terça-feira, 17 de janeiro de 2012

OS RATOS DE DENG XIAOPING

O experimento do “socialismo de mercado” integrou a China aos fluxos mundiais das finanças e do comércio, incorporando 200 milhões de pessoas à economia da globalização. Sem desmontar a ditadura de partido único.

Não importa a cor do gato,  desde que ele cace o rato”: na boca de uma pessoa qualquer, a frase seria interpretada como um simples provérbio popular, auto-evidente; proferida, no final dos anos 70 do século passado, por Deng Xiaoping (1904-1997), ela sinalizou uma gigantesca “virada” na história da República Popular da China.
Deng, o todo-poderoso sucessor do dirigente comunista chinês Mao Tsetung (1893-1976), sinalizava a adoção do “pragmatismo”: o Estado chinês deveria, a partir de então, “flexibilizar” o processo deflagrado em 1949 por Mao, quando os comunistas tomaram o poder, e iniciar um processo de “modernização” econômica. Isso significava, concretamente, abandonar o conceito de uma economia totalmente coletivizada e controlada pelo Estado, para abrir espaço para a iniciativa privada. Hoje, esse modelo é mundialmente conhecido como “socialismo de mercado”. Como entendê-lo?
Ao tomar o poder na China, Mao iniciou um processo espelhado na revolução soviética de outubro de 1917: toda a economia passou a ser controlada pelo Estado que, por sua vez, foi submetido à ditadura do Partido Comunista Chinês (PCC), o único com existência legal permitida. E o PCC era dominado pelo “Grande Timoneiro” Mao (assim como, na União Soviética o partido único era controlado pelo “Genial Pai dos Povos” Josef Stalin). As terras foram expropriadas e transformadas em sistemas de cooperativas coletivas controladas por funcionários do Estado (isto é, por membros do partido), e o mesmo aconteceu com a indústria e com o setor financeiro.
O período maoísta conduziu o país a um absoluto desastre. País de tradição agrícola, com uma população que, em 1949, beirava os 600 milhões de habitantes, a China nem chegou perto do processo de industrialização acelerada desejado por Mao, e o sistema econômico estatal acabou desarticulando o processo produtivo que, bem ou mal, existia no campo. O resultado foi o desemprego em massa nas cidades e a fome em regiões inteiras da China. Só as indústrias bélica e de infra- estrutura apresentaram resultados um pouco menos desastrosos, mas elas tinham um objetivo preciso: exponenciar a capacidade de repressão e controle social por parte de Mao e dos burocratas encastelados no PCC.
Com a morte de Mao, Deng Xiaoping iniciou um processo de reformas, cujo objetivo era estimular a economia.
Não por acaso, começou pelo campo: permitiu que os camponeses cultivassem pequenas áreas em benefício próprio, assim gerando um excedente alimentar capaz de atenuar a situação catastrófica de desabastecimento. Foi quando surgiram as primeiras cooperativas privadas de camponeses (embora a terra ainda pertencesse ao Estado), e o surgimento de uma nova classe de camponeses ricos. A partir de 1982, após o XII Congresso do PCC, Deng iniciou a “abertura” no setor industrial. O governo estimulou a competição entre as empresas (todas Estatais), premiando as que atingissem melhores índices de qualidade e de produtividade, tendo como referência os padrões internacionais.
Mas o “grande salto adiante” (lema muito utilizado, com sentido bem diferente, por Mao para estimular a produção, nos anos 50) veio com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEE), nas províncias litorâneas, destinadas a atrair investimentos estrangeiros. Elas funcionavam como verdadeiros “paraísos” para as empresas capitalistas: mão-de-obra barata (salários que ainda hoje beiram os US$ 30 mensais, por uma jornada diária de 12 horas de trabalho), quase total isenção de impostos, total liberdade de ação. Em troca, as empresas deveriam estabelecer joint- ventures (associações) com empresas estatais chinesas, que queriam modernizar suas “técnicas de gerenciamento”, além de promover uma certa transferência de tecnologia. As primeiras ZEEs foram implantadas em Shenzen, Zhuhai e Xiamen.
O novo modelo permitiu à China crescer a taxas superiores a 9% ao ano, em média, durante os anos 90.
Mas, diferentemente do que fez Mikhail Gorbatchev na União Soviética, que tentou conciliar abertura econômica (perestroika) e política (glasnost), o governo chinês acentuou a repressão. O grande emblema disso foi o massacre de 2 mil jovens, trabalhadores e estudantes que protestavam na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em abril de 1989, há quase exatas duas décadas. Não por acaso, eles aclamavam Gorbatchev (que visitou Pequim, em março daquele ano) e pediam uma glasnost na China.
A incorporação de Hong Kong à China, em julho de 1997, graças a um acordo com a Grã-Bretanha, que detinha o controle do território, acentuou ainda mais o caráter capitalista da integração do país ao mercado mundial, consagrado pela sua inclusão à Organização Mundial do Comércio, em 2001.
Hong Kong é, ao lado de Cingapura, o centro nervoso do capital financeiro da Ásia, por onde passam investimentos e capitais especulativos e industriais de toda a região, incluindo Japão e Tigres Asiáticos.
O chamado “socialismo de mercado”, portanto, serve para descrever (ou ocultar?) um sistema algo bizarro, que mantém uma armadura política e retórica herdada da revolução de 1949 (a ditadura do partido único, os louvores ao “Grande Timoneiro” Mao), mas com uma economia estruturada segundo as normas do capital.
Hoje, cerca de 200 milhões de chineses constituem uma classe média que consegue, de alguma forma, participar dos bilhões de dólares que circulam na economia, ao passo que mais de um bilhão vivem entre a pobreza e a miséria absoluta, contidos por uma feroz polícia política.
Deng acertou: o gato é bom se caça ratos. Mas faltou explicar melhor quem são os ratos.

Boletim Mundo n° 3 Ano 17

Um comentário:

  1. A Classe Media chinesa atual é mais rica do que a nossa ( já que paga menos impostos e explora trabalhadores com "salários" prá lá de menores), sendo ainda, do tamanho de toda a nossa população? Putz, estamos irremediavelmente perdidos!

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