conjunto da economia industrial no decorrer do século XX, atravessando a Depressão dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Estava formado o trio de ouro da indústria automobilística americana, que dominava os mercados do país e do mundo.
Detroit, capital do estado de Michigan e sede de operações das “Três Grandes”, se transformou  em um dos centros mais dinâmicos da economia americana. Os sindicatos dos metalúrgicos das montadoras dos Estados Unidos, também reunidos em Detroit, despontavam como a organização sindical mais poderosa do mundo. A empáfia do velho Kowalski é uma herança destes tempos de glória.
Após a Segunda Guerra Mundial, porém, empresas automobilísticas surgidas na Europa e no Japão passaram a competir diretamente com as gigantes americanas, primeiro nos mercados internacionais e, depois, no próprio território dos Estados Unidos. Produzindo carros mais eficientes e econômicos, estas novas empresas cresceram no rastro da crise do petróleo da década de 70. Na mesma época, a japonesa Toyota promovia uma nova revolução na ndústria automobilística, aprofundando a automação e introduzindo a organização flexível de trabalho no lugar da tradicional rigidez fordista.
Pressionada pela concorrência, a indústria automobilística americana entrou em uma espiral de declínio: no início dos anos 80 empregava mais de um milhão de trabalhadores, hoje emprega pouco mais de 200 mil. Parte destas pessoas trabalha nas japonesas Honda e Toyota, que se instalaram nos Estados Unidos neste período, mas buscaram localizações distantes dos poderosos sindicatos operários. Detroit, a outrora “capital mundial do automóvel”, é atualmente a capital americana com maior índice de desemprego, além de ser uma das mais miseráveis: um terço da população sobrevive abaixo da linha da pobreza.
Nos últimos meses, na esteira da crise econômica que varre o mundo inteiro, as “Três Grandes” publicaram balanços com prejuízos inéditos e suas ações registraram perdas de proporções espetaculares. Na beira do abismo, elas receberam bilhões de dólares em empréstimos emergenciais e créditos do governo. A Chrysler vendeu 35% de suas ações para a italiana Fiat, mas continua em situação dramática.
Desde os tempos da campanha eleitoral, Barack Obama defende a interferência do governo no setor automotivo, de forma a impedir que seja tragado de vez pela concorrência externa. Mas, de acordo com o presidente, é fundamental que os recursos públicos sejam canalizados para uma ampla reestruturação da indústria automobilística, capacitando-a a produzir o “carro do futuro”, ou seja, um veículo eficiente e limpo. E as novas regras já estão valendo: o setor tem até 2011 para lançar veículos que consumam no máximo 6,7 litros de combustível a cada 100 quilômetros, contra os atuais 8,7 litros. Além disso, Obama aposta no crescimento da frota de veículos de combustível flexível e no uso do etanol, menos poluente que a gasolina.
Ao que parece, eficiência energética é o novo nome do jogo, e o governo Obama pretende distribuir as cartas, já que as “Três Grandes” chegaram à bancarrota por conta própria. Para renascer das cinzas, a indústria automobilística dos Estados Unidos deverá seguir um padrão ambientalmente sustentável. Certamente, não haverá lugar para o Gran Torino na Detroit “verde” que o presidente pretende construir.

Boletim Mundo n° 2 Ano 17

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