Cercado de inimigos por todos os lados, Teerã alterna retórica incendiária com pragmatismo. A nova realpolitik de Obama pode fazer do Irã um fator de estabilização regional.
Berço da civilização persa, o Irã é uma das sociedades mais complexas do mundo.
No entanto, sob a forte impressão da Revolução Islâmica de 1979, a maioria dos ocidentais ainda vê o país através das lentes embaçadas da Guerra Fria: uma teocracia obscurantista e incendiária, obcecada em desestabilizar seus vizinhos e, assim como outro integrante do “eixo do mal”, a Coréia do Norte, determinada a estender seus tentáculos na região através da construção de um arsenal nuclear. A repressão aos protestos que abalaram a República Islâmica depois da fraude que garantiu a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em junho, só fez reforçar uma percepção de que o regime dos aiatolás é irreformável por meios pacíficos – e que somente a sua derrubada manu militari poderá trazer estabilidade à região, como defendiam os neoconservadores de George W. Bush.Mas quem, despojando-se de viseiras ideológicas, dispuser-se a debruçar-se sobre um mapa do Sudoeste Asiático, imaginando-se um iraniano, poderá entender que o comportamento agressivo de Teerã é ditado por uma sensação de insegurança geopolítica. O Irã está cercado por inimigos por todos os lados de suas fronteiras: do lado ocidental, o Iraque, ocupado desde 2003 por tropas americanas; do lado oposto, o Afeganistão, parcialmente ocupado por forças da OTAN e o Paquistão, aliado do Ocidente, detentor da “bomba atômica sunita” e de onde partem várias operações encobertas para subverter minorias étnicas iranianas. Por fim, se for perspicaz, o observador não deixará de notar que os domínios do Irã estão no raio de ação das cerca de 200 ogivas nucleares de Israel – fato conhecido, mas pouco lembrado quando se fala no perigo de proliferação nuclear no “Grande Oriente Médio”.
Depois de Israel, o Paquistão é o vizinho que mais assusta o Irã. Aliados durante a Guerra Fria, Teerã e Islamabad se distanciaram com a derrubada do xá Reza Pahlevi em 1979, a guerra civil no Afeganistão nos anos 1980 e a consolidação do poder nuclear paquistanês. Com 20% da sua população sendo xiita, o Paquistão sunita ficou alarmado quando o aiatolá Ruhollah Khomeini ameaçou incendiar o mundo islâmico com sua retórica revolucionária.
Ainda nos anos 80, o Paquistão se aproximou da Arábia Saudita, inimiga jurada da teocracia xiita, a pretexto de ajudar os mujahedins (guerrilheiros islâmicos) afegãos contra os invasores soviéticos.
Depois do 11 de setembro de 2001, pressionado pelos Estados Unidos, o Paquistão deu apoio logístico à invasão do Afeganistão por tropas da OTAN. Calejados, os iranianos adotaram na época uma postura realista, concitando seus aliados afegãos a apoiar o novo governo pró-ocidental instalado em Cabul. Em 2002, quando Bush incluiu o Irã no “eixo do mal” – ao lado da Coréia do Norte e do Iraque –, os aiatolás começaram a se sentir aguilhoados por um “círculo de ferro” americano. Mas ainda acreditavam que havia espaço de manobra.
Com a invasão do Iraque pelos americanos em 2003, o então presidente do Irã, Mohammad Khatami, jogou a carta da conciliação.
De acordo com Nicholas Kristoff, editorialista do New York Times, os iranianos se comprometeram a não desenvolver armas nucleares, ofereceram “apoio ativo” para a estabilização do Iraque – onde 60% da população é xiita – e, para surpresa de muitos, também se comprometeram a cortar o apoio material a organizações terroristas palestinas. Isso significava pressionar o Hamas palestino a “acabar com as ações violentas contra civis” em Israel – embora não em Gaza e na Cisjordânia – e a apoiar a transição do partido xiita libanês Hezbollah, envolvido em ações de terror, para uma mera organização política nacional. Além disso, Teerã garantiria apoio à iniciativa da Arábia Saudita para a criação de um Estado palestino ao lado de Israel. Em troca, Teerã pedia o fim das sanções econômicas, acesso à tecnologia nuclear para fins pacíficos e uma declaração de que o Irã não pertencia ao “eixo do mal”. Como registra Kristoff, a proposta foi rechaçada pela soberba de Bush e sua equipe, o que minou o poder dos pragmáticos iranianos e abriu caminho para a vitória do demagogo radical Mahmoud Ahmadinejad, em 2005.
Ao deslocar o eixo da política externa americana no “Grande Oriente Médio” do Iraque para o cenário do Afeganistão e Paquistão (Af-Pak, no termo em voga entre os militares americanos), o presidente Barack Obama aposta no Irã como um dos fatores de estabilização da região. Reconhecendo a interferência americana no país durante a Guerra Fria, Obama acenou com conversações com Teerã sem precondições, demonstrando um senso de realismo político incomum. Não foi à toa que Henry Kissinger, o arquiteto da aproximação dos Estados Unidos com a China comunista nos anos 70, elogiou a iniciativa. Mas, como toda opção realista, esta contém riscos. “Em sua aposta diplomática (...), Obama falou diretamente aos governantes iranianos, afastando-se do hábito de Bush de falar ao povo iraniano, passando por cima de seus líderes”,
escreveu Robert Kagan, um dos ideólogos neoconservadores. Mas essa estratégia, diz Kagan, coloca Obama “objetivamente ao lado dos esforços do governo para um retorno à normalidade”, após a fraude eleitoral.
As relações internacionais sempre foram pautadas pela ótica realista de Thomas Hobbes (a “guerra de todos contra todos”), não pelo idealismo de Immanuel Kant (a “paz perpétua”). Se o realismo de Obama conseguir engajar a liderança iraniana em negociações que levem o Irã a ter um papel no equilíbrio de poder do Oriente Médio, a teocracia se fortalecerá – mas esse será o preço a pagar pela estabilidade regional.
E a democratização do país vai depender, fundamentalmente, da vontade do povo iraniano.
Boletim Mundo n° 4 Ano 17
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