domingo, 1 de janeiro de 2012

O REI MORREU, VIVA O REI!

O venezuelano Chávez parece herdar a mística de líder providencial que cercou Fidel Castro. Um e outro, contudo, fazem parte de uma tradição autoritária que não se limita à América Latina.

Há, Certamente, mais do que uma simples coincidência cabalística no fato de que Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, tenha surgido como um novo líder, uma nova referência ideológica de esquerda na América Latina, na mesma época em que se anuncia a morte do presidente (ou, como preferem alguns, ditador) cubano Fidel Castro.
Se o velho líder é um remanescente da Guerra Fria, quando o mundo era dividido em “esferas de influência” controladas pelos Estados Unidos e pela hoje extinta União Soviética, o candidato a substituí-lo, seu admirador confesso, é resultado de uma realidade geopolítica e ideológica bem mais complexa. Mas trata-se, em ambos os casos, da construção de uma figura messiânica, de um profeta que promete encarnar as supostas virtudes da nação, do “povo” e de “nuestra América”.
Ou, em outros termos: tanto Fidel quanto Chávez expressam, de maneiras distintas, uma determinada relação política entre o dirigente político e a sociedade que ele pretende representar, marcada pela idéia de que um líder, um “homem forte”, ousado, decidido e identificado com as aspirações populares poderá resolver os problemas sociais e econômicos da nação. Nesse sentido abrangente, não há nada de novo no front. A figura do “grande líder” percorre a história da América Latina. Basta pensar em Getúlio Vargas, no Brasil, e Juan Domingo Perón, na Argentina, se queremos ficar no século XX e restritos a uma área geográfica próxima.
Mas não se trata de um fenômeno especificamente latino-americano. Durante duas décadas, a partir do final dos anos 20 do século passado, Josef Stalin encarnou, na União Soviética, a figura do “pai dos povos”. Era o senhor absoluto do Partido Comunista (PCUS) e controlava com mão de ferro as instituições de governo. Sua vontade era lei, sua palavra era definitiva.
Uma máquina incessante de propaganda o descrevia como um sujeito infalível, a própria encarnação da Revolução Russa de 1917, o depositário das esperanças de toda a humanidade. Essa máquina de propaganda foi definida como “culto à personalidade” pelo sucessor de Stalin, Nikita Kruschev, que denunciou parte dos seus crimes no 20º Congresso do PCUS, em 1956.
Na Alemanha, entre 1932 e 1945, Adolf Hitler, o representante maior das supostas virtudes da raça ariana e da “pureza germânica”, também acumulou poderes ilimitados. Os soldados juravam fidelidade ao Führer (chefe máximo), e não ao país ou às instituições. Como Stalin, Hitler era também objeto do culto à personalidade do líder. Processos mais ou menos semelhantes aconteceram, ao longo do século passado, na Itália de Benito Mussolini, no Portugal de Oliveira Salazar, na Espanha de Francisco Franco, apenas para citar os casos mais conhecidos.
Outros exemplos se multiplicam aos borbotões na Ásia, na África, no Oriente Médio. Mesmo nos Estados Unidos, freqüentemente citado como o país de democracia mais estável do planeta, os presidentes Woodrow Wilson e Franklin Roosevelt acumularam poderes extraordinários, quase ditatoriais, em nome da necessidade de conduzir o país à vitória na guerra (e, no caso de Roosevelt, também reconstruir os Estados Unidos após a Grande Depressão de 1929). Mas nem Wilson, nem Roosevelt foram cercados pelas engrenagens do culto à personalidade.
Não se trata, em hipótese nenhuma, de traçar um sinal de igual ou sequer de semelhança entre todos esses governos, regimes e líderes. Isso seria um disparate. Ainda assim, uma lei geral emerge desses processos históricos: o acúmulo de poderes nas mãos de um governante, não importa as razões, sempre acontece às custas da democracia, cujo pressuposto básico é o equilíbrio entre os poderes. Quanto mais democrática, participativa e equilibrada é uma sociedade, menor a possibilidade de um “pai dos povos” instalar-se no poder. “Infeliz é o país que precisa de heróis”, disse o grande dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Podemos, agora, voltar à América Latina: aqui, é a debilidade estrutural das instituições democráticas que permite a multiplicação incessante e recorrente de “caudilhos” e salvadores da pátria. Tal debilidade não tem nada a ver com um suposto “destino” ou “caráter nacional” latino-americano, mas com causas históricas concretas, incluindo a desigualdade social e a dependência econômica em relação aos países centrais da economia capitalista.
Mas, novamente, tampouco é apenas na América Latina que a democracia faz água. Se o século XX foi tão pródigo em situações que demandaram extrema concentração de poder, em todo o planeta, e se nada indica que o século XXI vá ser muito diferente (basta pensar no tremendo poder acumulado por George Bush para travar a suposta “guerra contra o terror”), é a própria possibilidade da representação democrática que está em questão.

Boletim Mundo n° 1 Ano 15

Nenhum comentário:

Postar um comentário