terça-feira, 17 de janeiro de 2012

NINHO DA IMPLOSÃO CAMBIAL MUNDIAL?

Gilson Schwartz

A ECLOSÃO DA ATUAL CRISE E A SUA DIFUSÃO PELO MUNDO CONFRONTARAM-NOS COM UMA ANTIGA MAS AINDA NÃO RESPONDIDA QUESTÃO, ISTO É, QUE TIPO DE MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA NECESSITAMOS PARA ASSEGURAR A ESTABILIDADE FINANCEIRA GLOBAL E FACILITAR O CRESCIMENTO ECONÔMICO MUNDIAL (...)? EXISTIRAM VÁRIOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS COM A FINALIDADE DE ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO, INCLUINDO O PADRÃO PRATA, O PADRÃO OURO, O PADRÃO DE CÂMBIO OURO E O SISTEMA DE BRETTON WOODS. (...) A CRISE, NOVAMENTE, SOLICITA A REFORMA CRIATIVA DO SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL EXISTENTE, NA DIREÇÃO DE UMA MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA COM VALOR ESTÁVEL, COM EMISSÃO AMPARADA EM REGRAS E OFERTA ADMINISTRÁVEL, A FIM DE (...) RESGUARDAR A ESTABILIDADE ECONÔMICA E FINANCEIRA GLOBAL.
(“REFORMAR O SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL”, ZHOU XIAOCHUAN, PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DA CHINA, 23 DE MARÇO DE 2009)

Quanto mais profunda a crise global, mais os governos tentam salvar bancos, empresas e empregos nacionais. Esse refúgio dos Estados nos seus territórios desconsidera que o principal problema da economia internacional é de natureza simbólica e afeta uma “coisa” que há muito deixou de ser nacional: a moeda. É como tratar uma infecção receitando doses cavalares de vitaminas. Em tese, o reforço dá mais condições ao corpo de resistir à doença. Na prática, o inimigo invisível apenas se alimenta dos nutrientes despejados sobre o organismo desnorteado.
O erro é conveniente para o governo que orquestrou a globalização e, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, define o ritmo dessa dança: os Estados Unidos. Afinal, nada melhor para um governo nacional que emite a moeda de curso internacional: a injeção maciça de estímulos fiscais e financeiros em todos os mercados do mundo, se não resolve o problema da recessão, prolonga essa anomalia. Uma moeda nacional continua orientando as bússolas usadas pelos principais atores do jogo econômico internacional: instituições financeiras, empresas e investidores privados.
Ao focar as agendas no medo de uma Grande Depressão, os Estados Unidos deixam em segundo plano a questão da reforma monetária internacional, dos desequilíbrios de poder entre países ricos e destes com o resto do mundo. Se o problema é a recessão, tome estímulos fiscais (mais gastos públicos, menos impostos), financeiros (taxas de juros próximas de zero ou mesmo negativas, quando descontado o efeito da inflação) e protecionismo (barrar importações, estimular exportações).
Em tese, mais cedo ou mais tarde o  estímulos devem fazer efeito. É o chamado “keynesianismo”, receita que se consagrou depois da Crise de 29. Diante de um colapso da demanda provocado por desequilíbrios financeiros, tudo soa como uma gigantesca operação de socorro ao “lado real” da economia. Mas, se o “lado simbólico” continua sob a égide do Fed (o banco central americano), os desequilíbrios continuam. Ou seja, mesmo que afinal aconteça uma recuperação do nível de atividade, dos investimentos e do emprego, o ciclo recomeçaria sob a batuta do mesmo maestro que, em última análise, jogou todo o sistema numa rota de acumulação de lucros especulativos, até o colapso do castelo de cartas. E nenhuma palavra sobre políticas cambiais e reforma do sistema financeiro internacional (instituições como FMI, Banco Mundial e OMC, que se tornaram inúteis seja para prever, seja para remediar a crise).
Uma voz dissonante, no entanto, veio do verdadeiro irmão siamês dos Estados Unidos na promoção da globalização das últimas duas décadas. A era do dólar estaria chegando ao fim, na opinião do presidente do banco central chinês, Zhou Xiaochuan. Para a China, é urgente adotar uma nova moeda internacional em substituição ao dólar.
A interdependência entre China e Estados Unidos é uma das características mais importantes do ciclo mais recente de globalização.
O consumidor americano transferiu dólares para as reservas do banco central chinês e boa parte desse dinheiro foi  investido pela China em Wall Street e em títulos de dívida pública do Tesouro americano.
Assim, quando a cúpula chinesa ameaça abandonar o dólar, o risco é o de uma tremenda crise de financiamento ao governo e à economia americana. Uma fuga de capitais chineses obrigaria o Fed a promover uma brutal elevação de juros para continuar atraindo a poupança do resto do mundo. Isso aprofundaria a recessão nos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo provocaria o colapso completo do modelo exportador chinês.
Ora, se o sucesso chinês é indissociável do desempenho dos Estados Unidos, qual a lógica do banco central chinês quando propõe o fim do dólar como referência para o funcionamento dos mercados globais?
Há pelo menos três hipóteses para o movimento surpreendente do governo chinês: catástrofe, chantagem e mutação.
Num cenário catastrófico, a liderança chinesa – habituada a longas marchas movidas pelo sangue, suor e lágrimas de uma população gigantesca – pode estar trabalhando com a hipótese de que o desarranjo social, político e econômico nos Estados Unidos seria maior que o chinês.
Ou seja, valeria apostar na linha do quanto pior, melhor. No final, a China assumiria o papel dos Estados Unidos no comando de uma nova era de expansão global.
Uma hipótese mais pragmática e viável é a da pura chantagem. Antes da posse, Barack Obama e seu secretário do Tesouro, Timothy Geithner, fizeram duras acusações à “manipulação cambial” patrocinada pela China. Ou seja, apesar dos volumosos saldos no comércio exterior, o governo chinês sempre evitou a valorização de sua moeda (que tornaria suas exportações menos competitivas, evitando o desequilíbrio comercial global). Mas algo mudou: em abril, o Tesouro americano manifestou- se solidário com o governo chinês e simplesmente apagou da agenda as críticas à manipulação cambial dos chineses.
Entre os discursos de campanha e as manifestações recentes, houve o discurso do presidente do banco central chinês pedindo um novo “Bretton Woods”. A chantagem, portanto, funcionou. As duas potências estão abertamente unidas no combate à “depressão”, desde que nos bastidores seja preservada a aliança informal entre estímulo ao consumo nos Estados Unidos e recuperação das exportações na China.
O terceiro cenário é o de uma liderança chinesa efetivamente empenhada num esforço internacional pela correção dos desequilíbrios estruturais entre os países e não apenas comprometida com gastos públicos contra a depressão (o pacote chinês de US$ 586 bilhões só perde para os gastos anunciados nos EUA, de US$ 787 bilhões, fora os trilhões injetados em bancos e instituições financeiras).
O estímulo dos gastos públicos chineses (6% do PIB) equivale ao triplo da que da de exportações ocorrida em 2009. Esse esforço poderia ser complementado por uma grande desvalorização cambial na China, jogando a Ásia e o resto do mundo numa guerra comercial. Lembrem-se: no final de 1993, a China desvalorizou a moeda em 33%, gesto que muitos apontam como causa dos colapsos da Tailândia, Rússia e Brasil entre 1997 e 1999.
Resumo da ópera chinesa: enquanto o mundo e a mídia orientam os holofotes para as medidas de estímulo fiscal e financeiro, Pequim e Washington protagonizam um arriscado roteiro de ameaças e chantagens que pode ser a semente de uma inédita implosão cambial global.

Boletim Mundo n° 3 Ano 17

Nenhum comentário:

Postar um comentário