O que é o “socialismo do século XXI” ? Hugo Chávez e seus seguidores não têm uma resposta, mas sabem que precisam procurá-la.
Quando conquistou um segundo mandato, em dezembro de 2006, o presidente Hugo Chávez disse que o socialismo, em sua versão venezuelana, significa “no político mais democracia e no econômico mais desenvolvimento coletivo, com a finalidade de satisfazer as necessidades dos povos e não para que uma minoria se enriqueça em detrimento da vida das maiorias empobrecidas e miseráveis”.Desde então não se para de debater o significado desse vago enunciado, que ganhou o rótulo de “socialismo do século XXI”. O que veio à tona como espinha dorsal do chavismo chegou a ser considerado “mais um slogan” pelo ministro do Exterior brasileiro, Celso Amorim, tal a ausência de conteúdo.
Chávez aparece, ao mesmo de tempo, como líder de direita e de esquerda. Exibe um discurso populista e se cercou de expoentes da velha guarda comunista dos anos 1960, como José Vicente Rangel, seu ex-vice presidente, e de ex-guerrilheiros como Ali Rodriguez, que chegou a ocupar o cargo governamental de maior importância estratégica, o de ministro do Petróleo. “Em Chávez coexistem de modo constante tensões idealísticas e o mais puro pragmatismo”, foi o que disse outro ex-guerrilheiro, Teodoro Petkoff, hoje um misto de jornalista e político de dura oposição a Chávez.
Com a liderança da tentativa de golpe em 1992 Chávez representou o papel de herói momentâneo de estudantes universitários e de uma esquerda radical e igualmente golpista. O próprio Chávez tinha como seu ponto de partida a teoria da “árvore de três raízes”. A origem mais remota foram “ensinamentos” não só de Simon Bolívar, mas especialmente de seu “educador”, Simon Rodriguez, e de Ezequiel Zamora, caudilho federalista do fim do século XIX.
Simon Rodriguez insistia na necessidade de a América Latina buscar soluções próprias. “A América Espanhola é original e originais tem de ser suas instituições e seu governo e também seus meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos.”, proclamou o professor de Bolívar. O presidente venezuelano estaria procurando inventar para não errar?
Já Ezequiel era um admirador das revoluções “liberais” européias. Falava com freqüência de “liberdade, igualdade e fraternidade” e, em sua insurgência federalista, empregou “slogans” como “terra e homens livres, eleição popular e horror à oligarquia”. Passado e presente se confundem num universo cada vez mais ampliado de divagações.
Chavistas anunciam inclusive uma “guerra de baixa intensidade, interna e com os americanos”. Mas a pergunta permanece: o que é o “socialismo do século XXI”, citado por Chávez como alternativa à morte? Socialismo ou morte, jurou em sua posse.
O jornal Tal Qual, de Caracas, fez a pergunta a chavistas e não chavistas. Resposta de Aurora Morales, partidária de Chávez: “Para nós, o socialismo do século XXI nasce de uma necessidade concreta. O modelo unipolar, a grande concentração do capital transnacional, a voracidade com que o Império atua em escala mundial nos levou a tomar essa postura.” Nesse caso, o socialismo de Chávez poderia ser sintetizado como antiamericanismo.
Também França e Suécia, lembrou um intelectual da oposição, são contra um país erigido em Império. Poderiam ser fontes de inspiração de Chávez? Um porta-voz do Centro Internacional Miranda, oficialista, admitiu que “só sabemos o que não deve ser o socialismo do século XXI”. Não será “uma economia baseada no capitalismo de Estado, nem um sistema totalitário fechado. Não queremos parecer com Cuba.”
Afinal, a grande definição. “O socialismo do século XXI não tem nada a ver com os dos séculos XIX e XX”, segundo Rodolfo Sanz, personalidade do círculo do poder.
Tudo indica que, até agora, imagina-se o “novo socialismo” a partir do financiamento público de cooperativas e de empresas capitalistas de propriedade estatal. Mas, para entender o fenômeno Chávez, é preciso identificar com clareza os seus adversários, inclusive George W. Bush.
Um acadêmico americano escreveu que Chávez não existiria sem Bush e seu anti-chavismo primário, que incluiu o patrocínio de um fracassado golpe de Estado.
O chavismo surgiu com a derrocada da muito elogiada “mais longa continuidade democrática do continente”, que a Venezuela conheceu a partir da queda da ditadura de Perez Jimenez, em 1958. Por várias décadas alternaram-se no poder a Ação Democrática, que se dizia social-democrata, e o Copei, um partido social-cristão.
Ao longo desse período, o contingente de pobres ultrapassou a metade da população.
Criou-se o grande paradoxo venezuelano: o abismo entre a opulência do Estado, regado a petróleo e saqueado por uns poucos, e a miséria da grande maioria. Somas gigantescas foram dilapidadas na megalomania dos grandes projetos. Com o dinheiro do petróleo os três poderes do Estado chafurdaram na corrupção, enquanto o peso da dívida externa, incompreensível diante do faturamento bilionário das exportações, provocou um conjunto de medidas de “ajuste” econômico, ditadas pelo FMI.
Essas medidas resultaram no “caracazo”, que assinalou o fim da estabilidade política venezuelana. Caracas explodiu em protestos populares em 1988, pouco depois da posse de Carlos Andrés Perez, da Ação Democrática. Os protestos foram sufocados, às custas de muitas mortes. Um Perez desmoralizado enfrentou a tentativa de golpe de Chávez em 1992, mas foi destituído em 1993 e condenado por corrupção em 1994. Estava aberto o caminho para a ascensão de um líder que ocupa o lugar simbólico de “salvador da pátria.
Chávez usa o dinheiro do petróleo em políticas sociais.
É essa mudança histórica que explica a mobilização de amplos setores pobres em favor de um militar transformado em caudilho e com ambições à eternidade. O populismo tem, apenas, resultados imediatos. A eternização do poder do caudilho pode depender de um projeto mais sofisticado e mais consistente, como o tal “socialismo do século XXI”. Desde que o rótulo seja preenchido com algum conteúdo...
Boletim Mundo n° 1 Ano 15
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